Que tal uma linguagem neutra de número?

Sexta-feira passada, tive o prazer de participar do programa Pauta Nossa, da rádio Mundial News FM do Rio de Janeiro (link para o vídeo do programa: www.youtube.com/live/1yaVofmqBLY?si=RId9BcdQ7P8di2ve), no qual fui entrevistado por Renata Barcellos e Paulo Roberto Accioli, aos quais mais uma vez agradeço pela oportunidade. Nesse programa, um dos temas abordados foi a famigerada linguagem neutra de gênero (hoje em dia, em qualquer espaço em que se fale sobre língua portuguesa, o tema da linguagem neutra vem à baila). Foi-me perguntado qual o meu posicionamento sobre a questão, ao que respondi que, como estudioso da linguagem, não me cabe ser contra ou a favor, isto é, fazer juízos de valor de bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto, mas apenas me limitar a estudar o fato objetivamente, como é o papel de toda ciência. Portanto, minha tarefa é analisar à luz dos dados observáveis por que esse fenômeno está ocorrendo, se ele tem potencial para ter adesão social (ou seja, se a sociedade como um todo poderá adotá-lo), se a estrutura da língua comporta um terceiro gênero, se o aparelho cognitivo de quem fala português desde a infância consegue adaptar-se a essa nova estrutura, e assim por diante. Não me cabe, como fazem certos colegas meus que classifico de intelectualmente desonestos, militar a favor dessa linguagem — ou, eventualmente, contra ela — por razões ideológicas ou político-partidárias dentro de um discurso que, pela sua natureza, exige (tanto quanto possível, é sempre bom ressaltar) isenção, imparcialidade e objetividade, logo um policiamento contra a interferência de qualquer viés pessoal na análise. Como todo cidadão, tenho o direito de ter minhas posições e preferências subjetivas, mas, como cientista, devo seguir a máxima de Bertrand Russel:

Quando estiver estudando qualquer assunto ou considerando qualquer filosofia, pergunte-se apenas quais são os fatos e qual é a verdade que os fatos confirmam. Nunca se deixe desviar nem por aquilo em que você gostaria de acreditar nem pelo que você acha que teria efeitos sociais benéficos se acreditasse. Olhe apenas, e unicamente, para quais são os fatos.

E um dos fatos objetivos que advêm do estudo científico das línguas e da linguagem humana é que a língua muda, mas isso ocorre espontaneamente, por um movimento lento e inconsciente de toda a sociedade, jamais por imposição de quem quer que seja (nem governos autoritários conseguem mudar a língua), e que o setor da linguagem mais sujeito a mudanças é o vocabulário, uma vez que reflete diretamente a mudança social. Já a parte mais resistente à mudança é a gramática, pois envolve a própria estrutura do idioma. Não é difícil perceber como a pronúncia do português se alterou nas últimas décadas: basta assistir a um filme brasileiro antigo, do tipo das chanchadas da Atlântida dos anos 1950, para perceber como os atores de então pronunciavam de forma diferente da nossa. Também o léxico da época continha palavras que hoje não se usam mais, assim como não tinham muitos dos vocábulos que utilizamos correntemente hoje. No entanto, não encontraremos praticamente nenhuma construção sintática que nos soe estranha hoje em dia; quando muito, podemos encontrar opções estilísticas diferentes, como “chamar-te” em vez de “te chamar” ou “chamar você”, mas isso não representa mudança na estrutura da língua, visto que todas essas construções são permitidas atualmente como o eram na década de ’50 ou no século XIX.

Para vocês entenderem o que significa uma alteração radical na estrutura da língua, como a implantação de um terceiro gênero, que inclua pronomes como elu, iste, aquile e flexões de nomes como amigue e bonite, vou dar um exemplo análogo.

Suponhamos que por alguma razão ideológica qualquer (afinal, ideologias não precisam de razões, não é?) surja um movimento advogando que deveríamos adotar um terceiro número gramatical em português. Como todos sabem, nossa língua comporta dois números, o singular, para um, e o plural, para dois ou mais. Há línguas que admitem um terceiro gênero, o dual, para duas coisas ou pessoas. Por exemplo, o grego clássico e o antigo germânico tinham o dual. Em línguas assim, o singular refere-se a um, o dual a dois, e o plural a três ou mais. (Há ainda línguas que têm o trial, para três; nestas, o plural começa com quatro. Também há línguas que não fazem nenhuma distinção de número.)

Pois bem, sabemos que o plural se indica em português pela colocação de um s ao final da palavra; a ausência desse s é o que indica o singular. Assim, se digo os meninos, todos sabem que são dois ou mais; se digo o menino, trata-se de um só. Agora vou convencionar que o dual em português se fará colocando-se um r ao final das palavras. Teremos então frases assim:

  • Ar duar salar estão ocupadar.
  • Minhar mãor estão sujar.
  • Seur rinr apresentam doir cistor hemorrágicor.
  • Meur doir filhor vão se formar médicor.
  • Comprei um par de sapator.
  • Ambar ar respostar estão corretar.

Eu pergunto: vocês conseguiriam falar assim? Talvez treinando bastante, fazendo várias horas de aula de conversação e redação nesse novo português, vocês acham que dentro de alguns meses estariam fluentes nessa nova gramática? Mas, sobretudo, vocês estariam dispostos a despender esse tempo para adestrar-se nessa novilíngua? Vocês não acham que o singular e o plural de que já dispomos dão conta perfeitamente do recado para comunicarmos nossas ideias sem ambiguidade?

É claro que o exemplo que dei é artificial e provavelmente um movimento em prol do dual jamais ocorrerá porque, que se saiba, não há minorias excluídas que pudessem reivindicá-lo, mas, mesmo que uma mudança estrutural na língua tivesse alguma justificativa socialmente plausível (e o argumento de que a língua portuguesa é machista não passa de fake news, já desmentida muitas vezes por estudos linguísticos sérios, obviamente não pelo arremedo político-ideológico de ciência feito por pseudolinguistas), qual seria o custo de implantá-la? Essa mudança seria viável a curto ou médio prazo? Os atuais falantes a adotariam e a usariam com fluência, sem titubeios, sem se sentir ridículos? Uma maioria estaria disposta a dobrar-se ao desejo de uma minoria pela qual, por sinal, nem sente empatia?

Como estudioso sério da linguagem humana há mais de 40 anos, eu tenho as respostas a essas perguntas, mas vou deixar a vocês, leitores, a tarefa de respondê-las com base em sua própria experiência pessoal.

Boa semana a todos, todas, todes, todxs e tod@s!

Brasileiros e brasileiras

Foi o ex-presidente da república José Sarney quem eternizou a expressão “brasileiros e brasileiras”, com a qual iniciava seus discursos. Antes dele, o general-presidente João Figueiredo dizia apenas “meus amigos”. E Getúlio Vargas começava suas preleções com “trabalhadores do Brasil”.

Hoje, por influência da linguagem politicamente correta e das pautas identitárias, é cada vez mais comum ouvirmos “bom dia a todos e todas”, “Vossas Excelências senadoras e senadores”, e assim por diante. É bem verdade que a expressão “senhoras e senhores” é muito antiga e existe em todas as línguas – quem não conhece o famoso ladies and gentlemen? –, o que indica que a preocupação em abarcar na comunicação homens e mulheres (ou, antes, mulheres e homens) não é nova.

O problema é que, desde que se passou a disseminar a fake news de que o português é uma língua machista porque faz a concordância no plural pelo gênero masculino (por exemplo, brasileiros inclui homens e mulheres nascidos no Brasil), a distinção todos e todas, cidadãs e cidadãos, etc., passou a ser sentida como uma necessidade e uma forma de deferência ao chamado “sexo frágil” – isto sim uma denominação machista, já que de frágil as mulheres não têm nada!

Tenho ressaltado muitas vezes que essa ideia de que línguas são machistas decorre da confusão que se tem feito entre quatro coisas diferentes: sexo biológico, gênero psicossocial, gênero semântico e gênero gramatical. Mas não custa esclarecer essa diferença mais uma vez.

Sexo biológico é uma característica que todos os seres vivos sexuados têm e é algo que herdamos “de fábrica”, ou seja, praticamente todo animal pluricelular, incluindo nós seres humanos, nasce macho ou fêmea – a única exceção são alguns animais hermafroditas, que são macho e fêmea ao mesmo tempo.

No entanto, o ser humano, por sua complexidade psíquica, desenvolveu paralelamente ao seu sexo biológico a característica de gênero psicossocial, a qual, por sinal, foi ignorada pela ciência durante muito tempo. Ocorre que muitos indivíduos têm uma orientação sexual distinta da majoritária heterossexualidade: são os homossexuais, os bissexuais e os assexuais (não confundir com assexuados, que são animais não dotados da distinção macho/fêmea). Além disso, independentemente de sua orientação sexual, muitas pessoas se reconhecem como transexuais ou transgênero (não recomendo a forma “transgêneras” e já comentei esse ponto em outra postagem), não binárias, gender-fluid e muitas outras denominações, o que tem feito a sigla LGBTQIA+ crescer cada vez mais (a despeito de o sinal + já abrir espaço para novos acréscimos).

Quanto ao gênero semântico, trata-se de como as línguas interpretam – ou interpretaram até hoje – a realidade dos sexos biológicos e dos gêneros psicossociais. Os gêneros semânticos são cinco:

  • masculino (seres animados do sexo masculino): pai, menino, Joãozinho (O meu cachorro se chama Toby);
  • feminino (seres animados do sexo feminino): mãe, menina, Mariazinha (A minha cadela se chama Viki);
  • neutro (nem masculino nem feminino, para seres inanimados e abstratos): caderno, felicidade (A ração dos cachorros acabou);
  • sobrecomum (masculino ou feminino, para seres animados cujo sexo não está determinado): criança, testemunha, vítima (O animal que vi na rua estava ferido);
  • complexo (masculino e feminino, para coletivo de seres animados de ambos os sexos): ser humano, brasileiros, humanidade (O cão é um animal mamífero).

Esses cinco gêneros semânticos se manifestam nas diferentes línguas através dos gêneros gramaticais. Nesse sentido, há desde línguas com quatro gêneros gramaticais, como o sueco (masculino, feminino, neutro e comum) até línguas sem gênero, como o hopi, da América do Norte. O alemão e o inglês têm três gêneros, masculino, feminino e neutro, sendo que em alemão a distribuição dos seres entre esses gêneros é bastante arbitrária (por exemplo, Sonne, “Sol”, é feminino, Mond, “Lua”, é masculino, Mädchen, “menina”, é neutro). Já em inglês, seres com gênero semântico masculino ou feminino têm igualmente gênero gramatical masculino ou feminino (man é masculino e substituível pelo pronome pessoal he, woman é feminino e substituível por she); os demais entes são todos agrupados no gênero neutro. Os gêneros sobrecomum e complexo são frequentemente representados pelo pronome plural invariável they.

Por fim, o português e todas as línguas neolatinas com exceção do romeno têm dois gêneros gramaticais, masculino e feminino, resultado da convergência entre o masculino e o neutro latinos num único gênero por força da evolução fonética fortuita.

Como resultado, o português subsume nos gêneros masculino e feminino conceitos portadores dos cinco gêneros semânticos e faz a concordância no plural pelo gênero gramatical masculino por uma simples questão de convenção decorrente da evolução histórica do idioma, desprovida de qualquer viés ideológico.

Aliás, justamente por não corresponderem exatamente a nenhum gênero semântico e menos ainda a gênero psicossocial ou sexo biológico, os gêneros gramaticais deveriam chamar-se gênero 1 e gênero 2 ou gênero marcado e gênero não marcado, como sugerem muitos linguistas. Isso acabaria de vez com essa ideia equivocada de que a língua é machista baseada na confusão irrefletida entre gramática, psicologia e biologia. Vou além: a própria denominação gênero dada a uma categoria gramatical deveria ser trocada por outra para não se confundir com a noção de gênero psicossocial. Fica aí a minha sugestão aos colegas linguistas e aos gramáticos.

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Em agosto de 1977, como reação à ditadura militar então vigente, o Prof. Goffredo da Silva Telles Junior leu diante das arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – a famosa faculdade do Largo de São Francisco – a hoje histórica Carta aos Brasileiros, um libelo em favor da restauração do estado democrático de direito. Hoje, exatos 45 anos depois, quando nossa democracia volta a ser ameaçada, um novo manifesto é lido no mesmo local, com igual impacto social, desta vez batizado de Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Sinal dos tempos, a nova carta enfatiza a distinção de gênero e gentilmente coloca as mulheres em primeiro lugar. Pelo andar da carruagem, se dentro de mais algum tempo surgir nova ameaça à nossa democracia, terá de ser redigida uma Carta aos Brasileiros, Brasileiras e Brasileires.

Por que flexionamos em gênero os numerais um e dois?

Boa noite, me chamo Rodrigo.

Acompanho seu blog (Diário de um Linguista), já há certo tempo.

Tenho uma dúvida que sempre quis saber a resposta, já perguntei a outro professor e ele não soube responder. Dado o seu óbvio conhecimento, acredito que o senhor poderia me ajudar.

Eu sempre quis saber a razão de alguns números variarem de acordo com o gênero e outros não. Entendo que o “um” varie pois além de número é artigo, mas por que há “dois” e “duas” mas não há “três” e “tresa”? Por que é correto falar que tenho duzentAs laranjas, mas não que tenho duzentas e quatrA laranjas?

Caro Rodrigo, a explicação de por que o português flexiona em gênero os numerais um, dois, duzentos, trezentos e demais centenas está no latim. Como você sabe, o português descende do latim, e nessa língua havia três gêneros: masculino, feminino e neutro. Consequentemente, o latim flexionava nesses três gêneros os numerais de um a três e mais as centenas a partir de duzentos. Tínhamos então: unus, una, unum; duo, duae, duo; tres, tres, tria; ducenti, ducentae, ducenta; trecenti, trecentae, trecenta, e assim por diante. Observe que em espanhol, francês e italiano, línguas-irmãs do português, somente o um admite flexão no feminino, os demais numerais são invariáveis. Lembro também que o numeral um não é flexionável porque também é artigo indefinido; na verdade, ocorreu o oposto: o artigo indefinido derivou do numeral, até porque em latim não havia artigos.

Mas por que os numerais acima de três não se flexionavam em latim? Para responder a essa pergunta, temos de retroceder ainda mais no tempo, até cerca de 4 mil anos a.C., quando se falava a língua-mãe do latim, o indo-europeu. Nessa língua, somente os numerais de um a três eram flexionáveis. Isso leva os linguistas históricos, como eu, a pensar que o indo-europeu descendia de uma outra língua, nomeada pelos especialistas de nostrático, que só tinha numerais de um a três, o que, aliás, é a situação verificada na maioria das línguas do mundo.

De fato, línguas ágrafas, como são os idiomas de tribos primitivas, só contam até dois ou no máximo três porque culturas simples como as tribais não têm muito o que contar. Essas línguas são chamadas de one-two-many, ou “um-dois-muitos” porque quantidades acima de dois são genericamente tratadas como “muito”.

Em resumo, o nostrático, que teria dado origem ao indo-europeu, deve ter sido falado por volta de 8 mil anos a.C. por uma população de caçadores-coletores nômades, portanto uma sociedade tribal extremamente simples.

A título de curiosidade, a origem remota do numeral latino tres é a mesma da preposição trans, que quer dizem “além” (como em transnacional, por exemplo). Ou seja, tres designava originalmente tudo o que está além de dois, algo como um, dois e o resto.

“Milhões” tem flexão de gênero?

Bom dia, Prof. Aldo! Tenho ouvido várias vezes no rádio e na TV jornalistas dizerem “duzentas milhões de pessoas”, “quinhentas milhões de vacinas”, etc. Essa concordância está correta? É que soa mal aos meus ouvidos. Obrigado.
Raul Teixeira de Mello

Caro Raul, também soa mal aos meus ouvidos. Mas a questão não deve ser se essa concordância soa bem ou mal e sim se ela tem justificativa gramatical ou não. Quando algo soa mal aos nossos ouvidos, isso pode ser indício de que, de fato, há um erro gramatical. No entanto, uma força tão poderosa quanto a escola e seu ensino de gramática normativa são os modismos linguísticos.

De fato, de algum tempo para cá pessoas andam fazendo essa concordância estranha entre numeral e substantivo. E como a evolução linguística começa sempre com uma inovação feita por um único falante que vai pouco a pouco contagiando os demais até tornar-se onipresente, não dá para prever se essa nova maneira de concordar se generalizará e virará norma ou se será apenas mais um modismo passageiro como tantos que já tivemos.

O fato é que alguns numerais em português admitem flexão de gênero e por isso concordam com o substantivo que quantificam. É o caso de “um/uma”, “dois/duas”, “duzentos/duzentas”, “trezentos/trezentas”… até “novecentos/novecentas”. Também os milhares admitem essa flexão, já que um milhar é formado por um numeral entre “um” e “novecentos e noventa e nove” seguido da palavra “mil”. Temos então “dois mil/duas mil”, “duzentos mil/duzentas mil”, e assim por diante.

No entanto, até o momento nenhuma gramática admite o mesmo tipo de flexão quando se trata de “milhão/milhões”, “bilhão/bilhões”, etc. É por isso que não dizemos “uma milhão de pessoas”, ou seja, o cardinal entre “um” e “novecentos e noventa e nove” deve concordar com a palavra “milhão/milhões” e não com o substantivo subsequente.

Ora, se é errado dizer “uma milhão”, é igualmente errado dizer “duas milhões” ou “duzentas milhões”. Afinal, “duas” ou “duzentas” neste caso quantifica “milhões” e não “pessoas” ou “vacinas”.

No entanto, é bem provável que esse modismo se espalhe, ainda mais que está sendo impulsionado por formadores de opinião como os jornalistas, e qualquer dia desses venha a ser abonado por algum gramático. É que muitos gramáticos normativos não entendem que a norma-padrão da língua, por ser uma variedade artificialmente construída apenas para uso formal (ou, dito de outro modo, ninguém fala no dia a dia conforme essa gramática), esta deveria primar pela simplicidade, racionalidade, uniformidade e generalidade das regras, evitando exceções desnecessárias. Em vez disso, tais gramáticos acabam abonando certos usos injustificáveis segundo a lógica apenas porque se tornaram difundidos.

Felizes são os falantes de línguas como, por exemplo, o inglês, o francês, o italiano e o alemão, que não admitem flexão de gênero em numerais exceto para “um/uma” (em inglês nem isso).

A globalização da linguagem neutra de gênero

A onda da linguagem neutra de gênero não atinge só a língua portuguesa. O inglês, que, por sinal, é o idioma pátrio do politicamente correto, tem nos dado diversos exemplos disso, facilitados pelo fato de que a própria gramática da língua não distingue gêneros a não ser em situações muito específicas. Assim, teacher pode referir-se tanto a um professor quanto a uma professora; doctor, a um médico ou médica; e assim por diante.

No entanto, há algumas profissões que admitem masculino e feminino. Aquelas terminadas por man, por exemplo, como postman (carteiro), milkman (leiteiro) e chairman (presidente) permitem a substituição de man por ‑woman – embora isso não fosse muito comum até as mulheres passarem a exercer as funções de carteira (não confundir com o objeto em que se guarda dinheiro), leiteira e presidenta (esta última principalmente depois do mandato da inesquecível Dilma Rousseff).

Além dessas profissões, temos waiter (garçom) x waitress (garçonete) e actor (ator) x actress (atriz). Não obstante, já há algum tempo a imprensa e a Wikipédia vêm empregando o termo actor indistintamente para nomear homens e mulheres (algo parecido aconteceu na língua portuguesa, que decidiu aposentar poetisa e chamar a mulher que verseja de poeta).

Pois Cate Blanchett, que foi a presidente/presidenta do júri do Festival Internacional de Cinema de Veneza deste ano, afirmou que sempre foi “ator”. Durante a coletiva de imprensa de abertura do evento, quando perguntada sobre o que achou da decisão do Festival de Berlim de dar “prêmios neutros” em gênero em vez das tradicionais categorias de “melhor ator” e “melhor atriz”, respondeu:

— Não é um posicionamento político, mas eu sempre me referi a mim mesma como ator. Eu acho que não temos uma linguagem de gênero específica e sou de uma geração em que a palavra “atriz” era sempre usada de modo pejorativo.

Sua colega, a atriz Tilda Swinton, acrescentou:

— Eu fiquei realmente muito feliz em saber dessa decisão de Berlim e acho inevitável que todos venham a fazer o mesmo. É algo tão óbvio para mim.

Faz algum tempo que a língua inglesa também neutralizou a palavra dog para designar tanto cães quanto cadelas. É que a palavra específica para “cadela” em inglês, bitch, assumiu a conotação depreciativa de “prostituta” – quem já foi xingado de son of a bitch sabe bem disso.

O inglês também modificou sua gramática em função da neutralização de gênero. Com isso, uma frase como “Todo mundo sabe o que quer”, que antes se dizia Everybody knows what he wants, hoje é formulada como Everybody knows what they want, ou seja “Todo mundo sabe o que querem”, pois they é pronome pessoal único de plural e corresponde tanto ao plural de he quanto ao de she.

Enquanto isso, no Brasil, alguns malucos propõem substituir ele e ela por ile, aquele e aquela por aquile, este e esta por iste, e assim por diante. Vocês se imaginam falando desse jeito? Eu não.

O pronome inventado

É possível inventar um pronome? Certas categorias de palavras são inventários fechadíssimos, cujas unidades, herdadas de uma língua ancestral, estão lá desde sempre, e nos quais nenhuma nova unidade pode entrar. Dentre essas categorias estão os numerais (pelo menos os de um a três), os nomes das partes do corpo e os pronomes, principalmente os demonstrativos e os pessoais.

Por isso, pesquisas filogenéticas, que tentam reconstituir as árvores genealógicas das línguas, costumam usar essas palavras para determinar com segurança o parentesco entre dois idiomas. Sendo quase nula a possibilidade de esses termos passarem de uma língua a outra por empréstimo, se duas línguas apresentam formas aparentadas dessas palavras, provavelmente pertencem à mesma família.

Alguns pronomes até podem surgir ao longo da história da língua. Na verdade, eles evoluem a partir de outros pronomes. É o caso de “você”, que proveio do antigo pronome de tratamento “vossa mercê”. Mas não se trata de empréstimo, muito menos de invenção.

Apesar disso, o sueco ganhou na década de 1960 um novo pronome pessoal: trata-se do hen, proposto por linguistas com o objetivo de neutralizar a oposição masculino/feminino numa época dominada pelos movimentos feministas e de direitos civis, em que o uso do gênero masculino em expressões como “ser humano” era malvisto. (Reflexos disso se encontram até hoje em expressões como “brasileiras e brasileiros”.)

Em sueco, há quatro gêneros gramaticais – e consequentemente quatro pronomes pessoais: masculino (pronome reto han), feminino (hon), comum (den) e neutro (det). Praticamente todas as palavras dessa língua pertencem ao gênero comum (chamado de realgenus em sueco); o masculino e o feminino são reservados a seres animados, especialmente humanos, cujo sexo está determinado (portanto, “pessoa”, “animal”, “vítima”, etc., são do gênero comum). As palavras neutras formam uma pequena classe de substantivos abstratos ou inanimados que, por razões históricas, não foram incorporados ao realgenus.

Porém, em qualquer língua em que haja distinção de gênero, há casos em que é preciso falar de alguém cujo sexo não se sabe, mas que seria deselegante tratar por um pronome neutro. Em inglês, por exemplo, seria absurdo usar o pronome it para referir-se a uma pessoa que se desconhece se é homem ou mulher. Por isso, as línguas tentam contornar essa dificuldade inventando formas gráficas que camuflem a distinção.

Em português, inúmeras cartas se iniciam por um “Prezado(a) Senhor(a)”. (Um modismo idiota vem utilizando, sobretudo na internet, o sinal “@” para desfazer a oposição de gênero: “querid@s amig@s”.) Pior ainda é o uso de “x”, que torna as palavras impronunciáveis: “queridxs amigxs”.

No inglês, é comum empregar he or she (“ele ou ela”) para expressar o chamado gênero complexo (isto é, ao mesmo tempo masculino e feminino, abarcando homens e mulheres). Uma versão piorada desse estratagema é a grafia (s)he. Em textos informais, usa-se atualmente they (“eles” ou “elas”) para neutralizar a oposição de gênero, mesmo que o referente seja singular.

Outra estratégia do inglês foi adotar o termo chairperson para designar o cargo de presidente, já que o tradicional chairman contém o elemento man, “homem”, remontando aos tempos em que todos os dirigentes eram homens. (O nosso “Presidenta” vai na direção oposta.)

O próprio sueco já adotava grafias estranhas para neutralizar han e hon: h*n, h?n, h_n, haon, hoan, todas reprovadas pela gramática. E a maioria delas impossível de pronunciar. O fato é que não se faz uma mudança na língua “de cima para baixo”, a partir de uma criação de laboratório, sem provocar estranheza nos falantes – e, acima de tudo, muita polêmica. O resultado prático é que o hen acabou abandonado pouco após sua criação, até que, em 1994, o linguista Hans Karlgren o propôs novamente como um pronome neutralizador de gênero para determinadas situações de escrita. Em 2009, hen aparece na Enciclopédia Nacional Sueca descrito como pronome pessoal neutro a ser usado em lugar de han e hon. E em 2012 Jesper Lundqvist lançou o livro infantil Kivi och Monsterhund (“Kivi e o cachorro-monstro”, sem tradução para o português), em que utiliza hen para falar às crianças sem discriminá-las entre meninos e meninas.

Segundo Susanna Karlsson, chefe do Språkrådet (Conselho da Língua), o polêmico pronome serve para disseminar a ideia de igualdade. Não só a igualdade entre homens e mulheres, mas também a de pessoas transgênero. No que é contestada por seu colega Mikael Parkvall, para quem a ideia de que a língua determine o pensamento, embora popular, é bastante questionável em termos científicos. “O laço entre o idioma e o pensamento não é especialmente forte e não se torna mais paritário só porque se utiliza um pronome neutro”, diz.

Para Sven-Göran Malmgren, redator do dicionário da Academia Sueca, “não há um único exemplo no mundo em que um pronome tenha sido inventado e depois imposto”. A própria inclusão da palavra nas próximas edições do mais prestigioso dicionário do idioma depende da adesão popular ao termo. O que, até o momento, parece não estar acontecendo. Segundo pesquisa realizada pelo jornal Aftonbladet, 96% das pessoas entrevistadas não utilizam hen nem acreditam que se possa construir uma sociedade igualitária pela simples invenção de palavras.

Jacaré fêmeo e cobra macha

Em 2013, quando eu mantinha um blog no portal da extinta revista Língua Portuguesa, o leitor Jota Paschoal me enviou a seguinte pergunta: “Se o adjetivo segue o gênero do substantivo (menina bonita, rapaz malvado), então é correto dizermos ‘jacaré fêmeo’ e ‘cobra macha’?”. Como outro leitor, Patrick Medeiros, me pede agora para republicar a resposta, aqui vai.

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Como na canção Macha, Fêmeo, de Arnaldo Antunes, os adjetivos “macho” e “fêmeo” admitem flexão de gênero e número. No dicionário Houaiss, “macho” é definido como “relativo ou próprio do sexo masculino”, e “fêmeo” (assim mesmo, no masculino, como costuma ser a entrada de todos os adjetivos no dicionário) define-se como “relativo a fêmea ou a mulher” e também “diz-se de qualquer objeto que se ajusta a outro, que nele penetra (o macho)” e exemplifica com “tomada fêmea” (mas poderíamos ter também “plugue fêmeo”).

A estranheza se dá pela confusão que por vezes se faz entre gênero gramatical e sexo biológico. É o caso do adjetivo “grávido”, que parece incoerente com o fato de que somente fêmeas engravidam. No entanto, nesse caso é possível pensar em machos grávidos (por exemplo, o cavalo-marinho é uma espécie de peixe em que é o macho quem gesta as ovas) ou empregar o termo em sentido metafórico: muitos maridos se dizem grávidos enquanto suas esposas é que esperam o bebê. Há até uma peça teatral em cartaz atualmente com esse título. Grávido também é o nome de uma canção que Gonzaguinha compôs durante a gestação de sua mulher.

Mas voltando à questão levantada pelo amigo Jota Paschoal, por que dizemos “jacaré-fêmea” e “cobra-macho”? Como se sabe, os nomes de alguns animais são substantivos epicenos ou comuns de dois gêneros (embora algumas pessoas erradamente façam o feminino de “jacaré” como “jacaroa”), o que torna necessário lançar mão de um expediente morfológico para distinguir os gêneros. Esse expediente consiste em formar uma palavra composta com os substantivos “macho” e “fêmea”. E aí está a explicação de por que não se diz “jacaré fêmeo” ou “cobra macha”: é que “macho” e “fêmea” neste caso são substantivos e não adjetivos. É por isso também que tais palavras se escrevem com hífen.

Ou seja, “jacaré-fêmea” é a fêmea do jacaré; “cobra-macho” é o macho da cobra, e assim por diante. Entretanto, não está errado dizer “este jacaré é fêmeo” ou “esta cobra é macha”. Só que, dado o conflito entre gênero e sexo acima mencionado, prefere-se dizer “este jacaré é (uma) fêmea” e “esta cobra é (um) macho”. Em outras palavras, prefere-se empregar o substantivo no lugar do adjetivo. Isso se aplica até a “mulher-macho”, como na canção eternizada por Luiz Gonzaga.

Questão de gênero

Atualmente, usam-se cada vez mais expressões como “questão de gênero” quando se debatem problemas relativos à discriminação e aos direitos das mulheres, dos homossexuais e dos transexuais (já correntemente chamados de “transgêneros”). Já que não se trata de questão linguística, mas de diferença e discriminação entre os seres humanos quanto a seu sexo, é apropriado o uso da palavra “gênero” nesse caso?

Nota-se, de algum tempo para cá, a tendência a empregar a palavra “gênero”, antes reservada ao discurso da gramática, no sentido de “sexo” (masculino ou feminino). Existe uma óbvia diferença entre o gênero gramatical e o sexo biológico. Afinal, alguns idiomas atribuem gênero masculino ou feminino a substantivos inanimados ou assexuados, enquanto outros atribuem gênero neutro a esses substantivos ou então prescindem completamente da noção de gênero. Mesmo em línguas que fazem essa distinção, o gênero gramatical não necessariamente coincide com o sexo biológico: em alemão, por exemplo, Mädchen (“menina”) é do gênero neutro.

De onde veio, então, essa tendência a usar “gênero” em lugar de “sexo”? Vários fatores concorreram para isso.

Em primeiro lugar, a ambiguidade da palavra “sexo”, que tanto pode se referir à distinção masculino/feminino quanto ao ato sexual. (Há até algumas anedotas brincando com essa ambiguidade, como a do sujeito que, ao preencher um formulário, respondeu: nome – José da Silva; idade – 38 anos; sexo – 7 vezes por semana.)

Em segundo lugar, há uma pitada de “politicamente correto” nessa história, já que “gênero” seria, supostamente, uma palavra mais “neutra”, sem conotações sexistas.

Em terceiro lugar, temos a influência do jargão acadêmico, já que esse emprego surge primeiramente em textos de sociologia e antropologia, sobretudo em inglês. Aliás, é cada vez mais comum nos países de língua inglesa o uso de gender em lugar de sex em formulários e cadastros, tanto que o biólogo britânico Richard Dawkins, o maior evolucionista da atualidade, se levanta contra esse uso no livro Desvendando o arco-íris, até porque “gênero” em biologia designa outro conceito, o de subgrupo que reúne várias espécies de uma mesma família (por exemplo, o gênero Homo, ou gênero humano).

Ou seja, se um cientista do porte de Dawkins considera equivocado esse emprego, é algo a ser seriamente considerado. Outro dado a ser levado em conta é que a maioria dos dicionários ainda não abonou o emprego de “gênero” nessa acepção, exceto no discurso das ciências sociais. Daí porque, do meu ponto de vista, a acepção de “gênero” como “sexo” ainda está restrita ao jargão sociológico. Só que é cada vez mais comum que termos técnicos escapem do universo estritamente acadêmico para invadir até os bate-papos de boteco. Foi assim que “neurose” e “esquizofrênico” deixaram há muito de ser termos exclusivos do ambiente médico.

Em resumo, quando se emprega numa conversa ou em matéria jornalística a expressão “questão de gênero”, faz-se óbvia referência ao discurso sociológico. Não dá para dizer que esse uso está errado; no entanto, em hipótese alguma se pode afirmar que o emprego de “questão de sexo” esteja. Qualquer objeção nesse sentido não passa de patrulhamento ideológico.