A era das rãs escaldadas

No livro A rã que não sabia que estava cozida, Olivier Clerc narra uma fábula que pode ser resumida mais ou menos assim. Ponha uma rã numa panela com água e embaixo um pequeno fogo. No começo, a rã vai achar agradável a água ligeiramente morna e continuará nadando tranquila. Após algum tempo, a temperatura da água começará a ficar um pouco desagradável, mas a rã não fará nada, até que, uma hora, a água já estará tão quente que a rã, totalmente debilitada, não poderá mais reagir e acabará morta e cozida. Se, em vez disso, jogássemos a rã diretamente na água quente, ela imediatamente saltaria para fora da panela e se salvaria.

Essa metáfora nos mostra que, quando as mudanças são lentas, mesmo que para pior, quase não as percebemos e, por isso, não reagimos a elas. Coisas que causariam indignação algumas décadas atrás hoje são tidas como normais. Algumas até nos incomodam, mas estamos tão anestesiados pela água morna que não esboçamos nenhuma reação concreta a elas até que seja tarde demais, até que estejamos todos cozidos — ou fritos!

Pense em como era o mundo 50, 60 anos atrás. Havia crimes, pois a violência existe desde os tempos das cavernas, mas não se falava em crime organizado (a não ser a máfia dos filmes de gângster), não havia Comando Vermelho nem PCC, o mundo não era refém do tráfico de drogas, não havia celulares nas prisões nem sequestros relâmpago.

Cinco décadas atrás, droga era coisa de hippies e cantores de rock’n’roll; não havia crianças fumando crack nas esquinas nem adolescentes roubando para financiar o vício ou trabalhando orgulhosos para o tráfico. Cinco décadas atrás, já havia megacidades, mas ninguém se queixava do trânsito, da poluição, do clima. Não se falava em ecologia, aquecimento global, superpopulação… Temia-se uma terceira guerra mundial, vivia-se a Guerra Fria, mas no fundo sabíamos que nenhum dos dois lados seria louco de apertar o botão vermelho. Hoje, a Terceira Guerra, nuclear, está batendo à nossa porta, o perigo mora ao lado, o terror está pulverizado por todos os cantos, e qualquer cidadão, com ou sem turbante, é um homem-bomba em potencial.

Hoje, cidades do mundo inteiro estão infestadas por legiões de miseráveis — árabes em Paris, africanos em Madrid, turcos em Berlim, georgianos e casaques em Viena, chicanos em Nova York, nordestinos e bolivianos em São Paulo, brasileiros em todos os lugares — logo nós que antes éramos um país de imigrantes!

Há cinco décadas, crianças falavam e se comportavam como crianças, respeitavam os adultos e sonhavam ganhar de Natal uma patinete ou uma boneca. Crianças brincavam de bola e amarelinha nas ruas sem medo e cresciam sadias. Não havia videogames nem programas infantis eróticos na TV. Aliás, quase não havia TV naquela época. Obesidade infantil quase só existia nos manuais de medicina.

Naquela época, estudantes e seus pais respeitavam professores. Aliás, os pais dos alunos sabiam da importância do estudo e se importavam com a educação de seus filhos. Naquela época, era impensável um estudante matar um professor. Massacres em escolas eram coisa de americanos.

Não éramos escravos da internet nem vítimas de spams, vírus, cavalos de troia, adwares, spywares, telemarketing, marketing viral, menus eletrônicos, secretárias eletrônicas, malas diretas e toda essa parafernália inventada pela publicidade para nos enganar e nos obrigar a consumir. Ódio sempre existiu, mas não havia empresas lucrando com sua veiculação. Hoje, estou escrevendo este artigo; talvez daqui a alguns meses o ChatGPT esteja fazendo isso em meu lugar.

Há cinquenta anos, casamentos já não eram mais arranjados pelos pais, mas tampouco se desfaziam à primeira briga. Romantismo, cavalheirismo, cordialidade, urbanidade eram coisas tão comuns que sua ausência era simplesmente inconcebível.

Tudo tão diferente da rudeza dos nossos tempos…

Até pouco tempo atrás, telenovelas eram uma forma de arte, filmes tinham história e não efeitos especiais, o rádio e a televisão entretinham com conteúdo, música sertaneja era coisa de sertanejos, e podia-se ver Milton Nascimento e Chico Buarque no horário nobre. Aliás, a música popular brasileira era realmente popular. E não era preciso pagar para assistir a canais com alguma qualidade (hoje nem os canais pagos têm qualidade!).

Naquela época, rebeldes eram os Beatles, e ninguém precisava de smartphone ou laptop para viver. Tênis de corrida eram usados exclusivamente para correr, e adolescentes não se matavam por eles.

Há pouco mais de 20 anos, fanatismo religioso era visto com estranheza e não como virtude, duvidar da ciência era prova de insanidade ou de burrice, e era possível ser moderno sem ser devasso.

Nesse tempo não tão distante assim, ficávamos indignados e nos mobilizávamos contra a injustiça, a corrupção, a violação dos direitos e da dignidade humana, enfim, éramos politizados sem ser chatos. As bandeiras que defendíamos eram realmente justas e não mimimi.

Em resumo, se olharmos para trás, veremos que a realidade vem piorando dia a dia em todos os aspectos — político, econômico, social, cultural —, mas temos a impressão de que ainda dá para suportar mais um pouco. Afinal, a água ainda está apenas morna. Só que o fogo está aceso, e a água continua esquentando. Até quando?

A pobreza do debate na internet

Toda unanimidade é burra, já dizia Nelson Rodrigues. Ao que alguns arrematam com o argumento teológico: “Nem Jesus Cristo atingiu a unanimidade”. Qualquer que seja a posição defendida, sempre haverá apoiadores e detratores. Alguns economistas e analistas políticos são declaradamente de esquerda; outros são assumidamente neoliberais. Certos gramáticos são tradicionalistas, outros mais reformistas. O problema é que, tanto quanto a unanimidade, toda rotulação é burra: ninguém é só uma coisa ou só outra. E os rótulos resultam em geral de uma avaliação apressada, quando não preconceituosa. A discordância e o debate de ideias são absolutamente saudáveis numa sociedade democrática. Mais do que isso: são imprescindíveis. Entretanto, esse debate se vê empobrecido por certas posturas, que a internet ajuda a revelar.

Lendo notícias na web ou os blogs de meus colunistas preferidos, sempre dou uma olhada nos comentários que os leitores postam. Por sinal, antigamente o jornalismo era um monólogo: o articulista escrevia, o leitor lia, e pronto. Hoje, graças à tecnologia, a relação ficou mais interativa, de modo que é possível fazer o contraponto entre a ação e a reação. Para estudiosos do discurso como eu, é fascinante comparar o que o autor disse e o que os leitores entenderam. Mas, em muitos casos, é também decepcionante.

Se é verdade que alguns comentários são brilhantes, complementando e enriquecendo os argumentos do autor da matéria, bem como lançando perguntas que ensejariam um novo artigo, há outros para os quais vale a máxima chinesa “a palavra é prata, o silêncio é ouro”.

Em primeiro lugar, boa parte dos comentários postados em blogs e sites de notícias é bem mal redigida. E não me refiro apenas a erros de grafia ou gramática, mas à falta de concatenação das ideias, um vácuo mental de quem quer se expressar, mas não sabe fazê-lo. E como quem não se expressa com clareza em geral não pensa com clareza, é de se deduzir que tais pessoas dificilmente entendem o que leem – portanto atiram no que não veem. (Fico ainda mais estarrecido ao ler comentários desse tipo em blogs que tratam da língua portuguesa.)

Em segundo lugar, muitos leitores questionam as afirmações do texto de maneira superficial, apoiados apenas no senso comum, sem meditar mais profundamente sobre o tema, sem se informar a respeito para saber o quanto daquilo realmente procede. Em certos casos, leitores acusam de achismo ou viés pessoal informações objetivas, de cunho científico, fundamentadas por farta documentação (evidentemente, não é usual incluir bibliografia em matérias jornalísticas, o que não significa que ela não exista). A situação é ainda pior quando o artigo contrapõe a racionalidade ao senso comum, mostrando o quanto a intuição do leigo sobre a realidade é equivocada, quão estreita é sua visão, como frequentemente acontece em matérias sobre biologia evolucionária, cosmologia, política, economia e mesmo sobre a língua. Nesses casos, uma crítica vazia, sem embasamento, acaba produzindo exatamente o efeito inverso do que pretende, isto é, provando a estupidez do senso comum.

Mas há também o dogmatismo. Política, futebol e língua são assuntos-tabu tanto quanto a religião. Nesses casos, se o dogma está em desacordo com a realidade, errada está a realidade, não o dogma. Se o autor do texto é identificado, ainda que erroneamente (por leitura superficial ou rotulação burra), como adepto de uma linha de pensamento diferente da do leitor, este por vezes nem se dá ao trabalho de ler e já discorda a priori de tudo o que não leu.

Temos ainda a leviandade, irmã siamesa da arrogância, facilitada pelo suposto anonimato que a rede proporciona. Aí entra a acusação de se ter dito o que não se disse, a crítica pela crítica (mais raramente o elogio pelo elogio), e para tal vale de tudo, até desconsiderar todas as qualidades da matéria para se apegar a algum deslize perdoável do autor – ou do revisor.

Por último, há a pura e simples falta de polidez. Que o leitor discorde do conteúdo ou das posições do texto, não importa se com razão ou não, é um direito seu. Mas muitos abusam dessa fantástica possibilidade tecnológica de exercer online e em tempo real o direito à liberdade de expressão para insultar as pessoas citadas na matéria, quando não o próprio redator. Aristóteles, em suas Refutações Sofísticas, já alertava para a falácia do argumentum ad hominem: a grosseria é o argumento de quem não tem argumentos.

Em resumo, nunca tivemos tanta facilidade de debater ideias e opiniões na mídia como nos dias de hoje; nunca o receber e o transmitir informação foram tão fáceis e acessíveis como agora; e, no entanto, muitas pessoas desperdiçam essa oportunidade falando sem ter o que dizer.

Nossa formação baseada em educação ruim e cultura alienante deve ter-nos deixado assim. Pelos artigos que tenho lido e pelos comentários que lhes são apostos, chego à conclusão de que no Brasil não faltam cabeças pensantes: falta quem as compreenda.

Por favor, curta esta postagem!

Em tempos de Facebook, a onda é “curtir”. Seja foto, vídeo, piada, frase de efeito, convocação para passeata ou mesmo as informações mais inúteis (basta uma celebridade postar na web que adora sushi e pronto: milhares de “curtidas” dos fãs). Essa ferramenta aparentemente tola das redes sociais se tornou tão crucial às pessoas conectadas que, para muitas delas, ser curtível, isto é, receber muitos likes, é questão de vida ou morte. E já que ser curtido tornou-se objetivo de vida, não me admira que os profissionais de marketing tenham criado uma espécie de “Índice de Curtibilidade” que afere o grau de popularidade das nossas postagens – com possibilidade de ganharmos algum dinheiro em verbas de publicidade.

O curioso é que a palavra inglesa para “curtir” – em seu uso virtual, bem entendido – é o insípido like, literalmente “gostar”. Se pensarmos que “curtir”, no brasileiríssimo sentido de “aproveitar, adorar, deliciar-se”, se diz divertirse em espanhol, have fun ou have a good time em inglês e avoir le bon temps em francês, veremos que essa palavra, originalmente negativa (afinal curtir é deixar a carne ou a pele de um animal ao sol durante dias para que fique bem ressequida), tem conotações em português que escapam aos outros idiomas. “Curtir de montão” é bem diferente de “gostar muito” ou “aproveitar intensamente”. E curtir uma pessoa, é apenas gostar dela? Ou é sentir um prazer único em sua presença, rir com suas tiradas, admirar sua perspicácia? Portanto, ao traduzir like como “curtir”, o Facebook brasileiro conseguiu ser mais criativo que o original americano.

E tudo começou com a expressão “curtir uma dor” (ou “curtir uma fossa”, como se dizia lá pelos anos setenta), que veio substituir o tradicional “carpir a dor”. Por exemplo, o clássico do cancioneiro nacional Lábios que beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo, imortalizado na voz de Orlando Silva, diz a certa altura: “Passo os dias soluçando com meu pinho / Carpindo a minha dor, sozinho / Sem esperanças de vê-la jamais”. É o mesmo sentido do lema latino carpe diem (curta o dia de hoje). Mas por que curtir a dor? Talvez a ideia seja a de sofrer por muito tempo (às vezes meses ou anos) como o couro curtindo ao sol ao longo de dias. E assim como o couro seca e se torna rígido e impermeável, o coração de quem sofre se torna insensível, indiferente à dor.

Seja como for, nos dias de hoje, o cantor das multidões não carpiria, mas curtiria a sua dor. E não com seu pinho, isto é, seu violão, mas talvez com uma guitarra elétrica.

A legião dos imbecis

As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de imbecis que antes só falavam na mesa de bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eram rapidamente silenciados, mas agora têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis.

Umberto Eco ao jornal La Stampa

A ciência ainda não sabe com certeza quando o homem começou a falar. Alguns estudiosos acreditam que essa faculdade tenha surgido há menos de 30 mil anos – cálculos mais conservadores falam em 15 mil – enquanto outros tantos pesquisadores sugerem que a linguagem seja tão antiga quanto nossa própria espécie, cujo surgimento se estima em torno de 200 mil anos atrás. O fato é que, por milênios, os únicos tipos de comunicação possíveis entre os seres humanos foram o interpessoal (duas ou três pessoas conversando) e o grupal (alguém falando a uma pequena plateia). O maior alcance que um discurso podia ter era propiciado por inscrições em pedra ou manuscritos em papiro ou pergaminho com um número limitadíssimo de exemplares. Ou seja, tudo o que se escrevia era lido por no máximo algumas centenas de pessoas.

De certa forma, a comunicação em massa surgiu com a invenção da imprensa por Gutenberg em 1452. Claro que no começo os textos impressos ainda tinham poucos leitores, já que a maior parte da população era analfabeta, o que desestimulava a produção de grandes tiragens de livros. Porém, a partir do momento em que se multiplicaram os livros e, em seguida, os jornais, era possível, em tese, comunicar-se com o mundo.

Mas a comunicação de massa teve seu impulso definitivo em princípios do século XX, com o surgimento dos chamados mass media (rádio, televisão, cinema, fonógrafo, revistas); agora era possível efetivamente falar a milhões de pessoas, em todos os lugares do planeta. Só que a comunicação de massa é unidirecional: alguém apenas fala e multidões apenas escutam. Esse sistema pode parecer hoje em dia pouco democrático, já que o diálogo é sempre mais salutar que o monólogo. No entanto, se havia tão pouco espaço para falar, era natural que esse espaço fosse destinado preferencialmente a quem tivesse algo relevante a dizer. O que não significa que irrelevâncias não fossem também veiculadas. Mas, se não era possível publicar tudo o que todos queriam dizer, editoras, gravadoras, estúdios de cinema e de TV, emissoras de rádio e empresas jornalísticas optavam por publicar aquilo que certamente interessaria a mais pessoas. Com isso, o que era de fato divulgado tendia a ter alguma qualidade ou, pelo menos, alguma pertinência. Aliás, na comunicação de massa a busca pela qualidade é um princípio norteador da produção de conteúdo: uma cena é refilmada ou uma canção regravada tantas vezes quantas forem necessárias para que o resultado seja não menos que perfeito; um texto escrito é burilado, reescrito e revisado até que se achem as melhores palavras para expressar as melhores ideias.

Isso foi exclusivamente assim até a última década do século passado. Então surgiu a internet e, com ela, as redes sociais. A partir desse momento, a comunicação de massa começou sofrer a concorrência da comunicação em rede, sistema em que, teoricamente, todos conversam com todos, isto é, todos têm direito – e espaço – de se expressar e dizer o que pensam, e todos podem reagir expressando-se pelos mesmos canais. Já não somos mais obrigados a apenas ouvir, mas também podemos falar. O grande intelectual, o artista famoso, o ídolo das multidões e o simples mortal, o cidadão anônimo, o zé-ninguém agora estão lado a lado. O presidente da nação mais poderosa do mundo e a criança de sete anos têm os mesmos 280 caracteres à sua disposição. A maior rede de televisão do país concede a todos seus quinze segundos de fama, desde que o celular esteja na horizontal. Tudo muito democrático. Só que não.

A promessa de uma comunicação igualitária, em que todos os habitantes do planeta podem falar e ouvir, levou a humanidade não ao entendimento geral, mas ao maior desentendimento que a História poderia registrar: todos falam, poucos ouvem e ninguém tem razão. Antes, muitos desconfiavam da imprensa, mas o que os jornais diziam tinha grande credibilidade; hoje, em que qualquer pessoa pode ser fonte de informação, não sabemos como lidar com as fake news, e os limites entre a verdade e a pós-verdade (ou verdade alternativa) são nebulosos. Antes, nos irritávamos com certas propagandas no rádio ou na TV; hoje, nossa caixa de e-mails fica lotada de spams em poucos segundos. Antes, quem se sentisse alvo de calúnia pelos meios de comunicação tinha direito de resposta; hoje, pratica-se o linchamento moral de qualquer um, principalmente de quem diz a verdade. Antes, uma criança tinha de lidar com a caçoada dos coleguinhas de classe; hoje, o bullying se dá pelas redes sociais, em escala nacional ou mundial. Antes, era preciso saber cantar para ser cantor e saber escrever para ser escritor; hoje, já nem tanto. Por fim, hoje todos odeiam alguém e todos são odiados por alguém, sempre on line, bastando digitar. A paradoxal sensação de anonimato num meio em que todos se expõem parece nos dar o direito de atacar o outro sem responsabilidade, não importa se justa ou injustamente, desde que com crueldade. Como diz o historiador e pop star Leandro Karnal, somos todos contra todos, ou, segundo o sábio Umberto Eco, foi dada a palavra à legião dos imbecis. O consolo é que, mesmo nesse ambiente de caos e barbárie comunicacional, grande parte das pessoas ainda prefere ouvir quem tem algo relevante a dizer. Ou seja, mesmo dentro da rede existem nichos de comunicação de massa, predominantemente unidirecional: gente inteligente que sabe ouvir escuta gente inteligente que sabe falar. Enquanto isso, no restante da rede, os imbecis se digladiam.

Direitos humanos e o direito à liberdade de expressão do pensamento

Dois fatos recentes – a decisão judicial que proibiu os examinadores do Enem de anular as provas de redação que porventura ferissem os direitos humanos e o afastamento do jornalista William Waack da Rede Globo após o vazamento de um vídeo com suposto teor racista – nos fazem pensar sobre os limites da liberdade de expressão do pensamento e da criminalização da linguagem.

Até a decisão liminar da ministra do Superior Tribunal Federal Carmen Lúcia sobre ação impetrada pelo movimento Escola sem Partido, os examinadores das provas de redação do Enem podiam zerar a nota de uma redação que eles entendessem ofensiva aos direitos humanos sem examinar qualquer outro quesito. Como professor de português, sempre achei questionável esse critério de avaliação – ou melhor, de não avaliação – de uma prova de redação, já que o que deve estar em julgamento é a capacidade de se expressar com clareza, coesão, coerência e correção gramatical, que todo aluno concluinte do ensino médio e pretendente a uma vaga universitária deve ter, e não suas posições ideológicas.

Da mesma forma como, durante o regime militar, era proibido e, mais do que isso, perigoso expressar opiniões que pudessem ser consideradas “de esquerda”, parece que hoje o jogo se inverteu, e o que é proibido ou execrável é ter posições que sejam vistas por certos grupos detentores de poder como “de direita”. Em tempos em que até a intolerância ao glúten pode ser vista como crime de intolerância, fica a impressão de que, para entrar na universidade, é preciso estar alinhado ideologicamente com aqueles que ditam as regras nas instâncias superiores da educação brasileira.

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Hoje se tipifica um novo tipo de crime, o chamado crime de ódio, em que o criminoso tem como motivação de seu ato o pertencimento da vítima a um determinado grupo social, definido pela raça, religião, orientação sexual, deficiência física, etnia, nacionalidade, etc. Embora motivado pelo ódio (que é preciso distinguir de preconceito), o crime de ódio é fundamentalmente um crime, isto é, um ato de violência física, psicológica ou moral contra alguém. É, portanto, diferente da simples expressão do ódio, pública ou privadamente.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, há uma diferença fundamental entre o ódio puro e simples e a violência praticada em razão dele. Odiar é uma prerrogativa humana (e creio que exclusivamente humana) decorrente do fato biológico de termos sentimentos. Isso significa que, assim como posso amar chocolate, viagens, MPB, um determinado time de futebol ou astro do cinema, certas pessoas em particular (amigos, parentes, o cônjuge), também posso odiar certas comidas, lugares e pessoas. E como os sentimentos não são racionais, mas são o oposto cognitivo da razão, não preciso de um motivo lógico para amar ou odiar algo ou alguém. A questão é: a simples expressão verbal do meu ódio é por si só um crime de ódio? Não sou versado em Direito, mas quero crer que não, afinal a Constituição Federal garante a todos o direito à livre expressão do pensamento (e eu acrescentaria, do sentimento). Mesmo os pensamentos e sentimentos mais vis estariam sob essa garantia, pois a vileza ou não daquilo que se pensa ou sente é questão de valor e não de verdade.

Quanto ao preconceito, tal como definido pelos dicionários como um julgamento prévio que fazemos de algo ou alguém, ele não é, em princípio, nem bom nem mau. Qualquer juízo que eu faça sem conhecer profundamente o que ou quem estou julgando é um preconceito. O que significa que ele pode ser também positivo: posso superestimar precipitadamente as qualidades do objeto em questão, como supor que a comida de um restaurante é muito boa apenas porque sua fachada é bonita ou chique.

Na verdade, o preconceito é um mecanismo mental de que a natureza nos dotou e que tem sido imprescindível à nossa sobrevivência: é graças a julgamentos prévios e por vezes superficiais que tomamos a decisão de nos arriscar ou não em certas situações. O mesmo preconceito que pode me fazer desconfiar injustamente de uma pessoa mal-encarada numa rua escura pode salvar a minha vida caso minha suspeita esteja correta.

O fato é que posso ter certos preconceitos, mesmo que infundados, sem que eles se transformem em ódio, assim como posso nutrir ódio por certos indivíduos sem que ele se transforme em violência. Posso, finalmente, expressar o meu ódio ou reprovação a uma pessoa ou grupo de pessoas sem que isso configure crime. Especialmente se faço isso em situação privada, de modo que o próprio alvo da minha desafeição não saiba o que penso dele.

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E aí chegamos ao caso William Waack. Sem dúvida, dizer que buzinar insistentemente é “coisa de preto” revela preconceito negativo. Aliás, preconceitos desse tipo pecam por generalização. Não é porque um negro trafega com os vidros do carro abertos e o som do funk no volume máximo que todos os negros se comportam assim (e, é óbvio, há brancos que também assim se comportam). Mas o que proponho à reflexão é: a expressão do desapreço injustificado por toda uma raça por causa de uma buzina insistente é em si um crime? Ainda mais se feita em contexto privado e que deveria ser mantido privado, não fosse a má-fé de algum desafeto que tornou pública essa manifestação, por meio do hoje tão em moda “vazamento seletivo”?

É claro, Waack não está sendo processado criminalmente (ainda), pois não cometeu crime algum, o que ele está é sendo moralmente linchado por ter revelado involuntariamente um lado politicamente incorreto que todos nós temos, principalmente em momentos de intimidade e descontração. Quem nessas situações nunca fez um comentário maldoso acerca de alguém, quem nunca riu de uma piada racista ou sexista, quem nunca aludiu à sexualidade alheia de modo depreciativo, que atire a primeira pedra!

O fato é que, hoje, as redes sociais amplificam a repercussão de algo que deveria ser estritamente íntimo e dão voz a um novo tipo de pessoas, os haters, odiadores profissionais, que fazem da expressão pública do ódio a quem consideram fora dos parâmetros de sua ideologia a razão de sua existência. Ou seja, em nome de seu direito de condenar a manifestação do ódio alheio, eles odeiam e praticam a violência moral contra pessoas cuja biografia lhes faz inveja. E odeiam você por sua opinião, seja ela qual for, preconceituosa ou não, odienta ou não, desde que não concordem com ela. E, nesse afã, impedem a diversidade de opiniões dentro da universidade simplesmente impedindo que os portadores de certas opiniões entrem na universidade. Ou ignoram todas as boas contribuições sociais que uma pessoa deu ao longo da vida, em seu trabalho sério e competente, por causa de um deslize verbal, por vezes impensado – ou mal interpretado –, que todos nós cometemos no dia a dia, sobretudo imersos que estamos numa cultura de herança patriarcal, escravista, colonialista e censitária, da qual nem nos damos conta.