Em tempos de Copa do Mundo, meu leitor Paulo Gilberto sugere uma nova modalidade esportiva, tipicamente brasileira. Vejamos o que ele diz:
Bom dia, Mestre,
O Brasil é um país cheio de excentricidades.
Deve ser, por exemplo, a única nação em que se “corre atrás do prejuízo”, modalidade esportiva não inserida, ainda, nos jogos olímpicos mundiais.
Caso veja alguma importância nisso, gostaria de conhecer sua opinião, preferentemente em comentário a postar no DIÁRIO DE UM LINGUISTA.
Fraterno abraço do admirador do seu trabalho.
Paulo Gilberto Morais dos Santos
Pois é, não é só o Paulo que reclama dessa modalidade esportiva esquisita, “correr atrás do prejuízo”: o famoso Prof. Pasquale Cipro Neto já havia apontado para essa suposta incoerência, argumentando que o que tem lógica fazer em caso de prejuízo é “correr atrás do lucro”.
Na verdade, quem está no “preju” precisa primeiro saldar o rombo em sua contabilidade, zerar o saldo negativo para só depois pensar em lucrar. E é aí que se pode intuir a origem dessa expressão. O indivíduo devedor precisa “correr atrás”, isto é, trabalhar, batalhar, se esforçar para quitar a dívida e assim livrar-se do prejuízo. Nesse sentido, até é plausível compreender a motivação de quem cunhou essa expressão.
Expressões idiomáticas e gírias nem sempre têm muita lógica, mas o fato é que “pegam”, ou seja, caem no gosto dos falantes, que passam a replicá-los como vírus sem muito critério: ninguém pára para pensar se essa ou aquela expressão tem lógica; o que importa é que ela dá conta do recado, vale dizer, expressa bem o que se quer dizer.
Muitos sabichões tentam “corrigir” certos provérbios e expressões idiomáticas, alegando que eles não têm lógica. Alguns casos, de tanto serem reproduzidos na mídia, acabaram famosos. Como exemplos temos “Quem tem boca vai a Roma”, que os sabichões corrigem para “Quem tem boca vaia Roma”. Ora, qual o sentido de vaiar Roma? Talvez os judeus dos tempos em que a Palestina estava ocupada pelos romanos tivessem algum motivo para vaiar as tropas romanas que desfilavam por seu território, mas qual ensinamento tiraríamos desse provérbio hoje?
Ao contrário, “Quem tem boca vai a Roma” nos ensina que, se estamos perdidos, basta usar a boca para pedir informações e assim chegar sem erro ao nosso destino.
Outro caso de correção de provérbio é “Quem não tem cão caça com gato”, “corrigido” para “Quem não tem cão caça como gato”, isto é, sozinho (supostamente, os gatos caçam sozinhos, mas, que se saiba, a maioria dos animais faz o mesmo). Só que a expressividade – e o efeito humorístico – do dito popular está justamente na substituição do cão pelo gato, que não é o animal mais indicado para levar numa caçada. Em resumo, o que o ditado quer dizer é: se você não tem os recursos mais adequados para realizar uma ação, utilize qualquer outro disponível.
Outro dia, minha esposa me repreendeu quando proferi o adágio “A raposa perde o pelo, mas não perde o vício”, dizendo que o correto é A raposa perde o pelo, mas não perde o viço”. Ora, nessa versão “corrigida”, o que se tem é um elogio à estética da raposa: mesmo pelada, ela continua viçosa. Só que o sentido do provérbio é outro: por mais que seja punido, o indivíduo de mau caráter sempre reincide em seus malfeitos. Trata-se da constatação desalentada de que o instinto maléfico ou criminoso é incorrigível.
O Prof. Pasquale também questionou a expressão “risco de vida”, alegando que o mais sensato é dizer “risco de morte”, já que se trata de um alerta para situação perigosa em que o indivíduo descuidado corre o risco de morrer. Ok, nada contra “risco de morte”, mas a expressão “risco de vida” foi cunhada pensando-se no risco que a vida corre em situação de perigo; trata-se, pois, do risco de perder a vida. Portanto, a meu ver, ambas as formas fazem sentido.
Há ainda aquela polêmica sobre se “cuspido e escarrado” não seria, na verdade, uma corruptela de “esculpido em carrara”: “Fulano é seu pai esculpido em carrara” (subentendido que carrara é o mármore proveniente da cidade italiana de Carrara). O problema é que essa expressão existe também em diversas outras línguas, inclusive em italiano, idioma do país onde fica Carrara. E em todas essas línguas, o que há são palavras equivalentes a “cuspido” ou “escarrado” e nenhuma menção ao mármore ou a escultura.
Enfim, a sabichonice por vezes é mais realista do que o rei e quer ensinar o padre-nosso ao vigário. Nuns poucos casos ela acerta, como na expressão “ter bicho carpinteiro”, que, muito provavelmente, é corruptela de “ter bicho no corpo inteiro”.
Quanto a “correr atrás do prejuízo”, nada impede que os inconformados com essa nova modalidade olímpica usem em seu lugar “correr atrás do lucro”. Mas o fato é que, lógicas ou não, as expressões idiomáticas se consolidam e sobrevivem por mais que se as combata. Ou seja, cada um corre atrás do que quiser.
Prof. Aldo, não estou aqui para ser advogado do prof. Pasquale, ele não precisa de mim para nada. O fato é que se o prof. Pasquale alguma vez defendeu apenas a expressão “risco de morte”, ele se retratou há muitos anos e sempre defende as duas expressões: “Risco de Morte” e “Risco de Vida”, mostrando inclusive que esta já foi utilizada por Machado de Assis, tem uso muito antigo na língua.
Ainda bem que ele reconhece que ambas as formas são corretas. De todo modo, um dia ele questionou “risco de vida”, logo a informação que veiculei em meu artigo é verídica, o que mostra que certas expressões são, sim, alvo de tentativas de correção. Seria ótimo se a mídia desse a mesma publicidade à retratação que dá à crítica.
“(…) por mais que se as combata” é:
(i) hipercorreção: porque perdemos, na linguagem corrente, o sentido da passiva sintética, a ponto de haver quem defenda que se trate de indeterminação do sujeito; essa percepção de que se trata de indeterminação é nítida nesse exemplo, em que “as” é objeto direto do verbo;
(ii) espanholismo, porque, em espanhol, aí, sim, a expressão é corrente e correta.
Em português, correto, mas não corrente, seria: “(…) por mais que se combatam”. É pouco corrente, porque não a interpretamos mais como “por mais que sejam combatidas”
Corrente e também correto seria assim, analiticamente, como ao fim do parágrafo anterior.
Caro Aldo:
Somente agora percebi que, interessantemente, logo antes de “por mais que se as combata”, vem “as expressões idiomáticas se consolidam (…)”. É interessante porque os dois trechos estão muito próximos um do outro, e o sujeito de ambas as orações deveria ser o mesmo, “as expressões idiomáticas”, pelo que, até pela proximidade, se ainda retivéssemos o sentido da passiva sintética, teríamos tido “as expressões idiomáticas se consolidam e sobrevivem por mais que se combatam”.
Como há muito que não o retemos, o sujeito da última oração é indeterminado e “as expressões idiomáticas” é retomado como objeto direto (“as”) do verbo combater. Neste caso, “se consolidam”, que, a meu ver, estaria, numa frase como esta, na voz passiva sintética, “as expressões idiomáticas são consolidadas e sobrevivem”, parece estar, na verdade, na voz reflexiva, como estaria num exemplo como este: “Eu me consolidei como um dos principais líderes do partido no Estado”.
Um abraço,
Rodrigo.
P.S.: Não faço o comentário como quem quisesse apontar erros, mas porque é interessante ver como reanalisamos determinadas construções da norma padrão não coincidente com a norma culta real.