Voltando de férias com um desagravo

Estive sumido aqui do blog neste mês de janeiro, em parte porque, como todo filho de Deus — embora ateu —, eu também tenho direito a umas merecidas férias. Mas em parte também porque passei por uma experiência que, durante semanas, me tirou totalmente a vontade de escrever.

Logo nos primeiros dias do ano, assistimos ao funeral do eterno Pelé, um dos meus grandes ídolos, que tive a sorte de ver jogar. A morte do Rei e a oportunidade de rever, nos inúmeros documentários que a televisão exibiu, seus incríveis lances provoaram em mim uma emoção só comparável a outra que também vivenciara pouco antes: a despedida dos palcos de Milton Nascimento, meu ídolo maior, em show no Mineirão, na minha amada Belo Horizonte, ao qual estive presente em novembro último. Isso me inspirou a escrever um artigo traçando um paralelo entre esses dois brasileiros geniais. O título seria Dois reis negros, dois brasileiros geniais. O texto se iniciava assim:

Dois negros. Dois brasileiros. Dois mineiros. Um, de Três Corações. O outro, de Três Pontas. Um, nascido a 23 de outubro de 1940. O outro, a 26 de outubro de 1942. Signo de escorpião. Um, nascido no Rio, mas criado em Minas. O outro, nascido em Minas, mas radicado em Santos. Dois gênios em suas profissões. Dois homens que emocionaram e emocionam o público. Dois cidadãos do mundo. Ambos de sobrenome Nascimento. O primeiro, de nome Edison (depois alterado por ele mesmo para Edson). O segundo, de nome Milton. Ambos nomes ingleses: o do inventor da lâmpada elétrica e o do autor do Paraíso Perdido.

E o artigo seguia falando sobre o imortal legado de Pelé, deus do futebol, e sobre a maravilhosa obra musical do Bituca, como Milton Nascimento gosta de ser chamado, e sua contribuição para a MPB, para o Brasil, para o mundo. Nesse texto, eu falava sobre a minha emoção diante do apoteótico show a que assisti, num Mineirão mais lotado que num Cruzeiro x Atlético. Eu terminava agradecendo por ter tido a sorte de ser contemporâneo desses dois gênios, de ter nascido no mesmo país e planeta que eles.

Todas as semanas, publico neste blog textos que escrevo da melhor forma que consigo, tentando falar às vezes de assuntos difíceis como linguística numa linguagem que atinja o maior número possível de leitores, especialmente os não iniciados no assunto. Graças a um dom natural, tenho prazer e facilidade em escrever e, modestamente, acho que faço isso bem. Por isso mesmo, a tarefa de escrever todas as semanas não me é pesada; pelo contrário, minha escrita flui com facilidade. Mas, quando escrevo sobre a língua, ou sobre a política nacional, ou sobre as mazelas do nosso país e do nosso tempo, escrevo com a cabeça. Já quando escrevi a crônica sobre Pelé e Bituca, o fiz com o coração, tomado de profunda emoção e rara inspiração. Tanto que mal podia esperar para que chegasse segunda-feira, dia 9 de janeiro, para publicá-lo. Seria um dos melhores artigos que já produzira na vida. De quebra, no dia anterior, havíamos perdido Roberto Dinamite, outro grande craque do nosso futebol, e eu aproveitaria o ensejo para também lhe prestar uma homenagem. Por último, eu pretendia finalizar com um comentário sucinto deplorando em palavras irônicas a barbárie ocorrida em Brasília na véspera, o fatídico 8 de janeiro.

Pois qual não foi minha surpresa e choque naquela segunda-feira ao abrir o arquivo Word em que estava o meu artigo e constatar que, com exceção do primeiro parágrafo (esse que transcrevi acima), o resto do texto havia sumido. Como? Teria eu por acidente apertado alguma tecla e deletado o restante do texto e a seguir salvado o arquivo? Possivelmente foi o que ocorreu. Como faço backup dos meus arquivos num HD externo ao meu laptop, fui até lá e, para minha decepção, o arquivo em backup também estava mutilado. A partir desse momento, comecei a entrar em pânico. Pesquisando na internet, descobri que o Windows salva versões anteriores dos arquivos, só que essa função precisa ser habilitada e, não se sabe por que cargas d’água, ela não vem habilitada de fábrica. Ou seja, o senhor Bill Gates, nerd que sempre foi, deve achar que todos os usuários dos seus produtos são formados em ciência da computação. Pois bem, descobri tarde demais que não havia versão anterior salva do meu pobre arquivo. Passei o dia baixando softwares de recuperação de arquivos deletados e até encontrei uma versão de 2017 do meu arquivo — ou seja, uma versão absolutamente inútil.

Conclusão: perdi meu texto para sempre, sem que ele tenha tido a chance de ser lido por uma alma sequer — mesmo eu jamais o lerei de novo, e tudo que me resta dele são alguns flashes na memória. Reescrevê-lo é impossível: a emoção e a inspiração que eu tive jamais se repetirão. Além disso, o momento de sua publicação passou; como dizem, perdi o timing.

Meus leitores podem achar bobagem, mais vivenciei um verdadeiro sentimento de luto nesses dias, comparável à perda de um ente querido. Com a diferença de que, quando perdi meus pais, sofri por um tempo, mas guardei comigo a lembrança de todos os anos de vida em que pude desfrutar de sua companhia. E desse artigo que perdi, que era como um filho (sim, amigos, os livros e artigos que escrevo são como meus filhos), o que vou guardar?

Isso tudo só fez reforçar minha ojeriza pela tecnologia. Ojeriza que começou ainda nos anos 90, quando eu finalizava minha tese de doutorado num computador XT, daqueles de telinha verde (os mais jovens nem fazem ideia do que seja isso). Pois, em certo momento, o “bicho” travou, o que fez minha tese, produto de seis anos de insano trabalho, simplesmente sumir. E na época não havia dispositivos de autorrecuperação como os do Windows de hoje em dia — na época sequer havia Windows! Felizmente, após algumas manobras e muito desespero, consegui salvar uma versão tosca do meu trabalho. Passei dias reformatando parágrafo por parágrafo, negrito por negrito, itálico por itálico, refazendo tabelas, redesenhando figuras, reescrevendo o último capítulo, que não havia sido salvo. Mas pelo menos consegui recuperar o conteúdo do arquivo. Esse episódio, somado ao assédio moral que sofria do meu orientador, explica o surto depressivo que tive à época e que me custou anos de tratamento psiquiátrico.

Sou do tempo da máquina de escrever, e os textos que datilografava quando era adolescente ainda estão comigo. Livros impressos ou escritos à mão, alguns com mil anos ou mais, ainda resistem nas grandes bibliotecas do mundo. Mas arquivos “virtuais”, estejam eles num HD ou na nuvem, podem sumir a qualquer momento. E estamos inconsequentemente digitalizando toda a nossa cultura, todo o nosso acervo de conhecimentos, eliminando o papel sob a desculpa de poupar o meio ambiente — como se fosse o papel o grande vilão da emergência climática que vivemos.

Queridos leitores e amigos, este texto é um desabafo e um desagravo. Posso estar ficando velho, mas ninguém me convence de que um videogame de futebol que joga sozinho é melhor que uma partida de futebol de botão. Que joguinhos de celular que se jogam com dois polegares são mais divertidos do que uma bola de futebol, um pião, uma bicicleta ou bolinhas de gude. Que brincar no playground do condomínio é mais bacana do que correr descalço na rua, sem medo de doença ou de bandido.

Volto à rotina da escrita, porque simplesmente não consigo viver sem isso, mas com profundo pesar e medo das próximas perdas. Até a semana que vem.

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Ah, um adendo: na minha opinião, não é o colapso climático ou a guerra nuclear o que vai em breve destruir a humanidade; é a Inteligência Artificial.

Ladrões de ontem e de hoje

A língua evolui justamente porque a sociedade que a fala muda o tempo todo. Se assim não fosse, a língua deixaria de dar conta das novas realidades e se tornaria inútil para a maioria das comunicações. O aspecto da linguagem que mais depressa e com maior frequência se transforma é o vocabulário. Quantas palavras que usamos hoje, como globalização, internet, tablet, celular, formatar, covid, mimimi, antifascista, vitimismo, gordofobia, nem sonhávamos em empregar 40 anos atrás! E quantas palavras que usávamos frequentemente há pouco mais de duas décadas foram totalmente esquecidas! (Vitrola, disquete, videocassete, garrafeiro, carburador são apenas alguns exemplos.)

A notícia de que houve um substancial aumento no furto de aparelhos celulares no último ano me fez lembrar que, até o advento do smartphone, que tira fotos, faz vídeos, permite teleconferências, pesquisas na internet, mensagens instantâneas, orientação por GPS no trânsito e, last but not least, permite fazer e receber chamadas telefônicas, o tipo mais comum de ladrão era o batedor de carteiras, também chamado de punguista. Como esse meliante precisava “acessar” (olha outro termo jovem aí) o bolso ou a bolsa da vítima, costumava dar-lhe um tranco ou empurrão, surrupiando seu objeto de desejo e fugindo rapidamente no meio da multidão. Por causa exatamente desse tranco, o delinquente, muitas vezes menor de idade, passou em São Paulo a ser chamado de “trombadinha” (no Rio, ele era conhecido por “pivete”).

Quem é que emprega os termos batedor de carteiras, punguista, trombadinha ou pivete hoje em dia? O fato é que, enquanto quase ninguém mais carrega dinheiro na carteira, quase todos portam um celular – geralmente caro – junto à orelha ou em frente aos olhos enquanto andam nas ruas, o que fez o aparelhinho tornar-se o novo desejo de consumo de dez entre dez marginais, muito mais do que um par de tênis importado ou uma moto. Sem falar que, dentro de uma penitenciária, um telefone móvel é muito mais útil do que tênis ou motos. Além do valor do aparelho em si, os criminosos estão de olho nas informações que ele contém: dados pessoais e bancários da vítima, listas de contatos em quem aplicar golpes, etc.

E como as pessoas andam nas ruas carregando ostensivamente esse objeto, além de estarem a maior parte do tempo distraídas com seus chats e aplicativos, o larápio nem precisa mais dar uma trombadinha para furtá-lo; basta tomá-lo da mão do desavisado transeunte. Ou seja, a tecnologia contribuiu muito para a otimização do processo operacional de subtração inopinada de bem alheio, mais conhecido como furto. Só que, estranhamente, ainda não cunharam um termo em português para nomear esse novo tipo de profissional do crime. Mas, do jeito como tal delito anda aumentando de frequência, logo logo nossa língua criará o neologismo adequado para dar conta dessa triste realidade.

A morte da cultura

Certa vez, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente emitiu um comunicado dizendo que o desaparecimento de uma língua e de sua respectiva cultura equivale a queimar um livro único sobre a natureza. Umberto Eco acrescenta: “toda língua é um tesouro social: não só o conjunto de suas regras gramaticais, mas todo o acervo produzido por seus desempenhos”.

Uma língua desaparece quando morre seu último falante. Mas, em seus derradeiros tempos de vida, quando não tem mais com quem conversar em sua língua nativa, essa pessoa deve sentir uma profunda melancolia, uma sensação de estar vivendo em outro planeta: suas experiências e lembranças, as coisas que faziam sentido em seu mundo, nada disso os outros podem compreender porque essas vivências só podem ser expressas numa língua que ninguém mais entende. Condenado ao monólogo, ou a falar de realidades que não são as suas, esse indivíduo deve sentir alívio ao cerrar os olhos pela última vez.

Mas não são só as culturas ditas primitivas que estão desaparecendo, deixando seus últimos guardiães desarvorados. A cultura letrada, de um modo geral, está morrendo, e este não é um problema exclusivamente brasileiro, embora aqui esse fato seja mais gritante por conta do descaso criminoso de nossos governantes, presentes e passados.

Há poucas décadas, fazer contas de cabeça ou conjugar os verbos corretamente (isto é, segundo a norma gramatical) eram atos banais para qualquer cidadão escolarizado. Hoje, nem mesmo caixas de banco ou de supermercado conseguem fazer uma simples soma sem recorrer à calculadora eletrônica. E ficam surpresos quando eu, mentalmente e mais rápido que eles, chego ao resultado correto enquanto ainda estão abrindo a gaveta, retirando a maquininha, ligando-a, digitando os números para ao final obter a mesma resposta que eu já havia obtido. Vezes sem conta recebi elogios por fazer algo que muitas pessoas da minha geração sabe fazer tão bem quanto eu.

Em outras ocasiões, sou olhado como se fosse um E.T. só porque digo que eu e minha esposa somos casados há 15 anos, já que o esperado é que eu diga que eu e a minha esposa, a gente é casado há 15 anos.

Expressões idiomáticas, anedotas, provérbios, alusões históricas, nada disso faz sentido hoje em dia. As pessoas simplesmente perderam a referência cultural que embasava esses enunciados. Num tempo em que quase ninguém mais lê, a não ser revistas de celebridades e postagens em redes sociais, dizer que a luta contra a corrupção no Brasil é como combater moinhos de vento causa perplexidade, quando não riso. Quem hoje em dia conhece Dom Quixote de la Mancha? Quem já ouviu falar (ler é pedir um pouco demais) em Miguel de Cervantes ou no Cavaleiro da Triste Figura?

Quando um famoso (e já idoso) narrador esportivo grita diante de um perigoso chute a gol “Pelas barbas de Netuno!”, será que alguém sabe do que se trata? Talvez alguns, pensando no planeta Netuno, que afinal frequenta os horóscopos, se perguntem: “ué, e planeta tem barba?”.

Pessoas escolarizadas da minha geração (e olha que ainda não cheguei à terceira idade) devem se sentir como o velho índio que pensa em seu idioma, mas não tem como traduzir seus valores culturais para o homem branco, talvez não porque faltem palavras (alguma tradução sempre é possível), mas porque falta o sentido.

Os mais “velhos” – e embora se viva cada vez mais, fica-se obsoleto cada vez mais cedo – são estrangeiros ou alienígenas em meio a uma juventude cujo acesso a um legado cultural milenar e aos valores de civilização foram substituídos por videogames, facebooks, twitters, reality shows, por uma escola imbecilizante (apesar, ou talvez por causa, da tecnologia), mais preocupada em doutrinar do que em educar, e por uma família ausente e consumista, para quem o ter é mais importante do que o ser.

Ironicamente, a cultura branca ocidental, que tantas línguas e culturas matou, está provando uma dose cavalar de seu próprio remédio.

Léxico, a alma da língua

A língua diz muito sobre o povo que a fala. Não tanto a gramática, que, apesar de ser a moldura de nossos pensamentos, é algo sobre o qual temos pouca ou nenhuma ingerência. Para muitos, uma gramática complicada seria reflexo de uma cultura burocrática e cerimoniosa. Nada mais falso! Populações de vida extremamente simples, como a maioria dos povos tribais, têm às vezes gramáticas muito complexas. Já os britânicos, conhecidos por seu tradicionalismo e cerimônia, falam uma das línguas gramaticalmente mais despojadas.

Na verdade, é o léxico o espelho da alma de um povo, é aí que reside sua legítima criatividade. Por meio das palavras é possível compreender o modo como uma comunidade de falantes pensa a realidade, os valores que lhe são importantes, a maneira de organizar a própria vida. O vocabulário é a lente pela qual vemos a existência.

Línguas indígenas não têm termos técnicos, científicos ou jurídicos. Em compensação, denominam cada arbusto, cada touceira de mato, cada gramínea de modo diferente porque, para os índios, a floresta é muito importante, é seu habitat, sua fonte de alimento, sua farmácia e a morada de sua espiritualidade.

Algumas línguas de povos tribais não têm numerais acima de três ou cinco, assim como não distinguem mais do que quatro ou cinco cores, pelo simples fato de que não precisam de toda essa riqueza vocabular típica das línguas de civilização para dar conta de experiências cotidianas bastante corriqueiras. Já o nosso léxico, de 200 mil palavras, destina mais da metade desse número a cobrir áreas de extrema especialidade.

Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química em 1977, certa vez lamentou que as línguas ocidentais tivessem tantos nomes para cores, distinguindo às vezes tons que o próprio olho mal percebe, e ao mesmo tempo tivesse uma só palavra para o amor. Dizia ele: “tenho quatro filhos, e amo cada um deles de modo diferente; no entanto, no dicionário esses quatro sentimentos se chamam simplesmente ‘amor’”. Assim como é amor o sentimento do filho pelos pais, do marido pela mulher, do enólogo pelo vinho, do avarento pelo dinheiro… Enquanto isso, para os comerciantes de tecidos uma fazenda marrom pode ser castanho, camurça, caramelo, champanhe, terra, café com leite, tabaco e mais uma porção de outros matizes, além, é claro, do próprio marrom.

Se o léxico é o espelho da alma de um povo, então nossa civilização pós-industrial dá mais valor à técnica e à produção do que aos sentimentos. Se a língua reflete nossa escala de valores, que valor tem em nossa cultura o amor, a amizade, a solidariedade?