Atma, o sopro da vida

Semana passada, falei sobre a etimologia e o significado das palavras mente, alma e espírito. E, como vimos, tanto alma quanto espírito trazem dentro de si a ideia de sopro, o sopro divino que dá vida à matéria de outro modo inerte. E vimos também que a ideia de vida está intimamente ligada à de respiração. Hoje quero falar sobre outro conceito também pertencente à esfera do imaterial que anima a matéria e que igualmente habita o campo semântico do sopro, da respiração e do ar: é o conceito hinduísta de Atma ou Atman.

Em sânscrito, língua sagrada da religião hindu, essa palavra, grafada no alfabeto devanágari como आत्म, significa “alma” ou “sopro vital”. O Atma é o mais elevado princípio humano, a própria essência divina, informe e indivisível. Para alguns filósofos orientalistas, é a própria conexão com Brahman, o Absoluto (aquilo que numa visão monoteísta chamaríamos de Deus, mas que, para as religiões orientais, não tem esse sentido).

Esse termo Atma aparece em Mahatma, “grande alma”, título dado a pessoas que, por meio da vontade e pela evolução espiritual através de muitas encarnações, atingiram um estágio espiritual avançado. O mais famoso dos Mahatmas, como se sabe, é Gandhi, herói nacional indiano.

Mas, como não sou teólogo, filósofo ou cientista da religião, quero aqui falar sobre a etimologia desse termo.

Em primeiro lugar, temos o grego ἀτμός (atmós), “vapor, ar quente”, que nos deu atmosfera, e que se tentou conectar etimologicamente com o sânscrito ātmán, mas parece que atmós, assim como atmís, nada tem a ver com aquela palavra, já que o a longo (ā) do sânscrito pressupõe um e longo (ē) em indo-europeu. De fato, o Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch (Dicionário Etimológico Indo-Europeu), de Julius Pokorny, apresenta a raiz *ēt-mén-, “vento, alma”, como origem tanto do sânscrito ātmán quanto do antigo alto alemão ātum (alemão moderno Atem, “respiração”, atmen, “respirar”).

Portanto, parte-se de uma raiz primitiva *ēt-, já que *-mén é um sufixo (o mesmo que aparece em palavras latinas como abdomen, dictamen, regimen, etc., que nos deram abdômen, ditame, regime, e tantas outras terminadas em ‑me ou ‑men).

Por fim, quem é mais velho deve se lembrar que antigamente havia no Brasil uma fábrica de produtos plásticos e brinquedos chamada Atma.

Corpo, mente, alma, espírito

As palavras que compõem o título desta postagem aparecem com muita frequência em textos de autoajuda, filosofia, religião e espiritualidade, e todas elas já existiam em latim: corpus, mens, anima, spiritus. Aliás, os romanos já tinham um lema que até hoje é muito verdadeiro: mens sana in corpore sano, “mente sã em corpo são”, um estímulo à prática da atividade física como benefício também à mente.

Embora cada um desses vocábulos represente um conceito distinto e bem definido, o fato é que, com exceção do corpo, entidade física e biológica de cuja conceituação ninguém tem dúvida, os demais conceitos por vezes se confundem, especialmente em línguas que não dispõem de todas as quatro palavras como o português. Então tentemos defini-las para mostrar por que seus significados às vezes se sobrepõem.

Segundo a moderna concepção da neurociência, a mente é o cérebro em funcionamento. Mas o produto da bioquímica do cérebro já era concebido como a sede da racionalidade humana bem antes do advento da neurociência. A mente racional é o instrumento do raciocínio e também da imaginação, do devaneio e dos sentimentos. Desde a Antiguidade, a mente era vista como algo inerente ao corpo vivo, isto é, como a inteligência e a capacidade de discernimento. Não por acaso, mens provém da raiz indo-europeia *men-, que significa “pensar”. Logo, a mente é o lugar onde mora o pensamento, o intelecto.

Os conceitos de alma e espírito se confundem até etimologicamente, pois anima e seu correlato animus significavam primitivamente “sopro”: anima/animus têm a ver com o grego ánemos, “vento”, ao passo que spiritus deriva do verbo spirare, “soprar”, que sobrevive em português em espirar, respirar, inspirar, expirar, aspirar, conspirar, suspirar, etc. Tanto a alma quanto o espírito eram concebidos pelos antigos como o sopro de vida ou sopro divino (essa visão estava presente em várias tradições, da Grécia e Roma antigas ao judaísmo, ao hinduísmo e ao budismo). É que, não podendo explicar racionalmente a natureza da vida e o porquê de alguns entes serem animados e outros não, pensava-se que a vida fosse um dom divino, algo soprado pelos deuses dentro da matéria inerte, dando-lhe vida e consciência. Além disso, no entendimento da época a vida estava diretamente ligada à respiração: se respira, é vivo; se é vivo, respira.

A alma (em grego psykhé) foi desde o início associada a um princípio sobrenatural, que só os seres vivos – e, segundo algumas tradições filosóficas, só o homem – possuem. E desde logo foi vista como algo que habita o corpo, mas distingue-se dele e dele se desprende ao morrermos. Assim, a alma poderia existir sem o corpo, mas não este sem a alma: seres inertes como as pedras não têm e nunca terão alma; o corpo animal ou vegetal, ao ser desprovido da alma, apodrece.

O espírito é um conceito que, para a filosofia, às vezes se confunde com a mente e às vezes com a alma. Para os estoicos, o espírito (em grego pneûma) é o que distingue o vivo do bruto: o intelecto, mas também os sentimentos, as emoções, os estados de alma (ou de espírito). Nesse sentido, a alma é o que dá vida, a mente é a faculdade da razão, e o espírito é a inspiração (vejam aqui o verbo spirare mais uma vez), a imaginação, a criatividade, a emoção, o senso estético, a moral, a ética, a virtude…

Mas o adjetivo espiritual é também muitas vezes empregado como sinônimo de religioso, como em “líder espiritual”, referindo-se a chefes de igrejas ou de seitas. Donde se deduz que o espírito seria um conceito sobretudo religioso.

Já para os espíritas, a alma é o espírito encarnado num corpo físico, e o espírito é uma realidade transcendente que, de tempos em tempos, se incorpora na matéria, dando origem aos seres vivos. É forçoso dizer que essa concepção se restringe à doutrina espírita, não sendo necessariamente partilhada pelas correntes filosóficas.

Essa nebulosidade na definição de mente, alma e espírito no âmbito tanto da filosofia quanto da religião levou a que certas línguas não dispusessem dos três conceitos, mas de apenas dois. Enquanto o português, o espanhol (mente, alma, espíritu), o italiano (mente, anima, spirito) e o inglês (mind, soul, spirit) dispõem dos três significados, o francês (âme, esprit), o alemão (Seele, Geist) e as línguas escandinavas, como, por exemplo, o sueco (själ, ande) admitem apenas dois. O resultado é que a palavra para “espírito” acaba sendo usada também para denominar a mente. Pode-se perceber isso ao consultar os verbetes “mente” e “espírito” em português na Wikipédia e depois carregar as páginas correspondentes nas demais línguas. O leitor verá que será redirecionado em ambos os casos à palavra correspondente a “espírito” em francês ou alemão, por exemplo.

Enquanto em português ou inglês a definição de mente na enciclopédia é fundamentalmente técnica e científica, e a de espírito é filosófica e místico-religiosa, em francês ou alemão tem-se no verbete “esprit” ou “Geist” uma mistura de ambas as coisas.

Nessas línguas, há um certo embaraço quando se trata de um texto técnico de neurociência, por exemplo, em que o conceito de mente, muito bem delimitado, não tem nada a ver com o de espírito, seja em seu sentido filosófico, religioso ou do senso comum. Nesses casos, o francês utiliza às vezes o termo mental (substantivo) para referir-se à mente enquanto fenômeno biológico. Em alemão, usa-se às vezes Verstand ou Vernunft (literalmente, “intelecto” ou “razão”) para distinguir a mente do espírito (Geist). Só que a mente em sentido neurológico não é exatamente o mesmo que o intelecto ou a razão, termos mais afeitos ao vocabulário da filosofia e do senso comum.

É curioso que, embora o latim tivesse o termo mens, este não tenha passado ao francês, língua da lógica e da razão (pelo menos é o que dizem), assim como o vocábulo germânico *mundiz, “mente”, de mesma origem que mens, só passou ao inglês mind, mas não às demais línguas germânicas, como o alemão, idioma que, segundo alguns, é o único no qual é possível filosofar.

O sentido linguístico da vida

Muitos livros, como As quatro faces do Universo, de Robert M. Kleinman, discutem o sentido da existência (e, particularmente, da existência humana), procurando provar, se é que isso é possível, que a nossa vida tem um propósito. Em muitos casos — este é um deles —, criticam a ciência, acusando-a de limitada, de reduzir a realidade à pura matéria, não dando conta da dimensão “espiritual” da existência. (Será que esses livros dão conta dessa dimensão?)

A ideia de que nossa vida não é mero produto do acaso ou do determinismo físico, que somos mais do que um amontoado de células organizadas pela seleção natural e que temos uma missão a cumprir é inegavelmente reconfortante, ainda que não tenhamos nenhuma garantia de que seja verdade. (Aliás, todas as evidências científicas, que tais livros questionam, apontam em sentido contrário.)

O fato é que vários pensadores, tanto místicos quanto racionalistas, vêm ao longo do tempo buscando uma resposta a essa questão. Para eles, sentido não é apenas propósito, mas direção, isto é, para onde vamos.

Não vou tratar aqui dos aspectos ontológicos do problema, que não teriam nada a ver com um artigo sobre linguagem, mas quero exatamente mostrar o que há de “linguístico” nessa questão.

O emprego da palavra sentido para denominar o propósito da existência não é gratuito: afinal, encontrar sentido em algo é descobrir o seu significado, é relacioná-lo a alguma experiência anterior, a alguma vivência que temos armazenada na memória, tal qual uma palavra, símbolo ou gesto evocam na mente uma imagem, concreta ou abstrata, de algo que conhecemos. O propósito dos signos é justamente significar, representar, ou seja, evocar algo à consciência. Portanto, encontrar sentido na vida, no trabalho ou num relacionamento é compreender o que tudo isso significa para nós, a que sentimentos ou vivências está ligado.

Para o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que se dedicou à relação entre o pensamento e a linguagem, o significado não existe em si, é arbitrário e estabelecido pelo homem. Isso tem uma série de implicações importantes. Em primeiro lugar, remete à ideia, também presente nas ciências da linguagem, de que não vivemos num mundo “real”, mas no mundo artificialmente criado pela nossa própria língua.

Em segundo lugar, sugere que muitos dos nossos conflitos existenciais e ideológicos — Deus existe? Por que há o Ser em vez do Nada? E o que é o Nada? O tempo flui ou somos nós que nos deslocamos nele? Mas, afinal, o que é o tempo? O que não pode ser pensado pode existir? Por que estamos aqui? Qual o sentido da vida? — dependem basicamente do significado (arbitrário e culturalmente estabelecido) que atribuímos às palavras Deus, tempo, Ser, Nada

Mais ainda, dependem da própria existência dessas palavras, o que indica, sobretudo no caso de conceitos abstratos, que, inversamente ao que acontece com objetos concretos, é a palavra que institui a “coisa”.

Os quasares já existiam antes de tomarmos conhecimento deles, isto é, de criarmos a palavra que os designa. Mas será que “propósito”, “sentido”, “missão”, “consciência”, “infinito”, “eternidade” existem objetivamente na natureza ou somos nós que, com nossas palavras, criamos esses objetos?

Segundo consta, nós, humanos, somos as únicas criaturas do planeta a fazer perguntas ontológicas, a questionar a nossa própria existência. E isso se dá exatamente porque somos a única espécie dotada de linguagem. (Observe que falo em “linguagem” e não em “comunicação”, pois esta todas as espécies superiores possuem.) Em outras palavras, é a linguagem que permite a consciência.

Há três grandes mistérios a torturar o intelecto humano: a origem do Universo (e, portanto, de tudo o que existe), a origem da vida e a origem da consciência (isto é, de uma forma de vida que sabe que está viva e que o Universo ao redor existe). Mas este último mistério se prende a um quarto e bem menos explorado: a origem da linguagem, tema que também trato no vídeo Falo, logo existo.

Quatro condições são necessárias à existência da consciência. Em primeiro lugar, vida: seres inanimados não têm consciência (embora alguns filósofos new age afirmem que sim). Em segundo lugar, atividade mental: amebas são vivas mas não conscientes. Em terceiro, memória: só posso compreender que um pássaro em voo está em movimento porque me lembro de que, um instante atrás, ele estava em outro lugar do céu; só posso saber que estou vivo e quem sou porque me lembro do meu passado. Se eu não tivesse memória, cada instante da minha existência seria como o primeiro, e eu viveria um eterno “nascimento”. Enfim, a consciência está ligada à sensação, não importa se real ou ilusória, da passagem do tempo.

Finalmente, a quarta condição para a consciência é a linguagem. Animais superiores, como cães e chimpanzés, são vivos, inteligentes, dotados de memória e, no entanto, não parecem ter consciência de si mesmos além de suas sensações, sentimentos e pulsões de satisfazer necessidades fisiológicas.

Eles amam, sentem medo, fome, libido, procuram por comida ou afeto, mas nunca se fazem perguntas ontológicas. E não porque não tenham palavras (muitos animais domésticos compreendem palavras humanas e as relacionam a objetos ou ações), nem porque não tenham conceitos (eles os têm, pois reconhecem padrões familiares, como a casa, a comida, o rosto ou o cheiro do dono), mas porque não têm como associar conceitos para formar enunciados e sobretudo porque não têm conceitos abstratos.

Somente a linguagem humana realiza abstrações, ou seja, cria um mundo “que não existe” a partir do que existe. Por isso, o maior impasse da filosofia não é descobrir se a realidade que vemos está aí ou não (é bem provável que sim, ainda que não seja exatamente como a vemos); é saber se a realidade que só vemos em nossa mente existe fora dela. Enfim, nossa vida tem algum sentido ou somos nós que damos sentido a ela?