O dengo e a dengue

Ainda nem terminou a pandemia de covid-19, e o Brasil já vê explodirem os casos de dengue, mal que nos assola quase todos os anos dada a dificuldade no combate ao seu transmissor, o mosquito Aedes aegyptii, em parte por descaso de parcela da população, que deixa água acumulada em vasos, latas, pneus, piscinas não tratadas e outros repositórios de água parada que servem de criadouro ao inseto.

Mas de onde veio a palavra que nomeia essa doença? Há uma controvérsia sobre isso. Alguns dicionários trazem dois verbetes distintos com a denominação dengue, o que configuraria um caso de homonímia. Temos então dengue1, proveniente do quimbundo ndenge, cuja forma paralela é dengo, que significa “birra, melindre, faceirice, requebro”. É aquele charminho que as crianças – e também certos adultos, especialmente mulheres – fazem, donde chamá-los de dengosos. E temos também dengue2, de origem castelhana, referente à doença contagiosa propriamente dita.

Só que o dicionário etimológico Corominas da língua espanhola só registra uma entrada para dengue e a ela atribui tanto o significado de “melindre” quanto o de “doença epidêmica”. Segundo essa obra, por sinal um dos melhores dicionários etimológicos que existem, tal palavra seria de origem expressiva na primeira acepção e relacionada a outras, como dingolondango, “mimo”, tenguedengue, “melindre, afetação”, e tenguerengue, “a ponto de cair”. Portanto, justamente aquela acepção que em português se atribui ao quimbundo, língua africana falada em Angola, parece ser tão castelhana quanto a segunda, a de doença.

No entanto, como a palavra data em espanhol de 1732, época em que os colonizadores ibéricos já traficavam escravos da África, não é impossível que a língua espanhola tenha tomado o vocábulo do quimbundo. Quanto aos supostos cognatos dingolondango, tenguedengue e tenguerengue, tudo pode não passar de mera coincidência. Esses impasses deixam louco qualquer etimólogo.

Pelo menos, no Brasil fazemos a distinção entre o dengo, isto é, a qualidade de quem é dengoso, e a dengue, enfermidade que mata pessoas todo ano, de modo que, qualquer que seja a origem da palavra – ou das palavras, caso sejam de fato homônimas –, jamais associamos os sintomas da infecção com uma possível frescura do doente.

A cítara e a guitarra

Outro dia, um amigo meu que é roqueiro e toca guitarra elétrica me perguntou a origem da palavra guitarra. Como acho que essa pode ser também a curiosidade de outras pessoas, resolvi responder à sua pergunta neste espaço.

A palavra portuguesa guitarra, que aqui no Brasil empregamos como sinônimo de guitarra elétrica (ou violão elétrico, como se dizia antigamente), significa originalmente apenas “violão”. Esse é o sentido da palavra no português lusitano e também em outras línguas (francês guitare, inglês guitar, italiano chitarra, etc.). O inglês, por exemplo, faz distinção entre electric guitar (a nossa guitarra) e acoustic guitar (o nosso violão).

Aliás, em Portugal o termo guitarra também é empregado para designar um tipo particular de instrumento de cordas característico da música portuguesa – quem já escutou algum fado na vida com certeza ouviu o som da guitarra portuguesa.

Essa palavra nos chegou do espanhol guitarra, igualmente significando “violão” – aliás, a Espanha é o berço do violão moderno, este que conhecemos e que substituiu o alaúde como instrumento de música popular. Mas o espanhol tomou essa palavra do árabe kītâra ainda nos tempos da dominação islâmica na península Ibérica. E agora o mais incrível: o árabe kītâra é empréstimo do grego kithára, que quer dizer… “cítara”. Isso mesmo, a guitarra, elétrica ou não, é neta do alaúde e bisneta da cítara grega, aquele instrumento musical semelhante a uma lira (que, por sua vez, é semelhante a uma pequena harpa).

Um dado interessante: o italiano chitarra proveio diretamente do árabe, ao passo que, nas demais línguas, a origem é o espanhol. É que, na Idade Média, os italianos, em especial os venezianos, comerciavam diretamente com o Oriente, de onde trouxeram a palavra e também o instrumento.

Quantas línguas portuguesas existem?

De todas as línguas transcontinentais, isto é, faladas em mais de um continente, o português me parece a mais problemática em termos de difusão mundial. Em que pese o grande número de falantes (273 milhões), que a torna a quinta língua nativa mais falada do mundo, o português é pouco conhecido e frequentemente confundido com seu irmão mais famoso, o espanhol. Aliás, a importância que este último assumiu nas décadas mais recentes como língua internacional, somada à semelhança entre ambos os idiomas, explica em parte porque o português acaba ofuscado. Mas não é só isso. Nossa língua também padece de problemas intrínsecos que embaraçam os estrangeiros que queiram aprendê-la. A acentuada diferença entre as variedades lusitana e brasileira em termos não só de pronúncia e léxico, mas principalmente de sintaxe, têm obrigado até mesmo sites internacionais, softwares e aplicativos a disponibilizar textos redigidos em ambas as variedades. Nada semelhante ocorre em relação ao inglês, francês e espanhol, as outras grandes línguas internacionais e intercontinentais.

A distância entre as variedades europeia e brasileira do português fez o linguista Marcos Bagno, da Universidade de Brasília, chegar a propor que o português brasileiro seja considerado um idioma distinto do lusitano. Claro que ainda não chegamos a esse ponto, e tal separação teria hoje um caráter mais político do que linguístico, mas o fato é que, de certa forma, caminhamos a passos largos para essa cisão se não houver esforços de ambos os lados para uma reaproximação das variedades.

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Outro dia, recebi por e-mail o anúncio de um determinado serviço de armazenamento de dados em nuvem com o seguinte título: “Está a procurar mais espaço para a partilha de ficheiros? Temos a melhor solução para si”. Em português brasileiro, teríamos “Você está procurando mais espaço para o compartilhamento de arquivos? Temos a melhor solução para você”. O estranhamento que a frase em português luso me provoca é quase tão grande quanto seria se eu estivesse lendo um anúncio em outro idioma. Essa mesma chamada publicitária não precisaria de duas versões caso fosse escrita em espanhol, francês ou inglês. Bastaria redigir “¿Está buscando más espacio para compartir archivos? Tenemos la mejor solución para usted” que na Espanha e em toda a América espanhola todos entenderiam sem dificuldade e sem estranheza. Bastaria dizer “Cherchez-vous plus d’espace pour partager des fichiers? Nous avons la meilleure solution pour vous” que todos os falantes do francês se identificariam imediatamente com a mensagem. Bastaria escrever “Are you looking for more space for sharing files? We have the best solution for you” e todo o mundo anglofalante reconheceria ali seu idioma. E vejam que todas essas línguas também têm variedades nacionais distintas.

Em inglês, há duas grandes vertentes, a britânica e a americana, com vocabulários em pequena parte diferentes e mesmo grafias distintas aqui e ali. Em espanhol, há pequenas diferenças vocabulares de país a país e, na região platina (Argentina, Uruguai, Chile), ocorre também o uso de um pronome pessoal vos que não se usa na Espanha e restante da América; em compensação, os espanhóis utilizam o pronome vosotros, que na América Latina já caiu há muito em desuso. Fora isso, o castelhano é uma língua bastante homogênea. Entre o francês europeu, o americano (Canadá, Haiti, Antilhas Francesas, Guiana Francesa) e o africano há umas poucas diferenças lexicais e só.

Embora o aspecto que mais salte à vista – ou melhor, ao ouvido – na distinção das variedades lusa e brasileira seja a pronúncia, o fato é que fortes diferenças de pronúncia existem em todas as línguas, especialmente nas transnacionais, isto é, as faladas em vários países. Diferenças de vocabulário também são frequentes, embora no caso do português tais diferenças atinjam não só palavras de uso muito corrente como até nomes próprios de cidades e nações.

Quanto às divergências gráficas, só o português e o inglês as têm, com a ressalva de que em inglês a diferença de grafia não implica diferença de pronúncia; já em português palavras como “fato” e “facto”, “gênio” e “génio” efetivamente soam de modo distinto lá e cá, o que dificulta a unificação ortográfica.

Mas, já que o português lusitano e o brasileiro estão mais distantes entre si do que o espanhol ibérico e o latino-americano, o inglês britânico e o norte-americano, ou ainda o francês europeu e o ultramarino, é necessário não só que haja uma reaproximação cultural entre Brasil e Portugal, com efetivo intercâmbio de bens de cultura (hoje o fluxo de produtos culturais parece unidirecional, do Brasil para Portugal, vide telenovelas, filmes, música popular, Rock’n’Rio, etc.), como também que haja uma unificação da norma culta, vale dizer, que, pelo menos no registro formal, portugueses e brasileiros se expressem da mesma maneira. É claro que a língua falada continuará com suas peculiaridades regionais, mas ao menos os manuais de instruções e outros documentos de circulação internacional seriam redigidos de modo uniforme.

Evidentemente, para que isso ocorra é preciso que se façam algumas escolhas. “Trem” ou “comboio”? “Ônibus” ou “autocarro”? “Guarda-roupas” ou “guarda-fatos”? “Moscou” ou “Moscovo”? “Bagdá” ou “Bagdade”? “Estou fazendo” ou “estou a fazer”? “Tem trabalhado” ou “tem vindo a trabalhar”? Eu particularmente penso que deveríamos preferir as formas mais consoantes às demais línguas europeias. Alguns regionalismos seriam mantidos, como ocorre em todas as línguas. É o caso, por exemplo, de chamar “filão de pão” de “cacete” ou “chope” de “imperial”. Mas nomes próprios e palavras de alta frequência deveriam ser uniformizados, e essa norma padrão única, ensinada em todas as escolas de todos os países lusófonos.

É claro que para isso precisaríamos vencer o bairrismo dos portugueses e a péssima escolarização dos brasileiros.