Nossa ética egocêntrica

Minha mais recente postagem gerou certa polêmica entre amantes dos animais e amantes de um bom churrasco. Na verdade, diante das mudanças climáticas, da iminente destruição do planeta pelo ser humano, mas também diante de uma certa evolução da consciência humana que se inicia no Renascimento e na Revolução Científica do século XVII e continua com o Iluminismo do século XVIII, pregando valores humanistas de democracia, igualdade e fraternidade, tendemos cada vez mais a olhar com compaixão para seres que antes víamos apenas como objetos utilitários. Afinal, antes da Revolução Industrial, do petróleo e da eletricidade, os animais eram os motores da indústria, os meios de tração e transporte e, evidentemente, como o são até hoje, nossa principal fonte de alimento.

Mas, muito antes disso, desde que saímos das cavernas e nos tornamos animais gregários, percebemos que era preciso estabelecer regras de conduta para o convívio social, pois, se cada um fizesse o que bem entendesse, agindo segundo seus próprios instintos como se estivesse na selva, esse projeto coletivo chamado sociedade sucumbiria ao caos e à barbárie. Por isso, os gregos inventaram uma coisa chamada ética, um conjunto de preceitos do que se deve ou não fazer tendo por base o princípio de que se deve buscar o bem comum; seu lema é: não faça aos outros o que não quer que façam a você. Se todos seguirem esse lema, todos serão felizes e viverão em harmonia.

O problema é que a ética inventada pelos gregos e seguida por todos até hoje é fundamentalmente antropocêntrica, isto é, toma o ser humano como o centro do Universo e a medida de todas as coisas. Essa ideia foi também reforçada tempos depois pelo cristianismo, para quem o homem é a imagem e semelhança de Deus, e este teria criado o próprio Universo para usufruto humano (“Não sou o dono do mundo, mas sou filho do dono”, dizem os evangélicos). Logo, ao homem tudo é permitido, pois tudo o que foi criado por Deus nos pertence e dele podemos dispor ao nosso bel-prazer, especialmente a natureza e, com ela, os animais. O Deus judaico-cristão Javé até apreciava sacrifícios de animais em sua honra. (Na verdade, Javé via com bons olhos até sacrifícios humanos, só que estes foram abandonados quando começaram a se chocar com a ética grega do Ocidente cristianizado.) Mas outras religiões, com seus deuses, também realizavam sacrifícios humanos e animais (estes últimos algumas ainda realizam), pois todas as religiões pressupõem deuses que criaram o mundo para o deleite e usufruto dos homens.

Em resumo, o ser humano criou para si uma ética conveniente a si próprio, em que define certo e errado sempre em função de seu próprio interesse. A ética religiosa, também chamada de moral, segue o mesmo princípio. Por exemplo, os antiabortistas argumentam que é um crime interromper a gestação ainda nas primeiras semanas, pois a vida humana, segundo eles, se inicia na concepção. Resta saber o que eles entendem por vida humana. E por que essa vida seria mais valiosa que a de um animal não humano.

Um embrião humano de algumas semanas de existência é desprovido de sistema nervoso central, portanto não tem sensações, não sente dor nem tem sentimentos ou pensamentos; numa palavra, não é um ser senciente, dotado de consciência, sabedor de que está vivo e de que tem um futuro pela frente. Nesse sentido, um embrião nessa fase é menos “vivo” que uma formiga ou uma barata. No entanto, os antiabortistas não hesitam em pisar em formigas ou abater baratas com inseticida, embora defendam com unhas e dentes a “vida” de um embrião que nada mais é do que um amontoado de células, um mero projeto de ser vivo que ainda não está, rigorosamente, vivo. Mas, nesse caso, a crença religiosa no caráter divino e sagrado da vida humana se sobrepõe a todo o conhecimento científico sobre o que é realmente a vida. Logo, a discussão sobre a liberação do aborto, que deveria ser pautada pela racionalidade e pelo bom senso, se vê turvada pela crendice e pelo fanatismo. Paradoxalmente, alguns antiabortistas chegam a ameaçar de morte médicos que se proponham praticar — legalmente, é preciso ressaltar! — abortos, pois, segundo a ética desses grupos, a vida de um embrião desprovido de consciência vale mais que a do médico que apenas cumpre seu dever legal e que tem família, amigos, uma carreira, lembranças do passado, planos para o futuro…

A questão de se devemos ou não comer carne e outros derivados de animais ou pelo menos se o modo como criamos esses animais para o abate ou a exploração de seus derivados acaba sendo tratada segundo uma ética muito conveniente aos nossos próprios interesses, inclusive os financeiros. Não importa se estou impingindo dor inimaginável a seres que têm sentimentos, laços afetivos, sentem amor, prazer, alegria, tristeza, medo, desde que eu esteja cumprindo a nobre missão de gerar empregos e matar a fome dos humanos. E se eu estiver ganhando dinheiro com isso, que mal tem?

Somos tão antropocêntricos que nossa própria legislação, fundada na ética greco-judaico-cristã, pune com muito mais rigor uma simples injúria contra um ser humano do que o assassinato de um animal. Só que a psiquiatria forense já demonstrou que quem é cruel com animais também é cruel com pessoas. E que, ao prendermos hoje o assassino de um animal, estaremos salvando vidas humanas amanhã. Só falta os juristas e os legisladores compreenderem isso.

A ética deveria ser um conjunto de princípios de conduta visando a proporcionar o bem. Mas o bem de quem? Os gregos, criadores da ética, tinham escravos, e o bem dos escravos não importava aos seus senhores, afinal trata-se de uma ética seletiva: devemos fazer o bem, mas escolhemos arbitrariamente quem serão os destinatários desse bem. Entre o meu interesse e o seu, deve prevalecer o meu, o do meu grupo, da minha etnia, da minha classe social, da minha espécie animal. A própria ciência moderna, ao submeter animais a dolorosos — e por vezes inúteis — experimentos para desenvolver tratamentos para o sofrimento humano, se vale dessa ética seletiva: faça o bem, mas veja a quem!

Se somos os donos do planeta, ou os filhos do dono, então podemos tudo em nosso próprio proveito, tudo é lícito se for para o nosso bem. Só que o planeta está começando a cobrar a conta por essa arrogância humana. Embora tenhamos inventado deuses que são nossa imagem e semelhança, que perdoam todos os nossos pecados e que nos autorizam a fazer o que for melhor para nós nesse mundo que eles supostamente criaram, o Deus verdadeiro, isto é, a natureza, aplica sobre nós suas leis implacáveis. Mesmo com nossa ética egocêntrica e arrogante nos dizendo que estamos certos, estamos começando a pagar caro e de forma irreversível por nossa presunção.

Os evangélicos e as eleições

Nestas eleições, em que deveriam estar sendo discutidos os grandes temas nacionais, como a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a infraestrutura, o debate se perde em questões que não têm nada a ver com a administração do país, mas que são caras a grande parte da população, provavelmente por falta de uma cultura política, reflexo de nossa falta de cultura geral. Uma dessas questões é, infelizmente, a religião. Desde sempre, o povo brasileiro escolheu seus governantes e representantes muito em função de suas crenças religiosas. Para muitos brasileiros, mais importante do que se o candidato é honesto ou competente, é se ele acredita ou não em Deus, especialmente no Deus judaico-cristão. Historicamente, padres e pastores têm influenciado muitos fiéis, fazendo pregação política nos templos e por vezes ameaçando com o Inferno e a danação eterna aqueles que não votarem em determinado candidato, o que surte grande efeito nos mais ignorantes – por sinal, boa parte da população brasileira.

Mas desde que se discute religião nas campanhas políticas, o foco têm sido sempre os chamados “evangélicos”, na verdade, protestantes de linha pentecostal, como os membros da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, ou neopentecostal, como os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo. É que existem também os protestantes tradicionais, adeptos das igrejas que surgiram com a Reforma Protestante de Lutero em 1517: são os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, etc. Estes não costumam ser chamados de evangélicos porque seu comportamento em geral difere bastante daquele dos (neo)pentecostais. Portanto, é destes últimos que quero falar, já que são estes que estão no foco da discussão política atual.

O Brasil é um país majoritariamente religioso e sobretudo cristão, abarcando cidadãos das mais diversas fés e confissões, como católicos, protestantes, ortodoxos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, umbandistas, candomblecistas, além daqueles que creem em Deus mas não seguem nenhuma doutrina em particular.

No entanto, não se fala desses grupos religiosos como se fala dos evangélicos, nem o interesse dos políticos está voltado para essas outras comunidades como está para a evangélica. Por quê?

É fato que as denominações (neo)pentecostais são as que mais têm crescido no Brasil, apontando para a tendência de se tornarem majoritárias dentro em breve. Isso se deve a diversos fatores, mas principalmente ao apelo que essas igrejas têm na população mais carente, oferecendo-lhe a possibilidade de solução mais concreta e imediata de seus problemas do que outras religiões.

Mas, se não só os políticos como também a população em geral tende a considerar os evangélicos um grupo à parte em meio à massa dos religiosos em geral e, mais do que isso, um setor à parte da própria população brasileira, é porque esse grupo tem um comportamento que os diferencia, e muito, dos demais cidadãos, o que também é a causa do preconceito que sofrem.

Para o senso comum, o evangélico é um indivíduo que lê a Bíblia todos os dias, vai à igreja toda semana (às vezes mais de uma vez por semana) ouvir um pastor gritar histericamente, não bebe álcool, usa roupas sóbrias – no caso das mulheres, saias e cabelos compridos; algumas nem se depilam –, só ouve música gospel, só assiste a canais de TV de suas igrejas e sobretudo paga o dízimo à sua igreja “religiosamente” (desculpem o trocadilho).

Diferentemente de outros grupos religiosos, os evangélicos são proselitistas e tentam agregar cada vez mais fiéis às suas igrejas, o que representa cada vez mais dízimos e, portanto, mais poder financeiro, que se traduz em cada vez mais templos e mais canais de rádio e televisão – além, é claro, de uma vida cada vez mais rica e luxuosa para os comandantes dessas igrejas.

Nenhuma outra confissão religiosa tem uma bancada tão organizada no Congresso Nacional: não há uma bancada espírita, judaica ou islâmica, mas há uma poderosa e influente bancada evangélica, por sinal sempre fazendo parte da base de apoio ao governo – qualquer governo que seja. Nenhuma outra confissão tem tantas emissoras de rádio ou de TV. Nenhuma outra confissão é tão rica, com exceção, é claro, da Igreja Católica, mas a riqueza desta resulta de um patrimônio de séculos de hegemonia no Ocidente e não da arrecadação de dinheiro entre os fiéis.

Outro aspecto que chama a atenção aos evangélicos é seu conservadorismo em termos de costumes, o que faz a extrema direita sempre flertar com eles. Mais do que isso, o fundamentalismo e, por vezes, o literalismo das posturas de certos evangélicos os coloca como fanáticos religiosos, e daí vem o preconceito maior contra eles. Ao mesmo tempo, o preconceito deles contra outros credos, especialmente os de matriz africana, chegando em alguns casos a pregar e a praticar a violência física contra “a religião do Diabo”, bem como sua censura ao homossexualismo, os faz serem vistos como racistas e homofóbicos, portanto cultores do ódio em vez do amor, base de todas as religiões.

Enfim, todos esses aspectos acabam por alimentar a desconfiança contra os evangélicos por parte dos que não seguem essa doutrina. E, pelo crescente tamanho dessa comunidade, nenhuma força política pode ignorá-la, já que, sem ela e seu apoio no Congresso, fica difícil governar. O temor da parcela mais progressista e esclarecida da população é que essa comunidade, vindo a tornar-se majoritária no Brasil, tente impor a toda a sociedade, incluindo os não cristãos e os não religiosos, uma teocracia, em que a “palavra de Deus”, isto é, a Bíblia em sua leitura literal e sobretudo a vontade dos pastores, se sobreponha à Constituição e às leis. Isso seria o fim da democracia, eis por que fanáticos religiosos e extremistas de direita têm tanto apreço uns pelos outros.

Corpo, mente, alma, espírito

As palavras que compõem o título desta postagem aparecem com muita frequência em textos de autoajuda, filosofia, religião e espiritualidade, e todas elas já existiam em latim: corpus, mens, anima, spiritus. Aliás, os romanos já tinham um lema que até hoje é muito verdadeiro: mens sana in corpore sano, “mente sã em corpo são”, um estímulo à prática da atividade física como benefício também à mente.

Embora cada um desses vocábulos represente um conceito distinto e bem definido, o fato é que, com exceção do corpo, entidade física e biológica de cuja conceituação ninguém tem dúvida, os demais conceitos por vezes se confundem, especialmente em línguas que não dispõem de todas as quatro palavras como o português. Então tentemos defini-las para mostrar por que seus significados às vezes se sobrepõem.

Segundo a moderna concepção da neurociência, a mente é o cérebro em funcionamento. Mas o produto da bioquímica do cérebro já era concebido como a sede da racionalidade humana bem antes do advento da neurociência. A mente racional é o instrumento do raciocínio e também da imaginação, do devaneio e dos sentimentos. Desde a Antiguidade, a mente era vista como algo inerente ao corpo vivo, isto é, como a inteligência e a capacidade de discernimento. Não por acaso, mens provém da raiz indo-europeia *men-, que significa “pensar”. Logo, a mente é o lugar onde mora o pensamento, o intelecto.

Os conceitos de alma e espírito se confundem até etimologicamente, pois anima e seu correlato animus significavam primitivamente “sopro”: anima/animus têm a ver com o grego ánemos, “vento”, ao passo que spiritus deriva do verbo spirare, “soprar”, que sobrevive em português em espirar, respirar, inspirar, expirar, aspirar, conspirar, suspirar, etc. Tanto a alma quanto o espírito eram concebidos pelos antigos como o sopro de vida ou sopro divino (essa visão estava presente em várias tradições, da Grécia e Roma antigas ao judaísmo, ao hinduísmo e ao budismo). É que, não podendo explicar racionalmente a natureza da vida e o porquê de alguns entes serem animados e outros não, pensava-se que a vida fosse um dom divino, algo soprado pelos deuses dentro da matéria inerte, dando-lhe vida e consciência. Além disso, no entendimento da época a vida estava diretamente ligada à respiração: se respira, é vivo; se é vivo, respira.

A alma (em grego psykhé) foi desde o início associada a um princípio sobrenatural, que só os seres vivos – e, segundo algumas tradições filosóficas, só o homem – possuem. E desde logo foi vista como algo que habita o corpo, mas distingue-se dele e dele se desprende ao morrermos. Assim, a alma poderia existir sem o corpo, mas não este sem a alma: seres inertes como as pedras não têm e nunca terão alma; o corpo animal ou vegetal, ao ser desprovido da alma, apodrece.

O espírito é um conceito que, para a filosofia, às vezes se confunde com a mente e às vezes com a alma. Para os estoicos, o espírito (em grego pneûma) é o que distingue o vivo do bruto: o intelecto, mas também os sentimentos, as emoções, os estados de alma (ou de espírito). Nesse sentido, a alma é o que dá vida, a mente é a faculdade da razão, e o espírito é a inspiração (vejam aqui o verbo spirare mais uma vez), a imaginação, a criatividade, a emoção, o senso estético, a moral, a ética, a virtude…

Mas o adjetivo espiritual é também muitas vezes empregado como sinônimo de religioso, como em “líder espiritual”, referindo-se a chefes de igrejas ou de seitas. Donde se deduz que o espírito seria um conceito sobretudo religioso.

Já para os espíritas, a alma é o espírito encarnado num corpo físico, e o espírito é uma realidade transcendente que, de tempos em tempos, se incorpora na matéria, dando origem aos seres vivos. É forçoso dizer que essa concepção se restringe à doutrina espírita, não sendo necessariamente partilhada pelas correntes filosóficas.

Essa nebulosidade na definição de mente, alma e espírito no âmbito tanto da filosofia quanto da religião levou a que certas línguas não dispusessem dos três conceitos, mas de apenas dois. Enquanto o português, o espanhol (mente, alma, espíritu), o italiano (mente, anima, spirito) e o inglês (mind, soul, spirit) dispõem dos três significados, o francês (âme, esprit), o alemão (Seele, Geist) e as línguas escandinavas, como, por exemplo, o sueco (själ, ande) admitem apenas dois. O resultado é que a palavra para “espírito” acaba sendo usada também para denominar a mente. Pode-se perceber isso ao consultar os verbetes “mente” e “espírito” em português na Wikipédia e depois carregar as páginas correspondentes nas demais línguas. O leitor verá que será redirecionado em ambos os casos à palavra correspondente a “espírito” em francês ou alemão, por exemplo.

Enquanto em português ou inglês a definição de mente na enciclopédia é fundamentalmente técnica e científica, e a de espírito é filosófica e místico-religiosa, em francês ou alemão tem-se no verbete “esprit” ou “Geist” uma mistura de ambas as coisas.

Nessas línguas, há um certo embaraço quando se trata de um texto técnico de neurociência, por exemplo, em que o conceito de mente, muito bem delimitado, não tem nada a ver com o de espírito, seja em seu sentido filosófico, religioso ou do senso comum. Nesses casos, o francês utiliza às vezes o termo mental (substantivo) para referir-se à mente enquanto fenômeno biológico. Em alemão, usa-se às vezes Verstand ou Vernunft (literalmente, “intelecto” ou “razão”) para distinguir a mente do espírito (Geist). Só que a mente em sentido neurológico não é exatamente o mesmo que o intelecto ou a razão, termos mais afeitos ao vocabulário da filosofia e do senso comum.

É curioso que, embora o latim tivesse o termo mens, este não tenha passado ao francês, língua da lógica e da razão (pelo menos é o que dizem), assim como o vocábulo germânico *mundiz, “mente”, de mesma origem que mens, só passou ao inglês mind, mas não às demais línguas germânicas, como o alemão, idioma que, segundo alguns, é o único no qual é possível filosofar.

A origem da palavra “feriado”

Eis que chegou mais um feriado. Mas por que existem feriados? Se hoje a principal função dessas datas em que não se trabalha é descansar, de preferência em algum lugar agradável longe de casa, o sentido primeiro do feriado – e consequentemente da palavra – era o de dia santo, em que o trabalho era suspenso para que os fiéis pudessem ir à igreja venerar o santo do dia. Feriado deriva de féria, que, além de sua acepção mais conhecida de ganho diário dos taxistas e outros trabalhadores diaristas, também significa “dia de semana” (daí as denominações segunda-feira, terça-feira, etc., em que feira, na verdade, quer dizer “féria”, isto é, dia útil) e “dia santificado”, portanto dia de descanso.

Logo, o feriado é, em princípio, um dia consagrado às obrigações religiosas, em que, à maneira do sábado (Shabbat, dia de descanso e orações dos judeus) e do domingo (dominicus, dia do Dominus, “o Senhor”), cessa todo o trabalho e os corações e mentes se voltam ao sagrado.

Sendo o feriado um dia de descanso, as férias nada mais são do que uma sequência de feriados: embora a palavra férias seja pluralícia, isto é, só se empregue no plural, não deixa de ser o plural de féria, assim como o inglês holidays, “férias”, é plural de holiday, “feriado”.

Mas de onde vem a palavra féria, que deu tantos derivados? A resposta está no latim feria, mais comum no plural feriae, “repouso em honra dos deuses”. Essa palavra está etimologicamente ligada a outras como festum, “festa” (em geral em louvor aos deuses)”, festus, “festivo”, fas, “justiça divina”, nefas, “violação da lei divina, pecado”, e nefastus, “nefasto, pecaminoso”. Aliás, a própria palavra feira vem do latim feria, já que nas festas populares era comum a montagem de barracas onde se vendiam comes e bebes. Daí, feira passou a ser sinônimo de comércio, especialmente ao ar livre, como são as feiras livres no Brasil, mas também em grandes centros de exposições (por exemplo, feira de informática, feirão de automóveis, etc.).

A relação de todas essas palavras com a ideia de divindade se encontra em sua ancestral, a raiz indo-europeia *dhēs‑ (para quem não sabe, o indo-europeu, falado no Cáucaso cerca de 6 mil anos atrás, é a língua-mãe, dentre outros, do latim e do grego, e o asterisco antes da raiz indica que se trata de forma não documentada, mas reconstruída pelos linguistas). Essa raiz, que queria dizer “sagrado”, é também a fonte do grego theós, “deus”, que nos deu as palavras teologia e ateu, dentre outras.

Portanto, feira, féria, férias, feriado, festa, têm todas uma conotação de sagrado (embora esse fato seja ignorado pela maioria dos falantes). Tanto é assim que boa parte dos feriados são datas comemorativas da Igreja Católica, como o dia de Nossa Senhora Aparecida, comemorado hoje, embora também haja os feriados cívicos (Independência, República, Tiradentes, fundação das cidades, etc.).

Então, pessoal, partiu comemorar o feriado, mas com moderação na comida e bebida, para que a festa não se transforme num dia nefasto.

País cristão ou país laico?

A recente polêmica sobre os decretos de fechamento temporário de templos religiosos, em que felizmente prevaleceu o bom senso, dá a dimensão do quão realmente laico é o estado brasileiro.

Como se sabe, a Proclamação da República, em 1889, marcou não só o fim da monarquia como também a separação entre Igreja Católica e estado brasileiro – até então, o catolicismo era a religião oficial do Brasil, com sérias implicações políticas em cujo mérito não vou entrar aqui. Só quero lembrar que o estado laico, isto é, que não privilegia nenhuma religião e dá ao cidadão a liberdade de consciência, credo e expressão, é uma conquista da modernidade que devemos aos filósofos iluministas do século XVIII.

Embora a ideia de que todos têm direito a escolher a crença religiosa (que implica o direito de não escolher nenhuma), como, de resto, o direito de escolher a tendência política, os governantes e parlamentares, o time de futebol preferido, etc., nos pareça óbvia hoje em dia, ela tem pouco mais de duzentos anos e só foi posta em prática efetivamente há pouco mais de cem anos. Por isso, a maioria dos países ocidentais, que vivem o chamado estado de direito, ainda não assimilaram totalmente esse princípio. O Brasil, que em matéria de estado de direito ainda está engatinhando, revela isso quando a legislação oficial prevê uma série de feriados religiosos católicos, mas não contempla as datas sagradas de outras religiões. Certa vez tive, por conta própria, de dispensar da aula uma aluna judia numa data comemorativa da sua religião que, obviamente, não estava prevista no calendário escolar da universidade.

Como, evidentemente, o calendário oficial não pode contemplar todas as datas sagradas de todas as religiões, até porque existem centenas de religiões no mundo e pelos menos várias dezenas delas no Brasil, o mais lógico numa república que se diz laica seria que apenas as datas cívicas fossem feriados. Muitos alegam que o Brasil é um país católico, daí comemorarmos até o dia da Padroeira do Brasil. Isso não é verdade: o Brasil é um país cujo povo é predominantemente, mas não totalmente católico. Portanto, católica é uma parcela da população, não o povo como um todo, menos ainda o estado.

Mas o que quero ressaltar aqui é o chauvinismo católico enrustido na nossa própria língua. Os defensores do politicamente correto, que vivem caçando as bruxas da intolerância racial, sexual, social, etc., ainda não atentaram para o fato de que expressões como “Nosso Senhor” ou “Nossa Senhora” embutem uma reverência a Jesus e a Maria que só cabe aos cristãos fervorosos. Num estado laico, o dia de Nossa Senhora Aparecida não deveria ser feriado pela razão acima exposta, bem como órgãos oficiais e meios de comunicação não vinculados à Igreja deveriam substituir “Nosso Senhor” e “Nossa Senhora” pelas denominações mais neutras “Jesus Cristo” e “Maria”, da mesma forma como deveriam evitar chamar o papa de Sua Santidade, a menos que dispensassem o mesmo tratamento (o que não costuma ocorrer) ao patriarca de Constantinopla, ao dalai-lama, e assim por diante. Aliás, tampouco tenho ouvido a mídia se referir à rainha da Inglaterra como “Sua Majestade” ou ao recém-falecido duque de Edimburgo como “Sua Alteza Real”.

Os excluídos da ciência

Minha especialidade, como todos sabem, é a linguística. E, como nem todos sabem, a linguística é uma ciência (a classificação “humanidades” que às vezes lhe é aposta não lhe faz justiça). Mais ainda, eu diria que é uma hard science, do mesmo nível de complexidade e de precisão na descrição de seu objeto que a física ou a biologia.

Mas o fato é que, como a pandemia de covid-19 colocou sob os holofotes mas também na berlinda a ciência em geral e a medicina em particular, como cientista que sou (e como professor de metodologia científica e orientador de pesquisas que fui durante vários anos), sinto-me autorizado e até mesmo instigado a falar sobre a ciência em geral e não só sobre linguística.

No meu artigo retrasado, falei sobre o renascimento da ciência, ou melhor, da credibilidade na ciência, em face do momento crítico que estamos atravessando. Mas é preciso reconhecer que, apesar de todos os sucessos que o trabalho abnegado de cientistas obteve nos últimos quatro séculos e, consequentemente, da substancial melhoria das condições de vida e da constante demolição de mitos que a ciência nos tem proporcionado, ela está longe de ser unanimidade, sobretudo entre as pessoas comuns, aquelas que têm da ciência apenas uma ideia vaga e, não raro, distorcida.

A religião, que os cientistas nunca consideraram sua inimiga (há até cientistas religiosos), mas que sempre teve a ciência e o pensamento lógico-racional como inimigos, ainda é muito forte e muito presente, principalmente nas sociedades menos desenvolvidas, com altos índices de pobreza e baixos níveis de escolaridade. Além dela, as bolhas produtoras de fake news das redes sociais também se comprazem em alardear informações anticientíficas, por vezes em tom catastrofista, por vezes em tom de escárnio.

É claro que a ciência jamais será unanimidade (diz o ditado popular que nem Jesus Cristo conseguiu atingi-la), mas o alto índice de desconfiança nas teorias científicas e nos alertas dos cientistas é, em grande parte, resultado da incompreensão da ciência pelo cidadão médio, muitas vezes até detentor de formação superior, mas ignorante do modo como a ciência funciona e de como as verdades científicas são construídas. E nesse ponto vale fazer um mea culpa: os próprios cientistas e professores são responsáveis em grande parte pela existência daquilo que Gabriela Prioli chamou de “os excluídos da ciência”.

De fato, a ciência não é fácil de entender porque a realidade que ela se propõe explicar não é simples. A teoria que descreve um fenômeno complexo, tentando ser fidedigna a esse fenômeno, também precisa ser complexa. Nesse sentido, aliás, as “explicações” religiosas são muito mais atraentes ao indivíduo leigo porque são fáceis de entender: tudo acontece por um passe de mágica ou um milagre divino (como Deus ou os deuses fazem para realizar esses prodígios a religião não explica nem os devotos perguntam). Mas a péssima educação científica de nossas escolas, que enfatiza mais o lado burocrático do que o criativo da pesquisa e se ocupa mais de fórmulas do que de ideias, além da complexidade do próprio discurso científico, contribuem para afastar os cidadãos comuns da ciência, embotando-lhes o interesse pelo assunto, o que é terrível se pensarmos que nossa vida é impactada todos os dias pela ciência e seu principal corolário, a tecnologia.

E, para completar, temos a indiferença dos próprios cientistas, mais preocupados em ter seu trabalho legitimado por seus pares do que em falar sobre suas descobertas ao público leigo, à grande massa. A meu ver, faltam em nossos cursos de formação de pesquisadores disciplinas voltadas à preparação de divulgadores científicos, de comunicadores sociais que, cientes do impacto de seu trabalho sobre a sociedade e também de que é essa sociedade que financia tal trabalho, sejam capazes de explicar o complexo em linguagem simples. Apesar das tecnologias digitais, às quais praticamente qualquer um pode ter acesso, ainda são muito poucos os cientistas que são também blogueiros, youtubers, colunistas de jornais e revistas, apresentadores de programas de TV ou conferencistas para o grande público. O prejuízo da sociedade com isso é enorme, pois, sem a informação correta, não podemos tomar decisões corretas sobre nossa própria vida. E aí damos mais ouvidos a quem não sabe mas acha que sabe (políticos, artistas, esportistas, participantes do BBB, sacerdotes, astrólogos, publicitários, o dono do bar da esquina) do que a quem de fato sabe.

A desconfiança dos leigos perpassa toda a história da ciência. Claro, as pessoas suspeitam e até têm medo daquilo que não entendem. Daí por que é tão importante fazer o maior número de pessoas, sobretudo as tomadoras de decisões, entender a ciência. Como ela, diferentemente das crenças e das opiniões – da doxa, diriam os gregos – é um conhecimento que se acumula e se aperfeiçoa com o tempo, fica ao leigo a impressão de que a ciência não sabe nada e de que os cientistas estão perdidos. O caso típico é a história do ovo, que no passado era tachado pelos médicos como um veneno para o nosso sistema circulatório e que hoje é considerado o alimento mais completo que existe.

Ocorre que as pessoas comuns querem respostas prontas e definitivas às suas dúvidas (e principalmente aos seus medos), e a ciência não tem tais respostas. É que a verdade científica, contrariamente à religiosa ou à política, é sempre provisória porque estamos sempre aprendendo mais e melhor sobre o mundo que nos cerca. A descrição do mundo natural feita por Einstein é melhor que a de Newton, que é melhor que a de Galileu, que é melhor que a de Aristóteles. E logo o mundo tal como desenhado por Einstein também será redesenhado por novas descobertas e novas teorias, que explicarão aquilo que as atuais não explicam. Portanto, o conhecimento científico é um conhecimento em permanente (re)construção. O máximo que a ciência pode dizer é que, neste momento, tudo o que sabemos aponta nessa direção. Dito de outro modo, a ciência aprende com seus próprios erros. Logo, ela não é infalível, mas não há nada que substitua a pesquisa sistemática e bem feita, o estudo do cientista submetido aos seus pares em revistas de grande peso e debatido em público. Em O mundo assombrado pelos demônios, o astrônomo americano Carl Sagan diz que ainda não inventaram nenhum método para chegar ao conhecimento melhor do que a ciência. O que equivale a dizer que a ciência é, das ferramentas de que dispomos atualmente, a que mais nos aproxima da verdade.

Mas o que é a verdade? Cada um tem a sua própria definição de verdade, e para a maioria das pessoas a verdade é aquilo em que elas acreditam. Ou seja, para o crente, sua crença não é crença, é “A Verdade”.

Na Idade Média, por exemplo, verdade era o que constava nas Sagradas Escrituras ou o que diziam o padre, o bispo ou o Papa. O argumento de autoridade era suficiente para legitimar uma afirmação como verdadeira.

Já a verdade científica é aquilo que pode ser provado – e já foi provado muitas vezes – e é assim independentemente de crermos nela ou não. A verdade objetiva é diferente da verdade pessoal (ou convicção) e da verdade dogmática (ou crença na autoridade), pois ela é verdade independentemente de qualquer outra coisa, inclusive do que pensemos a respeito dela. Eu posso não acreditar que a água ferva a 100 graus Celsius ao nível do mar, mas isso continuará a acontecer a despeito da minha descrença.

A ciência apresenta hipóteses verificáveis e as testa de maneira metódica. Se em muitos e muitos testes a hipótese se verifica e em nenhum ela falha, passa a ser uma teoria, isto é, uma verdade científica. A ciência, portanto, recusa o argumento de autoridade (isso é assim porque foi dito pelo profeta X ou porque está escrito no livro sagrado Y).

Ciência não é crença, é a percepção dos fatos concretos a partir da nossa observação e experimentação sistemática e controlada (isto é, em que fatores externos ao objeto investigado não interfiram em seu comportamento, conduzindo a conclusões erradas). E, como nossa capacidade de observação e experimentação são sempre limitadas, fica a impressão de que a ciência mais erra do que acerta. De fato, o que sabemos hoje pode estar baseado em dados incorretos ou, mais provavelmente, incompletos. Mas a ciência tem seu mecanismo de autocorreção, o que a religião, por exemplo, não tem. Por isso, ela insiste em seus dogmas mesmo quando há provas concretas contra eles.

Cientistas do passado erraram bastante (o heliocentrismo é um exemplo clássico), mas nem por isso seu trabalho deve ser jogado no lixo ou apontado como um fracasso da ciência. Eles construíram os degraus que permitiram que outros cientistas avançassem na escalada do conhecimento. O mundo como o conhecemos hoje é bem diferente da descrição que dele faziam no século XVI. Mas foi graças ao conhecimento do século XVI que chegamos ao conhecimento do século XXI. Caso contrário, ainda estaríamos na Idade da Pedra.

A cada dia, a ciência explica novas coisas, que até então só tinham uma explicação místico-religiosa ou achística. Opiniões, intuições ou supostas revelações divinas não podem contrapor o conhecimento científico. Nada é verdade porque eu acho que é, ou porque alguém que eu respeito muito disse que é, ou porque consta neste ou naquele site. Só um novo estudo científico, mais perfeito, com mais dados, mais variáveis e realizado com maior rigor pode contestar outro estudo. Portanto, não é um site, não é um estudo isolado, mas o consenso da comunidade científica que dita o que provavelmente é verdade. Por isso, um estudo só não basta. Uma pequena amostra não prova. A opinião de uma grande autoridade menos ainda.

O astrofísico americano Neil deGrasse Tyson disse: “Um dos grandes desafios deste mundo é saber o suficiente sobre um objeto para pensar que você está certo, mas não o suficiente para saber que você está errado”.

A ciência acima de tudo ensina a pensar (aquilo que o cidadão médio tem preguiça de fazer) e a questionar o que os outros dizem. A falta do hábito de questionar leva a indivíduos crédulos e facilmente ludibriáveis, seja por publicitários, vendedores ou líderes políticos e religiosos.

Sendo uma forma de pensar (a melhor delas, em minha opinião), a ciência também é uma forma de cultura, tanto quanto a arte, a filosofia, as humanidades e os esportes. Assim, a popularização científica tem o duplo papel de esclarecer as massas, ajudando-as a tomar melhores decisões e tirando-as da condição de excluídas do conhecimento – e do poder –, e de revelar ao homem uma visão de mundo e uma compreensão da realidade tanto quanto a literatura, o teatro, o cinema, a música, a filosofia, a psicologia e a religião. Pena que tão poucos cientistas se deem conta disso!

A observação, a experiência e o raciocínio lógico, partilhados com a sociedade, levam ao conhecimento, que leva à sabedoria.

O coronavírus e o renascimento da ciência

Se é que podemos dizer que há algo de positivo nessa pandemia de covid-19, é o retorno triunfante do pensamento racional, especialmente em sua forma mais elaborada, a ciência. A coitadinha andava desacreditada e com pouco ibope desde inícios do presente século, quando uma avalanche de tentativas de restabelecer os dogmas religiosos e ideológicos como verdades absolutas, chegando-se mesmo a lançar dúvidas sobre fatos cientificamente comprovados, como o de que a Terra é redonda e vacinas funcionam, passou a assolar a humanidade – principalmente sua parcela menos informada e mais temerosa do desconhecido, que ela erroneamente chama de sobrenatural ou de realidade transcendente.

Claro, a história passa por ciclos: já vivemos a Pré-História, o humanismo clássico da Grécia antiga, o obscurantismo da Idade Média, o novo culto do homem e da razão durante a Renascença e o Iluminismo, que desaguou no incrível avanço científico-tecnológico dos séculos XIX e sobretudo XX. Mas talvez a sordidez dos líderes políticos desse período, com seus campos de concentração, seus gulags e duas guerras mundiais, tenha levado certas pessoas a um desencanto com o racionalismo e, consequentemente, à busca do suposto transcendente.

No entanto, a crise do coronavírus está nos mostrando que somente a ciência pode nos tirar dessa encrenca em que nós mesmos nos metemos. Que me desculpem os terraplanistas e antivacinistas de plantão, mas o que vai nos salvar não são as preces do Papa nem o jejum do nosso Presidente da República. Aliás, as constantes e vexatórias derrotas que ele tem sofrido ao insistir em contrariar a ciência mostram que, se quisermos compreender pelo menos um pouquinho como a natureza funciona, não é nos livros sagrados que encontraremos as respostas – pelo menos não as verdadeiras.

Tudo bem, se você acredita que terremotos, tsunamis, pandemias e desastres aéreos são enviados por Deus para testar a fé dos homens e que, rezando para ele, você conseguirá escapar são e salvo, isso é problema seu. Mais do que isso, é um direito seu!

Porém, como diria Karl Marx, outro ideólogo dogmático, você pode saltar do vigésimo andar de um edifício e acreditar que, graças à sua fé, você sairá voando, mas infelizmente é no chão que você vai se arrebentar. Dito de outro modo, contra fatos não há argumentos.

É claro que a ciência, no seu atual estágio, não tem todas as respostas (e talvez nunca venha a ter, pois a própria mente humana tem seus limites), mas ela tem o método seguro que nos leva da dúvida à certeza. Mesmo que você não acredite no método científico (provavelmente não se trata de descrer mas de não conhecê-lo e compreendê-lo), não há nada que prove que as explicações metafísicas funcionam melhor. Senão, não teríamos hospitais, as igrejas dariam conta de tudo.

Também certas teorias pseudocientíficas, na verdade, dogmas disfarçados, precisam ser combatidos, como o de que o aquecimento global tem causas naturais, de que a culpa pela existência da pobreza é dos ricos, ou de que a desigualdade entre brancos e negros começou no século XVIII com a escravidão. Claro que é preciso eliminar a injustiça, bem como salvar o planeta, mas não é maquiando a verdade e apontando falsos culpados que conseguiremos isso.

Infelizmente, a crença em dogmas é inculcada no ser humano desde a mais tenra idade e em casa (quem nunca ouviu falar de papai do céu?). Já o ensino de ciência só começa bem mais tarde, na escola, é fraco, precário e sobretudo burocrático. Ou seja, é mais importante decorar fórmulas que cairão no vestibular do que compreender o método científico, com seus experimentos e observações, testes e refutações de hipóteses, até chegar a um conhecimento que, se não é completo, pelo menos funciona para nossas necessidades e avança cada vez mais.

Outro ponto que quero destacar é que mesmo as curas supostamente milagrosas não resistem a uma análise científica mais rigorosa. Ou seja, muitos santos do passado foram canonizados com base em “milagres” que hoje são perfeitamente explicáveis pela razão. É claro que o Papa nem cogita descanonizar essas pessoas, mas o fato é que os milagres de hoje serão os casos clínicos rotineiros de amanhã. Além disso, a religião se apega muito ao milagre que salvou uma pessoa, mas não ao descaso de Deus com os milhares de outras pessoas, que não receberam a graça divina.

Portanto, se lhe faz bem rezar, meditar, fazer rituais e frequentar cultos (virtualmente, é claro!), continue; não tenho nada contra isso. Mas, por favor, fique em casa, lave bem as mãos e, quando a vacina contra a covid-19 estiver disponível – e estará, pode confiar – não deixe de tomá-la. Não vale a pena apostar contra a ciência; o preço dessa aposta pode ser alto demais.

A ciência explica a religião

Resolvi traduzir para o português um capítulo de livro que achei muito interessante e que explica, de maneira relativamente sucinta, um assunto tão complexo como é a natureza da religião. Por que as religiões existem? Por que a maioria das pessoas acredita em Deus ou em deuses? Quanto de natural e quanto de cultural há na tendência humana à religiosidade? Nesse texto, temos a ciência explicando a religião de dois pontos de vista: da biologia e da cultura. Trata-se de um texto acadêmico, mas nem por isso menos compreensível a pessoas relativamente instruídas. (Aliás, o próprio linguajar por vezes impenetrável da ciência pelo público em geral, somado à nossa péssima educação científica, explica em parte por que a religião, calcada exclusivamente em crenças, goza de mais credibilidade em nossa sociedade do que a ciência, com todo o seu método, rigor e, sobretudo, apoio em evidências concretas.)

Também é preciso advertir que o texto é cheio de referências a fontes bibliográficas que eu propositalmente omiti, até porque a bibliografia do artigo é bem extensa. Em todo caso, se alguém se interessar por ela, basta acessar o texto original, disponível em www.researchgate.net/publication/321716675.

A tradução a seguir é do 3º capítulo do livro The Handbook of Culture and Biology, organizado por J. M. Causadias, E. H. Telzer e N. A. Gonzalez, intitulado “Religion: cultural and biological perspectives”, de autoria de Stefanie B. Northover e Adam B. Cohen. Divirtam-se.

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Compreendendo a religião a partir
das perspectivas cultural e 
biológica

Apresentamos uma explicação cultural e biológica sintetizada sobre a origem das crenças e comportamentos religiosos. Qualquer fenômeno é o efeito de múltiplas causas (Mayr, 1961), mas daremos especial atenção às causas culturais e biológicas. Especificamente, proporemos que as crenças religiosas apareceram pela primeira vez como subprodutos de adaptações cognitivas evoluídas, que esses subprodutos podem ser adaptativos ou funcionais e que a aprendizagem cultural determina em grande parte as particularidades das crenças e comportamentos religiosos e determina, em parte, o grau de religiosidade. No geral, discutimos a religião como produto de uma complexa interação de cultura e biologia.

Primeiro, observamos que não é fácil discutir que características as religiões têm ou não em comum, ou mesmo o que é religião. Como observou Cohen (2009), a religião é um conjunto difuso, composto de tradições religiosas com características muito diferentes. No entanto, todas as religiões envolvem códigos morais, rituais, comunidade e crenças sobre agentes sobrenaturais (Atran & Norenzayan, 2004; Saroglou, 2011). Se essas semelhanças são importantes, algumas liberdades devem ser tomadas ao considerar comuns certas características em todas as religiões (por exemplo, considerar tanto Buda como o Deus judaico como agentes sobrenaturais), ao mesmo tempo em que se reconhecem as instâncias culturais únicas das religiões.

De onde vêm as religiões

Não há como saber exatamente quando surgiu a religião, mas certos comportamentos entre os primatas não humanos, como o lançamento acumulativo de pedras dos chimpanzés, compartilham características com os rituais humanos (Kühl et al., 2016). Precursores de crenças e comportamentos religiosos podem, portanto, ter surgido em nossos antepassados pré-humanos. O ser humano está equipado com mecanismos psicológicos evoluídos para resolver problemas de sobrevivência e reprodução recorrentes na história evolutiva. Muitas representações religiosas têm sido explicadas como subprodutos desses sistemas cognitivos adaptativos. Os conceitos religiosos podem fluir naturalmente de sistemas mentais intuitivos, como a teleologia (Kelemen, 2004), a permanência da pessoa (Bering, 2011), o dualismo (Bloom, 2005), a detecção de agente, o antropomorfismo e a teoria da mente. Vamos nos concentrar nos três últimos.

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Agentes sobrenaturais

Os agentes sobrenaturais desempenham um importante papel na religião (Atran & Norenzayan, 2004; Barrett, 2000; Boyer, 2003; Guthrie, 1993). Um agente é um animal, pessoa ou outro ser que reage a outros e se move por conta própria (Barrett, 2004; Boyer, 2001, 2003). A crença em agentes sobrenaturais, incluindo deuses, espíritos, ancestrais, fantasmas, demônios, anjos e gênios, é culturalmente universal (Pyysiäinen, 2009; Whitehouse, 2004).

O ser humano possui um mecanismo cognitivo para detectar a ação de agentes. Essa capacidade de reconhecer agentes vai além do mero reconhecimento de objetos, conforme demonstrado por New, Cosmides e Tooby (2007). Os participantes foram expostos a imagens de cenas, como uma savana africana ou uma escrivaninha, e então, instantes depois, novamente às imagens mas com um objeto, pessoa ou animal faltando. Os participantes detectaram mais rápida e precisamente mudanças em pessoas e animais (ou seja, agentes) do que em objetos inanimados. Por exemplo, os participantes se saíram melhor detectando um elefante cinza distante em um fundo razoavelmente cinzento do que uma van vermelha em um fundo verde, ainda que a imagem da van fosse maior que a do elefante.

Podemos ter razoável certeza de que a detecção de agente tem sido sempre adaptável. Ao longo da história evolutiva humana, pessoas e animais têm proporcionado oportunidades e imposto custos (New et al., 2007). A detecção de agente permite a resposta adaptativa, por exemplo, evitando ou defendendo-se de agentes ameaçadores (como animais predadores e inimigos humanos) e aproximando-se de agentes benéficos (como animais comestíveis e cuidadores). Nosso mecanismo de detecção de agente é altamente sensível, frequentemente sobre-inferindo a presença de agentes (Atran & Norenzayan, 2004; Barrett, 2000; Guthrie, 1993). A detecção de agente pode ser desencadeada por estímulos de não-agentes, como o farfalhar da relva ou formas geométricas simples que se movem em uma tela (Bloom & Veres, 1999; Heider & Simmel, 1944). O limiar pode ser estabelecido como baixo, porque deixar de perceber um agente perigoso pode ser mortal.

Muitos têm sustentado a hipótese de que a crença em agentes sobrenaturais é um subproduto de nossa adaptação para detectar agentes (Atran & Norenzayan, 2004; Barrett, 2000). No entanto, faltam evidências empíricas. Os testes dessa hipótese não revelaram correlação entre a crença religiosa e a detecção de agentes ilusórios (van Elk, 2013) e nenhum efeito de agentes sobrenaturais contribui para a detecção de agente (van Elk, Rutjens, van der Pligt e van Harreveld, 2016).

Antropomorfismo

Os agentes sobrenaturais são frequentemente conceptualizados como humanos (Boyer, 2001). O antropomorfismo, a interpretação de seres ou traços não humanos como humanos (Guthrie, 1980), é encontrado em todas as culturas (Brown, 1991; Guthrie, 1996) e pode ser entendido como uma adaptação para a vida em grupo. Os seres humanos são animais altamente sociais que dependem uns dos outros para a sobrevivência (proporcionando uns aos outros oportunidades de acasalamento, proteção, recursos, e assim por diante), mas também impõem custos uns aos outros. Portanto, os seres humanos possuem mecanismos cognitivos evoluídos para perceber outros seres humanos, mecanismos que permitem o reconhecimento de outros seres humanos, o comportamento humano e as consequências do comportamento humano (Guthrie, 1993). Esses mecanismos podem errar para o lado da percepção de estímulos ambíguos como humanos ou causados por seres humanos. Por exemplo, as pessoas muitas vezes veem rostos humanos em nuvens, na fumaça e em formações geológicas, ou ouvem vozes no vento (Atran & Norenzayan, 2004; Schick & Vaughn, 2005).

As teologias frequentemente contêm ideias sobre agentes sobrenaturais sobre-humanos; no entanto, as pessoas geralmente pensam em agentes sobrenaturais de maneiras mais simples e intuitivas – humanas (Barrett, 2000; Barrett & Keil, 1996; Boyer, 2001; Gervais, 2013b). Em um estudo clássico, os participantes ouviram ou leram estórias sobre Deus e responderam a perguntas ou parafrasearam o conteúdo dessas estórias. Os participantes que endossavam uma descrição teologicamente correta de Deus (como onipotente, onisciente, onipresente, etc.), em um questionário separado, no entanto, frequentemente projetaram limitações humanas sobre Deus ao recordar as estórias, mesmo que estas deixassem as habilidades de Deus abertas à interpretação. Por exemplo, a seguinte linha vem de uma estória sobre um menino que tem sua perna presa entre duas pedras num rio e reza a Deus para salvá-lo de se afogar: “Embora Deus estivesse respondendo a outra prece em outra parte do mundo quando o menino começou a orar, após algum tempo, Deus respondeu empurrando uma das pedras para que o menino pudesse tirar a perna” (Barret & Keil, 1996, p. 224). Os participantes geralmente indicavam que Deus respondeu à oração em outra parte do mundo antes de responder à do menino – realizando uma tarefa após a outra, como um ser humano – em vez de responder às duas preces ao mesmo tempo. Hindus na Índia responderam de forma semelhante (Barrett, 1998). Esse estudo é frequentemente citado como exemplo de uma restrição cognitiva sobre os conceitos religiosos. Essa interpretação recebeu críticas, no entanto. Westh (2014) argumentou que os participantes antropomorfizaram Deus, pelo menos em parte, porque a linguagem das estórias implicava fortemente uma versão antropomórfica de Deus. Westh (2014) também sugeriu que a universalidade dos conceitos antropomórficos religiosos se deve à universalidade do ato de narrar.

Mais evidências de um vínculo entre o antropomorfismo e a religião provêm de um estudo no qual os crentes religiosos perceberam mais rostos em imagens de paisagens do que os céticos (Riekki, Lindeman, Aleneff, Halme e Nuortimo, 2013). Por outro lado, Norenzayan, Hansen e Cady (2008) não encontraram relação entre a crença dos participantes em agentes sobrenaturais religiosos e sua tendência a antropomorfizar uma árvore e um vulcão.

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Teoria da mente

Seres sobrenaturais são frequentemente dotados de mentes humanas; na verdade, Boyer (2001) afirma que a mente é a única característica humana que sempre se acredita que os agentes sobrenaturais possuam. Perceber as mentes dos outros é o que se chama de mentalização, e quem tem a capacidade de mentalizar possui uma teoria da mente. Indivíduos com uma teoria da mente compreendem que outras pessoas têm pensamentos, desejos, intenções, lembranças e conhecimentos e que estes podem diferir dos seus próprios (Premack & Woodruff, 1978). A teoria da mente é crítica para uma espécie tão socialmente sofisticada quanto o ser humano; ela permite ao indivíduo interpretar e prever o comportamento dos outros, determinar com precisão o que as outras pessoas sabem (ou o que ele pensa que elas sabem, já que suas representações podem estar incorretas) e ler nas entrelinhas (por exemplo, às vezes “eu te ligo” significa “dá o fora”). O ser humano muitas vezes erra para o lado da sobrepercepção da mente. Tanto adultos como crianças atribuem estados mentais a estímulos tão variados como robôs, figuras de ação, bolhas e formas animadas em telas (Abell, Happé e Frith, 2000; Csibra, Gergely, Bíró, Koós e Brockbank, 1999; Gergely, Nádasdy, Csibra, & Bíró, 1995; Morewedge, Preston, & Wegner, 2007).

Alguma sustentação à ideia de que a crença em agentes sobrenaturais é um subproduto da teoria da mente vem da comparação entre homens e mulheres. Em média, as mulheres são mais religiosas do que os homens, e também desempenham melhor as tarefas da teoria da mente do que os homens (Baron-Cohen, Knickmeyer e Belmonte, 2005; Baron-Cohen, Wheelwright, Hill, Raste, & Plumb, 2001; Stiller & Dunbar, 2007). Essa diferença de gênero é, aparentemente, causada até certo ponto pelas maiores habilidades de mentalização das mulheres (Norenzayan, Gervais e Trzesniewski, 2012; Rosenkranz & Charlton, 2013). Além disso, indivíduos com diagnóstico de autismo, um distúrbio do desenvolvimento caracterizado por um déficit nas habilidades de mentalização, tendem a relatar menos crença em Deus do que indivíduos neurotípicos, e a relação entre autismo e crença é mediada pela mentalização (Norenzayan, Gervais e Trzesniewski, 2012). Finalmente, estudos de imagem por ressonância magnética funcional (IRMF) descobriram que as regiões cerebrais associadas à teoria da mente se ativam quando os participantes religiosos rezam ou pensam em Deus (Kapogiannis et al., 2009; Schjoedt, Stødkilde-Jørgensen, Geertz e Roepstorff, 2009).

Evidências e conclusões

Descrevemos três vieses cognitivos: detecção de agente, antropomorfismo e teoria da mente. Todos estes são sistemas mentais intuitivos, e há evidências de que a crença religiosa está relacionada ao pensamento intuitivo em geral. Os participantes que favorecem o pensamento intuitivo ou foram colocados num estado mental intuitivo relatam uma crença mais forte em Deus do que os participantes que favorecem o pensamento analítico ou foram colocados em um estado mental analítico (Gervais e Norenzayan, 2012; Pennycook, Cheyne, Seli, Koehler & Fugelsang, 2012; Shenhav, Rand, & Greene, 2012).

De acordo com certo ponto de vista, as representações religiosas são subprodutos de mecanismos cognitivos evoluídos para a detecção e compreensão adaptativa de animais e pessoas. Isso pode ajudar a explicar a ubiquidade da religião em todas as culturas. Além disso, parece que o antropomorfismo, as habilidades mentalizadoras e o pensamento intuitivo podem explicar algumas das variações na crença religiosa. A nosso ver, há menos sustentação empírica para a detecção de agente como base para a religião. Alguns pesquisadores têm argumentado que os vieses cognitivos intuitivos não são causa das crenças religiosas, mas consideram quais características das crenças religiosas são fáceis de representar mentalmente (Gervais & Najle, 2015). Dessa perspectiva, o antropomorfismo, por exemplo, não causa a crença em agentes sobrenaturais, mas explica por que os agentes sobrenaturais tendem a ser antropomórficos.

De subprodutos a religião adaptativa

Alguns estudiosos têm promovido a visão de que a religião pode ser adaptativa. Em vez de ver a religião como um subproduto ou uma adaptação, pensamos que é possível que as crenças e comportamentos religiosos tenham começado como subprodutos, e algumas delas, então, proporcionaram funções úteis. Assim, algumas crenças e comportamentos religiosos podem ser exaptações – características úteis não desenvolvidas pela seleção natural para sua função atual (Gould & Vrba, 1982).

Os pesquisadores há muito observaram uma conexão entre religião e cooperação, e a religião pode ser uma adaptação (ou exaptação) para promover a cooperação intragrupo (por exemplo, Irons, 2001; Wilson, 2002; Xygalatas et al., 2013). As teorias evolutivas da seleção de parentesco, o altruísmo recíproco e a reciprocidade indireta são inadequadas para explicar o alto nível de cooperação demonstrado pelos seres humanos, particularmente no contexto das interações entre pessoas geneticamente não relacionadas, já que os indivíduos são tentados a se aproveitar dos esforços alheios (Dawkins, 1976). Aqui discutimos duas teorias sobre como os comportamentos e as crenças religiosas têm servido para promover a cooperação intragrupo: castigo sobrenatural e sinalização de comprometimento.

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Castigo sobrenatural

Uma importante teoria é a de que as pessoas cooperam porque temem o castigo de agentes sobrenaturais ou forças cósmicas impessoais (por exemplo, karma) por violar normas e códigos morais (Bering & Johnson, 2005; D. Johnson, 2015; D. Johnson & Krüger, 2004; Norenzayan, 2013). Os infortúnios, como a doença, a morte ou a escassez, são frequentemente interpretados como castigo de agentes sobrenaturais (Bering, 2011; Boehm, 2008; Froese & Bader, 2010; Hartberg, Cox e Villamayor-Tomas, 2014; Hartland, 1924; Murdock , 1980, Swanson, 1960). Além disso, muitas culturas acreditam que o castigo sobrenatural se estende à família e aos amigos do transgressor (Aten et al., 2008; Bering & Johnson, 2005; Hartberg et al., 2014) e à vida após a morte. Os dados do Levantamento de Valores Mundiais (World Values Survey) coletados de 2010 a 2014 revelaram que cerca de 60% das pessoas em todo o mundo acreditam no Inferno (D. Johnson, 2016, p. 63). O medo do castigo sobrenatural é possivelmente uma adaptação multinível. Em primeiro lugar, indivíduos que são pegos enganando os outros sofrem consequências negativas, como perda de reputação e punição pelos membros do grupo. Com o surgimento da linguagem surgiu um maior risco de descoberta, pois aqueles que testemunharam comportamentos transgressivos poderiam espalhar a notícia. Indivíduos que temiam um castigo sobrenatural provavelmente apresentavam menos probabilidades de violar as normas cooperativas e, portanto, menos probabilidades de ser pegos violando as normas cooperativas. O medo do castigo sobrenatural beneficiava os crentes individuais, poupando-os de custos (por exemplo, castigo, vingança) que os membros do grupo impunham àqueles que quebravam as regras. Em segundo lugar, dentro de um grupo, o medo generalizado de um castigo sobrenatural à trapaça e outros comportamentos antissociais que corroem a confiança pode aumentar a cooperação intragrupo (D. Johnson & Krüger, 2004) e reduzir a quantidade de sanções custosas que devem ser realizadas (D. Johnson, 2016). Assim, o medo de um castigo sobrenatural poderia ter conferido benefícios físicos tanto aos indivíduos como aos grupos (D. Johnson, 2015, 2016; D. Johnson & Bering, 2006; D. Johnson & Krüger, 2004).

Evidências do castigo sobrenatural

Dois experimentos mostraram que a crença na presença de agentes sobrenaturais dissuadia a trapaça entre crianças (Piazza, Bering e Ingram, 2011) e adultos (Bering, McLeod e Shackelford, 2005). Não está claro, no entanto, se os participantes anteciparam o castigo dos agentes sobrenaturais (uma princesa invisível no primeiro e um fantasma no último). As pessoas atribuem intuitivamente os conhecimentos moralmente relevantes a Deus, contudo. Os participantes de um estudo realizado por Purzycki e colegas (2012) responderam mais rapidamente a perguntas sobre o conhecimento de Deus sobre as transgressões morais (por exemplo, “Deus sabe que Adam trapaceia em seus impostos?”) do que àquelas sobre informações moralmente irrelevantes (“Deus sabe quantos picles Stefanie tem na geladeira?”), mesmo que as pessoas afirmem explicitamente que a onisciência de Deus significa que ele sabe absolutamente tudo. Os resultados foram os mesmos quando Deus foi substituído por um agente onisciente fictício, desde que o agente punisse transgressões morais. Além disso, em Burkina Faso, os empresários tinham maior tendência a jogar um jogo econômico de forma justa quando eram lembrados do castigo sobrenatural (Hadnes & Schumacher, 2012).

Como o próprio nome indica, a hipótese de castigo sobrenatural enfatiza o castigo em vez da recompensa. Pesquisas sugerem que o castigo conduz à cooperação mais do que a recompensa (Gürerk, Irlenbusch e Rockenbach, 2006; D. Johnson, 2016). Uma investigação de 67 sociedades revelou uma correlação negativa entre a taxa de criminalidade e a crença no Inferno, mas uma correlação positiva entre a taxa de criminalidade e a crença no Céu (Shariff & Rhemtulla, 2012). Em um estudo de laboratório, os participantes que relatavam que Deus era vingativo e punitivo trapacearam menos em uma tarefa do que os participantes que relatavam que Deus era indulgente e compassivo (Shariff e Norenzayan, 2011). Finalmente, em uma série de jogos econômicos, os participantes acreditavam mais frequentemente que as pessoas, e não computadores ou o acaso, causaram resultados negativos, mas não resultados positivos. Ou seja, os eventos desfavoráveis tiveram mais probabilidade de ser vistos como causados por agentes do que os eventos favoráveis (Morewedge, 2009). Os estudos discutidos até agora apresentam evidências substanciais, embora não completamente inequívocas, de que a crença no castigo sobrenatural reduz o comportamento antissocial. Dois estudos experimentais sugerem que o medo de um castigo sobrenatural também pode aumentar o comportamento pró-social (Hadnes & Schumacher, 2012; Yilmaz & Bahçekapili, 2016). Além disso, o castigo sobrenatural está frequentemente envolvido na gestão cooperativa de recursos naturais compartilhados, como água, florestas e pescarias (Hartberg et al., 2014; Snarey, 1996). Atualmente, há evidências indiretas a sustentar a hipótese de que a crença no castigo sobrenatural aumenta a cooperação intragrupo.

Deve-se notar que a crença no castigo sobrenatural não é um mecanismo perfeito para o bem. A crença no castigo sobrenatural aumenta o cumprimento das normas do grupo, mas essas normas podem não ser boas para todos os indivíduos e podem até ser consideradas moralmente repugnantes por outros grupos. Por exemplo, vários infortúnios têm sido explicados como castigo divino pela homossexualidade (Tashman, 2011), feminismo (Goodstein, 2001), tecer no dia da semana errado (Boehm, 2008) e deixar de praticar a religião “correta” (USA Today, 2012; Tashman, 2016; Wood, 2010). A crença no castigo sobrenatural está associada a agressão (K. Johnson, Li, Cohen e Okun, 2013), atribuição de culpa à vítima (Strömwall, Alfredsson e Landström, 2013) e justificação da desigualdade (Cotterill, Sidanius, Bhardwaj e Kumar, 2014). Dito tudo isso, a coordenação e a cooperação societais geralmente dependem de pessoas capazes de enviar e receber sinais de suas intenções e confiabilidade. Por isso, discutiremos a seguir teorias sobre sinais religiosos de intenção cooperativa.

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Sinais custosos

Os animais às vezes exibem traços ou comportamentos fenotípicos que são difíceis de entender a partir de uma perspectiva evolutiva porque são custosos. Talvez o exemplo mais conhecido seja a cauda extravagante do pavão. A cauda do pavão é metabolicamente custosa e impede a fuga do perigo. Cabras de leque e gazelas fornecem outro exemplo (Sosis & Alcorta, 2003). Esses animais podem saltar vigorosamente no ar quando os predadores estão por perto, atraindo sua atenção e gastando momentos de energia preciosa antes de eventualmente ter de correr para salvar suas vidas. De acordo com a teoria da sinalização custosa, traços e comportamentos fisiológicos custosos são projetados para sinalizar algum traço subjacente e não observável (Sosis, 2003). Uma cauda extravagante pode ser um sinal confiável da qualidade genética e da saúde de um pavão. Esse sinal custoso pode atrair parceiras ou afugentar rivais e predadores. Para a gazela, saltar pode ser um sinal confiável de rapidez. Uma gazela saltitante pode se beneficiar ao sinalizar aos predadores que não vale a pena caçá-la, já que ela provavelmente escapará. O custo desses sinais é o que os torna confiáveis; apenas indivíduos saudáveis e aptos podem suportar o custo de dar saltos ou portar uma cauda extravagante.

Por mais estranho que pareça, tais ideias foram aplicadas à religião. Anteriormente, discutimos a dificuldade de alcançar a cooperação dentro dos grupos. Os indivíduos geralmente conseguem ganhar o máximo aproveitando-se dos esforços cooperativos dos outros (Sosis, 2003). A sinalização custosa talvez seja um método para resolver o problema do aproveitar-se dos outros. Os membros do grupo desejam discriminar entre aqueles que irão cooperar e aqueles que tentarão se aproveitar; indivíduos comprometidos com os valores do grupo indicam esse comprometimento a comportamentos religiosos custosos (Sosis, 2003). Os comportamentos religiosos podem custar tempo (por exemplo, tempo gasto rezando e assistindo a cultos) e recursos (por exemplo, dízimos, sacrifício de animais). O verdadeiro custo dos comportamentos religiosos pode ser o mesmo para quem está comprometido com os valores do grupo e quem não está. No entanto, quem está comprometido com os valores religiosos percebe menos custos e maiores benefícios do que quem não está comprometido porque acredita em ideias religiosas sobre recompensas sobrenaturais (por exemplo, o Céu) por comportamentos religiosos e castigos (por exemplo, o Inferno) por quebrar regras religiosas (Bulbulia, 2004, Sosis, 2003). Portanto, os indivíduos não comprometidos com os valores do grupo são menos propensos a participar de comportamentos religiosos custosos e, portanto, podem ser identificados e evitados. A teoria da sinalização custosa propõe que a tendência a exibir sinais custosos é uma adaptação evoluída; os sinalizadores custosos ganham a confiança e aceitação dos membros do grupo e, portanto, se beneficiam do pertencimento ao grupo (Bulbulia, 2004; Irons, 2001; Wilson, 2002). Além disso, por promover a cooperação dentro dos grupos, a sinalização custosa pode ser adaptativa em nível de grupo.

Sinais difíceis de falsificar e CREDs

Alguns pesquisadores argumentam que os sinais de comprometimento não precisam ser custosos. As emoções provocadas por situações religiosas podem sinalizar o compromisso do grupo de forma confiável porque são difíceis de falsificar (Bulbulia, 2008; Schloss, 2008). O comportamento emocional religioso inclui falar línguas desconhecidas, chorar, rir, cantar, desmaiar, tremer, entrar em transe e sangrar espontaneamente (Schloss, 2008). Um indivíduo que expressa uma emoção religiosa difícil de fingir provavelmente está comprometido com sua religião.

Outra teoria de sinalização é a de mostras de aumento de credibilidade, ou CREDs na sigla em inglês (Henrich, 2009). Essa teoria propõe que o ser humano tem um mecanismo cognitivo evoluído para avaliar o grau de comprometimento alheio com os valores, crenças e ideologias com as quais está comprometido. Falar é fácil, então os aprendizes culturais procuram mostras que aumentem a credibilidade – sinais confiáveis de sinceridade e compromisso. Os comportamentos religiosos de um modelo, que podem ou não ser custosos, são mostras que aumentam a credibilidade das reivindicações do modelo de compromisso com os valores e as crenças compartilhados do grupo religioso.

Evidência em favor dos sinais

Em uma análise das comunidades americanas do século XIX, Sosis (2000) descobriu que as comunidades religiosas duravam mais do que as seculares. Supondo que a longevidade de uma comunidade seja um índice de cooperação confiável, isso sugere que as crenças religiosas promovem a cooperação intragrupo. Em média, as comunidades religiosas impunham mais de duas vezes mais exigências custosas aos seus membros do que as comunidades seculares (Sosis & Bressler, 2003). Além disso, entre as comunidades religiosas, havia uma correlação positiva entre o número de obrigações custosas e a longevidade da comunidade. Estudos experimentais também encontraram uma relação entre a sinalização custosa e a cooperação dentro do grupo. Em um desses estudos, membros de kibutzim israelenses jogaram um jogo econômico com outros membros do seu kibutz (Sosis & Ruffle, 2003, 2004). Quando vários fatores eram controlados, como o grau em que os participantes previam que seus parceiros de jogo cooperariam, os homens que frequentavam a sinagoga diariamente (ou seja, sinalizadores custosos) eram mais cooperativos do que os outros participantes.

Estudo semelhante foi realizado por Orbell, Goldman, Mulford e Dawes (1992), que compararam a cooperação entre moradores de Logan, Utah, com a cooperação entre os residentes de Eugene-Springfield, Oregon. O comparecimento à igreja foi positivamente correlacionado com a cooperação, mas apenas para os mórmons em Logan, onde mais de 75% da população são membros da Igreja dos Santos dos Últimos Dias. Esses dados sugerem que o comparecimento à igreja aumenta a cooperação entre os membros do grupo, mas talvez não a cooperação em geral (ou seja, paroquialmente, mas não universalmente).

Finalmente, estudantes de graduação cristãos classificaram os indivíduos religiosos sinalizadores custosos como mais confiáveis do que os seus homólogos não-sinalizadores, mesmo quando os sinais custosos eram realizados por pessoas de religião diferente (Hall, Cohen, Meyer, Varley e Brewer, 2015). Se fizermos o suposição razoável de que a confiança facilita a cooperação (Acedo-Carmona & Gomila, 2014), esses resultados são consistentes com a hipótese de que a sinalização custosa favorece a cooperação.

Evidências e conclusões

É importante notar que os traços que foram adaptativos no passado nem sempre são adaptativos hoje. As crenças e comportamentos religiosos podem ter sido adaptativos para os nossos antepassados muito tempo atrás, sem necessariamente proporcionar valor adaptativo agora. Mesmo que a religião seja ou tenha sido adaptativa, ela não surgiu ou evoluiu necessariamente devido à sua natureza funcional (Gould & Lewontin, 1979). A religião mais provavelmente surgiu como um subproduto de adaptações cognitivas evoluídas para navegar em um ambiente repleto de agentes. Ainda assim, pensamos que as crenças e comportamentos religiosos podem aumentar a cooperação intragrupo hoje. No entanto, existem igualmente caminhos seculares para a cooperação. Alguns dos países mais cooperativos, confiantes e pacíficos do mundo também são os menos religiosos (Norenzayan, 2013; Zuckerman, 2008). Menos de um terço dos dinamarqueses e suecos acreditam em Deus (Gervais, 2013a), porém a Dinamarca e a Suécia têm as taxas mais baixas de crimes violentos e corrupção no mundo e possuem economias fortes e sistemas educacionais de alta qualidade (Zuckerman, 2008). Talvez essas nações tenham desenvolvido a cooperação intragrupo em parte devido a instituições seculares altamente confiáveis, como a força policial e os tribunais (Norenzayan, 2013). Consistentemente, os princípios seculares de aplicação da lei aparentemente aumentam o comportamento pró-social a um ponto similar ao dos princípios  religiosos (Shariff & Norenzayan, 2007).

Discutimos como as crenças e comportamentos religiosos podem promover a cooperação intragrupal. O outro lado da moeda é que a religiosidade pode promover o conflito intergrupal. Uma forte identidade religiosa pode ser associada ao racismo (Hall, Matz e Wood, 2010); a frequência ao culto religioso está relacionada ao apoio a atentados de martírio religioso (por exemplo, bombardeio suicida) e hostilidade em relação a membros fora do grupo (Ginges, Hansen e Norenzayan, 2009); e maior imersão religiosa faz prever preconceito, discriminação e violência entre grupos (Neuberg et al., 2014).

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Cultura

Os seres humanos não são apenas seres biológicos. Nós herdamos dualmente uma dotação biológica (moldada pela evolução biológica) e uma dotação cultural (moldada pela evolução cultural, Richerson & Boyd, 2005). Embora haja evidências de algumas características da cultura em alguns animais não humanos (Whiten et al., 1999), as culturas humanas são excepcionalmente ricas e diversas. Os mecanismos de aprendizagem cultural aparentemente evoluíram para permitir que os seres humanos obtivessem ideias, crenças, valores, preferências e práticas de outros seres humanos (Henrich, 2009; Mesoudi, 2016). Essa aprendizagem cultural é particularmente adaptativa quando permite que as pessoas obtenham conhecimentos ou habilidades que são incapazes de obter por conta própria (Mesoudi, 2016). O aprendizado cultural permite que as melhorias aprendidas passem às gerações futuras, resultando na melhoria substancial em ferramentas e informações ao longo das gerações (Richerson & Boyd, 2005).

A aprendizagem cultural é parcialmente responsável pela existência de crenças religiosas. Um estudo de mais de 50 culturas espalhadas por todo o mundo (Gervais & Najle, 2015) descobriu que criar alguém para ser religioso teve um grande impacto na probabilidade de esse alguém acreditar em um deus (ou deuses). Para além do efeito da educação religiosa, a probabilidade de alguém acreditar em deuses foi fortemente influenciada pela frequência de comparecimento ao culto de outras pessoas na sociedade. O aprendizado cultural também é amplamente responsável pelas particularidades das crenças religiosas (por exemplo, em que agentes sobrenaturais as pessoas de um grupo cultural específico acreditam) e práticas (por exemplo, que rituais eles executam). Na verdade, por causa do aprendizado cultural, parece que as crenças e práticas religiosas podem sobreviver às características ecológicas originais que as originaram. Por exemplo, muitos judeus ultraortodoxos, cujos ancestrais lidaram com longos e frios invernos na Europa Oriental, usam espessos chapéus de pele hoje no deserto quente de Jerusalém (Sosis, 2006). A evolução cultural lida com a mudança das culturas ao longo do tempo. Como em qualquer processo evolutivo, algumas crenças e práticas culturais se espalham enquanto outras desaparecem. Um processo pelo qual isso pode acontecer é a competição intergrupal. Quando os grupos competem por recursos, grupos mais competitivos substituem grupos menos competitivos. Os membros do grupo derrotado podem ser mortos, mas também podem se dispersar ou ser assimilados ao grupo vencedor. Crenças e práticas também podem se espalhar através da emulação de membros de grupos de sucesso (Henrich & Gil-White, 2001; Richerson & Boyd, 2005). Propôs-se que as crenças e práticas que promovem a cooperação intragrupo, como o medo do castigo sobrenatural e a sinalização de comprometimento, se espalharam e multiplicaram através desses mecanismos (Henrich, 2004; Richerson & Boyd, 2005). Crenças e comportamentos também podem se propagar porque o grupo que os sustenta aumenta em número. Dois métodos pelos quais um grupo religioso pode crescer são a produção e a doutrinação de crianças e o proselitismo. Apesar de compartilhar uma origem religiosa comum, os judeus, membros de uma religião que não faz proselitismo, representam cerca de 0,2% da população mundial, ao passo que os cristãos e muçulmanos, membros de religiões proselitistas, representam 31% e 23% da população, respectivamente (Pew Research Center, 2015).

 Conclusões e direções futuras

Anteriormente, descrevemos a religião como resultado da interação da cultura e da biologia. Com o risco de simplificar demais, pode-se pensar que a biologia constitui a estrutura básica da religião e que a cultura preenche os detalhes. As crenças e comportamentos religiosos variam de uma cultura para outra, mas essa variação é limitada pela biologia. Por exemplo, indivíduos de diferentes tradições religiosas compartilham uma crença em agentes sobrenaturais, e essa crença provavelmente é um subproduto de sistemas mentais biológicos para navegar de forma adaptativa em um mundo social. As características específicas dos agentes sobrenaturais variam, contudo, de uma tradição religiosa para outra, e os indivíduos aprendem sobre essas características a partir de sua cultura. Além das particularidades da religião, o aprendizado cultural afeta o grau e até a probabilidade de religiosidade. Não só a religião é um produto da biologia e da cultura, mas a biologia e a cultura são, por sua vez, produtos da religião. As tradições religiosas podem afetar a biologia, por exemplo, promovendo um estilo de vida de alta fertilidade (McQuillan, 2004; Weeden, Cohen, & Kenrick, 2008; Westoff & Jones, 1979; Zhang, 2008) ou, em vez disso, um estilo de vida de baixa fertilidade (Coşgel, 2000; Hoodfar & Assadpour, 2000; Skirbekk et al., 2015). A relação entre religião e saúde fornece outro exemplo: embora não possamos ter certeza de uma relação de causa e efeito, as pessoas que estão em alto nível de envolvimento religioso vivem mais do que as pessoas com baixo envolvimento religioso (McCullough, Hoyt, Larson, Koenig & Thoresen, 2000).

O individualismo protestante nos Estados Unidos fornece um exemplo de influência religiosa sobre a cultura. O cristianismo protestante vê cada indivíduo como tendo uma relação direta com Deus. Assim, a religião é mais individualista para os protestantes do que para os católicos e os judeus, e tem sido levantada a hipótese de que o individualismo protestante é pelo menos parcialmente responsável pela natureza individualista da cultura americana (Cohen & Hill, 2007). As práticas de uso do véu na Turquia fornecem outro exemplo de uma influência religiosa sobre a cultura. Nas últimas décadas, tem-se tornado cada vez mais popular as mulheres turcas cobrirem seus cabelos e a maior parte dos seus corpos de um modo que é incentivado por certas tradições dentro do Islã. Essa tendência crescente resultou em uma indústria da moda do véu (Sandikci & Ger, 2010). Se a religião é tão fortemente um subproduto de módulos psicológicos universais, e a religião pode ajudar a promover a cooperação, por que algumas sociedades e pessoas são mais religiosas do que outras? E por que a religião assume tantas formas diferentes? A capacidade de comportamentos diferentes, incluindo repertórios religiosos de comportamentos, poderia estar toda em nossos genes, e provocada facultativamente por diferentes ambientes (Cosmides & Tooby, 1992; Kenrick et al., 2002). Portanto, as religiões podem depender, em certa medida, de pressões de seleção no meio ambiente. Por exemplo, em lugares com muita doença, as religiões podem estar preocupadas com a pureza e o contágio, com o que você come e com quem você tem permissão para fazer sexo (K. Johnson, Li, & Cohen, 2015; K. Johnson, White, Boyd, & Cohen, 2011). Todas essas restrições religiosas podem ajudar a conter a propagação da doença. Em ambientes com recursos imprevisíveis ou inconsistentes, as culturas podem fazer evoluir concepções mais duras e punitivas dos deuses, pois tais deuses puniriam as pessoas por tomarem mais do que sua parcela justa de recursos (Snarey, 1996). Embora por certo nem todas as complexidades da religião possam ser explicadas por características da ecologia, o efeito de variáveis ecológicas sobre características religiosas é uma área promissora para futuras pesquisas e que tem recebido muito pouca atenção até o momento. O estudo da religião também seria beneficiado por testes mais empíricos das teorias descritas neste capítulo.

Discutimos como as crenças religiosas podem ser subprodutos de mecanismos psicológicos evoluídos para detectar e compreender animais e pessoas, como a sinalização do comprometimento religioso e o medo do castigo sobrenatural podem ser funcionais e como esses processos são posteriormente moldados por fatores culturais. Cultura e biologia interagem para produzir o fenômeno multifacetado que entendemos como religião.

Ética e moral são a mesma coisa?

Nesta semana, respondo à pergunta de um assíduo leitor desta coluna. Edilson Zafira de Sousa, de São Paulo, questiona:

Qual é a etimologia de ética e de moral? São sinônimas?

“A ética está ligada à filosofia. A moral está ligada à religião.” Está correta essa definição?

Embora no linguajar corrente ambos os termos sejam utilizados como sinônimos – e a razão disso explico mais abaixo –, eles têm diferentes significados. “Moral” deriva do latim mores, “usos, costumes”, e corresponde ao conjunto das práticas toleradas e mesmo recomendadas por uma sociedade a seus membros – os chamados “bons costumes”. Portanto, moral é algo aceito como normal pela coletividade, seja um povo inteiro ou uma comunidade restrita (as Forças Armadas, a Igreja Católica, um determinado colégio).

A moral é fruto de uma convenção social e, por isso mesmo, muda com o passar do tempo e de uma sociedade para outra. Muitas práticas comuns hoje em dia, como usar biquíni na praia, já foram noutros tempos consideradas imorais. O topless ainda é visto como atentado ao pudor pela maioria dos brasileiros, mas em lugares como Ibiza (Espanha) e Saint-Tropez (França) é prática normal e corrente.

Como se pode ver, a moral é relativa e está intimamente ligada à cultura, embora, para os membros da comunidade que a adotam, tenha valor de verdade indiscutível.

A ética, por outro lado, é a especulação filosófica a respeito da moral e dos costumes. Derivada do grego éthos, “modo, jeito de ser, costume”, a ética busca valores universais, como o bem comum. Para Sócrates, o segredo do bem viver é viver com sabedoria, algo que só se atinge pelo autoconhecimento. Já Aristóteles, em sua Ética a Nicômano, afirma que somos o produto de nossas escolhas. Cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, mas, se todos fizerem isso, a convivência social se torna impossível. Portanto, a reflexão filosófica visa responder à pergunta: o que posso ou não posso, devo ou não devo fazer se quiser viver em paz comigo mesmo e com os outros? A resposta parece ser a chamada Regra de Prata: “não faça aos outros o que não quer que os outros lhe façam”. E que pode ser complementada pela Regra de Ouro, ensinada por Jesus: “faça aos outros o que quer que os outros lhe façam”. Ou, simplesmente, “amai-vos uns aos outros”. Sendo uma reflexão filosófica, guiada pois pela razão, a ética pode até mesmo confrontar regras morais vigentes por considerá-las ultrapassadas ou injustas. A ética reflete sobre o bem comum, o bem da coletividade, ao passo que a moral disciplina o comportamento individual.

Mas, se, na teoria, ética e moral são coisas diferentes (a ética seria o estudo filosófico da moral), na prática elas se confundem, pois é comum usarmos o nome de uma ciência para designar o próprio objeto dessa ciência. É assim que “economia” é tanto o conjunto dos bens e recursos de uma sociedade quanto a ciência que estuda a circulação desses bens e recursos; “história” é tanto o conjunto dos fatos passados de uma sociedade quanto a disciplina que estuda esses fatos.

Portanto, é possível falar em moral católica ou em ética empresarial como códigos de conduta a ser seguidos. Na verdade, a sociedade ocidental, que por séculos viveu dominada pela ideologia religiosa, ainda atrela, mesmo que inconscientemente, a moral secular aos preceitos do Cristianismo, por sua vez herdados do Judaísmo. É nesse sentido que muitos setores da nossa sociedade veem como imoralidade a nudez em público ou o homossexualismo.

É preciso lembrar, no entanto, que nem tudo que é ético é estritamente moral, assim como nem tudo o que é legal é moral ou ético. Furar fila não é ilegal, mas não é moral, pois contraria os ensinamentos que todos deveríamos trazer do berço, nem tampouco é ético, já que ninguém gosta de ter seu direito violado. Mentir é geralmente visto como atitude reprovável, logo imoral, mas, e se mentimos para salvar uma vida? Não seria algo perfeitamente ético e mesmo louvável?

Portanto, ética e moral não têm necessariamente a ver com fé religiosa, embora na maioria das sociedades ainda seja a religião a principal referência do bom comportamento. Sobretudo a ética busca o justo, o que garanta a harmonia social.

Nesses nossos tempos em que a ética parece andar tão distante da política, em que basta que um gesto não seja ilegal para que seja considerado moral, recordar o significado dessas duas palavras pode ser de algum proveito.

Quão humano é ser desumano?

 “A humanidade é desumana”
Renato Russo

Lá pelos idos de 2008, após uma visita a várias penitenciárias brasileiras, o então relator da Comissão Parlamentar de Inquérito do sistema carcerário, deputado federal Domingo Dutra, afirmou que “grande parte dos presídios visitados não serve nem para bichos”. Essa frase, cunhada para produzir indignação na opinião pública pelas condições subumanas em que se encontravam (e ainda se encontram) os presos no Brasil, causou, na época, algumas manifestações de indignação em sentido inverso e revela muito da ideologia subjacente à língua. Afinal, o que se subentende é que criminosos, inclusive os frios, violentos e irrecuperáveis, merecem um tratamento mais digno do que animais inocentes e indefesos apenas por serem… humanos.

Volta e meia, ouve-se algum comentário de que os pacientes do sistema público de saúde brasileiro são tratados como bichos, ou de que o filho rebelde trata a mãe feito um bicho. No entanto, a expressão “tratado como bicho”, usada para indicar desrespeito à dignidade humana, não é exclusividade do português, já que existe em muitas outras línguas.

Na verdade, ao usar a metáfora animal para criticar os presídios brasileiros, o deputado valeu-se de uma retórica que remete à ética judaico-cristã, segundo a qual o homem é a imagem e semelhança de Deus e, portanto, a vida humana – inclusive a dos mais abjetos criminosos – é sagrada; já a dos animais não é, tanto que os judeus tinham o hábito de sacrificá-los em honra ao sanguinário deus Javé. Alguns desses sacrifícios eram bem cruéis (deixava-se sangrar um carneiro até que morresse de hemorragia; outras vezes, imolava-se o animal vivo), e tudo isso era feito com os mais elevados sentimentos “humanos”.

Pela mesma razão, a Igreja Católica se opõe veementemente ao aborto e à eutanásia entre humanos, mas nada diz das milhares de clínicas veterinárias que, todos os dias, “sacrificam” (percebam a conotação religiosa desse termo) cães e gatos sem nenhum drama de consciência, nem dos médicos nem dos donos, provavelmente porque “animal não tem alma”, logo não vai para o Paraíso nem para o inferno. (Por que será que “Paraíso” se escreve com maiúscula e “inferno” não?)

A ética, predominante em nossa cultura, que norteia a expressão “tratar como bicho” não tem por critério de julgamento categorias como puro x impuro, inocente x criminoso, útil x nocivo, etc. Seu critério é humano x não humano. Por essa ética, o mais sórdido e canalha dos seres humanos ainda é melhor do que o mais puro e indefeso dos animais só porque é humano. Trata-se de uma ética especista enraizada na língua. (Especismo é a discriminação que o ser humano pratica contra as demais espécies biológicas. Portanto, algo não menos abominável do que o racismo, com a diferença de que este, por se dar contra humanos, causa mais revolta – pelo menos hoje em dia, quando a Igreja já reconheceu que negros e índios são humanos e, por conseguinte, têm alma, coisa que eles não tinham no tempo da escravidão.)

Mas o que significa, afinal, o termo “humano”? Como designação de uma espécie biológica – o ser humano, ou Homo sapiens –, “humano” opõe-se a “inumano” (isto é, animal, vegetal, mineral, extraterrestre, ou o que mais se possa imaginar). Já oposto a “desumano”, “humano” refere-se a certos atributos de bondade, generosidade e piedade que, supostamente, só nós humanos possuímos. (A crença de que só nós temos essas qualidades de caráter é bem questionável: animais também se expõem ao perigo para salvar seus filhotes ou mesmo seu dono, humano. Podem dizer que isso é instinto; mas, nesse caso, o altruísmo humano também o seria.) A língua inglesa faz uma interessante distinção entre human e humane, em que o primeiro termo tem sentido biológico e o segundo, moral.

Todo conceito linguístico implica seu oposto. No livro Semântica estrutural, o linguista e semioticista lituano Algirdas J. Greimas demonstrou que qualquer significado se organiza numa rede semântica que estabelece ligações com seus contrários e contraditórios – mesmo quando nem todos esses termos lógicos encontrem expressão linguística em determinada língua. Portanto, “bondade” implica “maldade” e também “não bondade” e “não maldade” (é possível não ser nem bom nem mau: é o chamado termo neutro da semiótica greimasiana). Se nos vangloriamos de ter a virtude da bondade, é porque está implícito em nós o vício da maldade. Os animais não são nem bons nem maus: são naturais.

A palavra “desumano” como sinônimo de “cruel” remete ao seu antônimo “humano” como sinônimo de “generoso, piedoso, solidário”. Está implícita aí a associação do atributo de humanidade ao de bondade. No entanto, o homem é o único ser na face da Terra capaz de ser desumano. A crueldade é um atributo típica e exclusivamente humano (os animais podem ser ferozes, jamais cruéis), afinal o homem é o único ser que tortura e mata por prazer. Enquanto nos outros animais a violência é um instinto de sobrevivência e, portanto, desprovida de maldade, em animais autodenominados “racionais” como nós, que podemos refletir sobre os nossos atos e garantir a nossa sobrevivência por outros meios, a brutalidade deliberada é movida por um desejo sádico de prazer. Por isso, nos regalamos com o sofrimento de nossos inimigos (aliás, só o homem tem inimigos – os animais têm predadores).

A natureza selvagem nos parece bruta, cruel, por isso mesmo imperfeita, como se Deus tivesse criado o mundo de maneira displicente e deixado a nós, humanos, a tarefa de concluir o trabalho, criando uma segunda natureza, chamada civilização, em que as “falhas” deixadas pelo Criador seriam corrigidas por nossa racionalidade e senso ético. A caçada, com toda a sua sanguinolência, seria substituída por uma prática bem mais racional e piedosa: a pecuária. Entretanto, a maneira como o gado ou as aves são tratados em criadouros para o abate (isto é, tratados “como bichos”) é bem pior – e mais desleal – do que o modo como um leão caça um antílope.

Em resumo, na natureza não há bem nem mal: os juízos morais são invenção humana. É por isso que reconhecemos em nós mesmos – e apenas em nós mesmos – os atributos da bondade e da maldade. Porém, somos presunçosos o suficiente para estabelecer – inclusive linguisticamente – que em nós a bondade é natural e a maldade, um desvio. Não obstante, todos nós praticamos ou aceitamos que se pratiquem crueldades contra a natureza (como a derrubada de árvores, as queimadas nas florestas, o abate, a caça predatória, o uso de animais em experiências científicas e até mesmo a poluição ambiental para a qual todos nós contribuímos, consciente ou inconscientemente) ou contra nossos semelhantes e, mesmo assim, continuamos dormindo com a consciência tranquila. Essa visão antropocêntrica da realidade, eivada de juízos de valor altamente tendenciosos, não poderia deixar de se refletir na língua que falamos e, portanto, nas expressões que utilizamos. E aí caímos num círculo vicioso: a ideologia especista enseja expressões linguísticas que, usadas inconscientemente no dia a dia, reforçam e reafirmam essa ideologia. É por isso que o relator da CPI dos presídios conseguiu provocar indignação com sua frase – embora, em alguns casos, por motivo oposto ao pretendido.

Uma última reflexão: um grande amigo meu costuma dizer que a educação serve para ensinar o que é certo, pois o errado se aprende sozinho. Nada mais verdadeiro, nada mais “humano”.