Como é mesmo que se usa “mesmo”?

Olá, meu caro Aldo, tudo bem?
É que eu estou em dúvida na concordância destas duas frases:
a) Será que foi ela mesma/mesmo que praticou esse crime?
b) Foi ela mesma/mesmo que violentou aquela criança.
Agradeço muito o seu retorno; se puder, por gentileza, mande exemplos destas duas frases pra gente compreender melhor, ok?
Um abs!!!
Humberto Santos

A dúvida de Humberto é também a de muitos falantes. Acontece que “mesmo” é um pronome adjetivo que também pode funcionar como advérbio. E, como se sabe, adjetivos concordam em gênero e número com o substantivo ao qual estão ligados; já os advérbios são invariáveis. Portanto, determinar se “mesmo” deve ir para o feminino e concordar com o sujeito “ela” ou se deve permanecer no masculino nos exemplos apresentados acima depende de sabermos se essa palavra está funcionando como adjetivo ou como advérbio.

Como adjetivo, “mesmo” significa “próprio, igual, idêntico”: “esse serviço eu mesmo (isto é, eu próprio) posso fazer”; “fizeram-me duas vezes a mesma pergunta (ou seja, idêntica pergunta)”.

Como advérbio, “mesmo” significa “realmente, de fato”: “você precisa mesmo (isto é, de fato) sair agora?”; “ele está mesmo (realmente) falando a verdade?”.

Portanto, nos exemplos trazidos pelo leitor, é igualmente possível empregar “mesmo” ou “mesma” – o que vai mudar é o sentido da frase. Em “Será que foi ela mesma que praticou esse crime?” o sentido é de “Será que foi ela própria (e não outra pessoa) que praticou esse crime?”. Já em “Será que foi ela mesmo que praticou esse crime?”, o sentido é de “Será que foi realmente ela que praticou esse crime?” (Afinal, ela realmente praticou o crime?). É bem verdade que neste caso a diferença de sentidos é sutil.

No segundo exemplo, “Foi ela mesma que violentou aquela criança” significa que “foi ela própria (e mais ninguém) que violentou aquela criança”; em “Foi ela mesmo que violentou aquela criança”, o que se entende é que ela de fato fez isso, logo o crime é uma realidade.

Uma pequena reformulação da frase torna mais clara a diferença entre o adjetivo “mesmo/a/os/as” e o advérbio “mesmo”. Compare:

(1) Ela mesma violentou a criança. x (2) Ela violentou mesmo a criança.

Na frase (1), em que “mesma”, no feminino, concorda com “ela” e, portanto, é adjetivo, a pergunta que fazemos é “quem violentou a criança?”. Já na frase (2), em que “mesmo” não está ligado a “ela” e sim ao verbo “violentou”, agindo, pois, como advérbio, a pergunta que fazemos é “isso realmente aconteceu?”.

5 comentários sobre “Como é mesmo que se usa “mesmo”?

  1. Professor Aldo, hoje não vou fazer nenhum comentário a respeito do texto que, como sempre, é esclarecedor.
    Gostaria apenas de congratulá-lo pelo dia do professor. E que venham muitos outros em sua vida de sucesso.

  2. Ótima explicação. Esclarecedora mesmo. “A mesma vai elucidar a dúvida de muita gente.” Epa! As aspas são para demarcar um tipo de construção com que me deparo muito nas redações — “mesmo (a)” como, pronome pessoal, retomando termo da oração. Aí não dá, não é? Fere a norma culta.

    1. O uso de “o mesmo” como pronome pessoal não só fere a norma culta como é tremendamente pedante. Esse uso veio do mesmo linguajar burocrático que criou o “venho por meio desta à presença de V.S.ª” e “sendo só para o momento, subscrevo-me”. Ou seja, trata-se de um uso pseudoelegante, algo muito brega, mas que os burocratas acham chique, e os não burocratas copiam pensando que se trata de bom português.

  3. Muito interessante! Mas há relatos do “mesmo”, como pronome pessoal, sendo usado no século XVIII por gente erudita, a quem o restrito acesso escolar era privilegiosamente destinado, como padres e escrivãos. Esse fato nos faz pensar que havia uma lógica na escolha desse termo, a qual carece pesquisa. Parabéns pelo Diário de um linguista. É muito bom!

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