O sentido linguístico da vida

Muitos livros, como As quatro faces do Universo, de Robert M. Kleinman, discutem o sentido da existência (e, particularmente, da existência humana), procurando provar, se é que isso é possível, que a nossa vida tem um propósito. Em muitos casos — este é um deles —, criticam a ciência, acusando-a de limitada, de reduzir a realidade à pura matéria, não dando conta da dimensão “espiritual” da existência. (Será que esses livros dão conta dessa dimensão?)

A ideia de que nossa vida não é mero produto do acaso ou do determinismo físico, que somos mais do que um amontoado de células organizadas pela seleção natural e que temos uma missão a cumprir é inegavelmente reconfortante, ainda que não tenhamos nenhuma garantia de que seja verdade. (Aliás, todas as evidências científicas, que tais livros questionam, apontam em sentido contrário.)

O fato é que vários pensadores, tanto místicos quanto racionalistas, vêm ao longo do tempo buscando uma resposta a essa questão. Para eles, sentido não é apenas propósito, mas direção, isto é, para onde vamos.

Não vou tratar aqui dos aspectos ontológicos do problema, que não teriam nada a ver com um artigo sobre linguagem, mas quero exatamente mostrar o que há de “linguístico” nessa questão.

O emprego da palavra sentido para denominar o propósito da existência não é gratuito: afinal, encontrar sentido em algo é descobrir o seu significado, é relacioná-lo a alguma experiência anterior, a alguma vivência que temos armazenada na memória, tal qual uma palavra, símbolo ou gesto evocam na mente uma imagem, concreta ou abstrata, de algo que conhecemos. O propósito dos signos é justamente significar, representar, ou seja, evocar algo à consciência. Portanto, encontrar sentido na vida, no trabalho ou num relacionamento é compreender o que tudo isso significa para nós, a que sentimentos ou vivências está ligado.

Para o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que se dedicou à relação entre o pensamento e a linguagem, o significado não existe em si, é arbitrário e estabelecido pelo homem. Isso tem uma série de implicações importantes. Em primeiro lugar, remete à ideia, também presente nas ciências da linguagem, de que não vivemos num mundo “real”, mas no mundo artificialmente criado pela nossa própria língua.

Em segundo lugar, sugere que muitos dos nossos conflitos existenciais e ideológicos — Deus existe? Por que há o Ser em vez do Nada? E o que é o Nada? O tempo flui ou somos nós que nos deslocamos nele? Mas, afinal, o que é o tempo? O que não pode ser pensado pode existir? Por que estamos aqui? Qual o sentido da vida? — dependem basicamente do significado (arbitrário e culturalmente estabelecido) que atribuímos às palavras Deus, tempo, Ser, Nada

Mais ainda, dependem da própria existência dessas palavras, o que indica, sobretudo no caso de conceitos abstratos, que, inversamente ao que acontece com objetos concretos, é a palavra que institui a “coisa”.

Os quasares já existiam antes de tomarmos conhecimento deles, isto é, de criarmos a palavra que os designa. Mas será que “propósito”, “sentido”, “missão”, “consciência”, “infinito”, “eternidade” existem objetivamente na natureza ou somos nós que, com nossas palavras, criamos esses objetos?

Segundo consta, nós, humanos, somos as únicas criaturas do planeta a fazer perguntas ontológicas, a questionar a nossa própria existência. E isso se dá exatamente porque somos a única espécie dotada de linguagem. (Observe que falo em “linguagem” e não em “comunicação”, pois esta todas as espécies superiores possuem.) Em outras palavras, é a linguagem que permite a consciência.

Há três grandes mistérios a torturar o intelecto humano: a origem do Universo (e, portanto, de tudo o que existe), a origem da vida e a origem da consciência (isto é, de uma forma de vida que sabe que está viva e que o Universo ao redor existe). Mas este último mistério se prende a um quarto e bem menos explorado: a origem da linguagem, tema que também trato no vídeo Falo, logo existo.

Quatro condições são necessárias à existência da consciência. Em primeiro lugar, vida: seres inanimados não têm consciência (embora alguns filósofos new age afirmem que sim). Em segundo lugar, atividade mental: amebas são vivas mas não conscientes. Em terceiro, memória: só posso compreender que um pássaro em voo está em movimento porque me lembro de que, um instante atrás, ele estava em outro lugar do céu; só posso saber que estou vivo e quem sou porque me lembro do meu passado. Se eu não tivesse memória, cada instante da minha existência seria como o primeiro, e eu viveria um eterno “nascimento”. Enfim, a consciência está ligada à sensação, não importa se real ou ilusória, da passagem do tempo.

Finalmente, a quarta condição para a consciência é a linguagem. Animais superiores, como cães e chimpanzés, são vivos, inteligentes, dotados de memória e, no entanto, não parecem ter consciência de si mesmos além de suas sensações, sentimentos e pulsões de satisfazer necessidades fisiológicas.

Eles amam, sentem medo, fome, libido, procuram por comida ou afeto, mas nunca se fazem perguntas ontológicas. E não porque não tenham palavras (muitos animais domésticos compreendem palavras humanas e as relacionam a objetos ou ações), nem porque não tenham conceitos (eles os têm, pois reconhecem padrões familiares, como a casa, a comida, o rosto ou o cheiro do dono), mas porque não têm como associar conceitos para formar enunciados e sobretudo porque não têm conceitos abstratos.

Somente a linguagem humana realiza abstrações, ou seja, cria um mundo “que não existe” a partir do que existe. Por isso, o maior impasse da filosofia não é descobrir se a realidade que vemos está aí ou não (é bem provável que sim, ainda que não seja exatamente como a vemos); é saber se a realidade que só vemos em nossa mente existe fora dela. Enfim, nossa vida tem algum sentido ou somos nós que damos sentido a ela?

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