Entrevista com Sérgio Cabral

Depois de ser posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro último, o ex-governador do Rio de Janeiro e ex-presidiário Sérgio Cabral decidiu dar sua primeira entrevista como cidadão livre e ficha-limpa (todos são inocentes até que se prove a sua culpa, após trânsito em julgado na última das infinitas instâncias do Poder Judiciário).

O repórter da televisão designado para entrevistar o ilustre político e mão-leve começa a entrevista perguntando:

— Senhor governador, como o senhor se sente depois de ter passado seis anos preso, condenado a mais de 400 anos de prisão, e agora em liberdade?

— Olha, rapaz, quando eu decidi partir pra corrupção, avaliei que era um bom negócio, no Brasil tudo é movido a propina, os mecanismos de fiscalização são falhos, superfaturar uma obra é muito fácil e ninguém percebe, e, mesmo quando há denúncias, a gente sempre diz que é intriga da oposição. No final, as investigações levam anos e não dão em nada; esses crimes nunca são julgados mesmo, né? E ainda tem o foro privilegiado. Além disso, a vida de nababo que eu e meus companheiros levávamos compensava plenamente o risco.

Só que, quando eu fui preso na Operação Lava-Jato, obrigado a confessar os meus crimes e a devolver parte do dinheiro desviado e, ainda por cima, fui condenado a centenas de anos de prisão, confesso que bateu um arrependimento: ir pra cadeia depois de ser um político de prestígio, que sonhava até ser presidente da república, foi duro.

Mas fiquei preso só seis anos, tive regalias na cadeia, como TV com DVD e caviar no jantar, e ainda pude curtir a companhia de alguns parças, como o meu brother Pezão, por exemplo. Ou seja, esses seis anos passaram depressa. Logo em seguida, fui pra prisão domiciliar, que de domiciliar só tem o nome, pois eu podia sair na rua à hora que quisesse, só não podia sair do país sem autorização judicial. E domicílio de rico é outra coisa, né?

Então, diante disso, eu comecei a reavaliar a situação e a achar que tinha valido a pena tudo que eu fiz. Afinal, ainda tenho muito tempo pela frente pra curtir a grana que eu desviei e que não tive que devolver aos cofres públicos. Até eu ser julgado e condenado na última instância, esses processos todos já terão caducado — ou eu estarei velho demais pra ir pra cadeia. Quem sabe role até um indulto presidencial ou uma graça, né?

— Mas, governador — interpela o repórter —, o senhor não acha um escárnio com o povo brasileiro o senhor estar por aí livre, leve e solto, gastando o dinheiro roubado dos contribuintes, mesmo tendo sido condenado a quatro séculos de prisão?

— Olha, garoto, em primeiro lugar, “dinheiro roubado” não, “desviado”, ok? Em segundo lugar, se tem alguém escarnecendo do povo, não sou eu, é o Poder Judiciário, eu só estou cumprindo ordens judiciais. Ou seja, eu estou rigorosamente dentro da lei. O problema não sou eu, é a lei. Só que eu, sinceramente, não tenho do que me queixar dessa lei, pra mim ela é muito boa. Aliás, pra você ver como são as coisas, o juiz que me condenou e mandou me prender está sendo investigado e pode até ser punido com a aposentadoria compulsória, isto é, ficar pelo resto da vida recebendo salário sem trabalhar — se bem que uma punição assim até eu queria, né?

— O senhor quer deixar uma última mensagem para os nossos telespectadores?

— Olha só, na minha concepção, o Brasil não é, como dizem, o país da corrupção, pois corrupção tem no mundo inteiro; no Oriente Médio, por exemplo, a coisa é bem pior do que aqui. O Brasil é, sim, o país da impunidade, e é a impunidade que alimenta a corrupção. Eu não teria feito tudo o que fiz se não tivesse a certeza de que, no final, ia me dar bem, como de fato me dei. As nossas leis são feitas pra não punir ninguém — a não ser, claro, os três P’s: preto, pobre e puta. Afinal, grande parte daqueles que fazem as leis, nossos ilustres legisladores, também têm problemas com a Justiça — e não sem razão! Então eles fazem leis pra si próprios, pensando que um dia também poderão ser beneficiados por elas. Minha mensagem é: meus amigos, no Brasil, o crime compensa! Muito obrigado pela oportunidade e um abraço a todos os telespectadores.

Os poderes da República

Nos últimos tempos, os três Poderes da República não têm saído dos noticiários. E, como todos sabemos, esses poderes são: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A Constituição de 1988 separou uma quarta instituição, o Ministério Público, desses poderes, dando-lhe autonomia. Embora do ponto de vista jurídico não seja propriamente um dos poderes, o Ministério Público pode, de alguma forma, ser considerado uma espécie de quarto poder. E nos tempos do Império havia ainda o Poder Moderador, exercido pelo imperador, que dava a este, dentre outras, a prerrogativa de dissolver o parlamento e convocar novas eleições, o que o tornava quase um monarca absoluto.

Mas de onde vêm as palavras legislativo, executivo e judiciário?

Legislativo deriva de legislar, palavra formada a partir de legislador por derivação regressiva (derivação regressiva é aquela em que, em vez de acrescentar, subtraem-se afixos). Já legislador e legislação provêm, respectivamente, do latim legislator e legislatio, sendo que legis é o genitivo de lex, “lei”, ao passo que lator, “aquele que leva”, e latio, “ato de levar”, decorrem do particípio latus do verbo ferre, “levar, transportar” e, por conseguinte, “propor”. (Sim, o particípio de ferre é latus, por incrível que pareça!) Portanto, legislar significa “propor uma lei”, logo o Poder Legislativo é a instituição responsável pela elaboração das leis.

executivo vem de executar, formado a partir do particípio latino executus ou exsecutus do verbo exsequi, “seguir até o fim, levar a cabo, executar”. Esse verbo subsiste em português no adjetivo exequível, “que pode ser executado, factível”. O Poder Executivo é então aquele que executa as leis e também projetos, políticas e demais ações de gestão de um governo.

Finalmente, judiciário radica no latim judiciarius, derivado de judex, “juiz”, por sua vez formado de jus, “direito, justiça”, e do verbo dicare, “indicar, mostrar”, relacionado com dicere, “dizer”. Ou seja, o juiz é aquele que diz ou mostra o que é justo, aquele que arbitra um conflito, buscando uma solução satisfatória a ambas as partes.

Sobre o extinto Poder Moderador, podemos dizer que moderar é diminuir, restringir, tornar menos intenso (por exemplo, moderar na bebida, moderar os gastos, etc.). Nesse sentido, o poder dado ao imperador do Brasil era o de moderar, isto é, de restringir os três demais poderes (na prática, de interferir nas decisões deles). E moderar, do latim moderari, provém de modo (latim modus), que quer dizer originalmente “medida”. Logo, moderar é manter dentro da medida, do aceitável, do razoável. É por essa razão, aliás, que a mãe costuma dizer ao filho desobediente “menino, tenha modos!”, isto é, “contenha-se!”.

As metáforas da crise política

Desde que a crise política entre os Poderes do Estado se instalou, ou melhor, foi artificialmente criada em nosso país, tem pululado na imprensa e entre os agentes políticos uma série de metáforas para descrever a situação. Desde que Bolsonaro começou a ensaiar o golpe que nunca dará, passamos a ouvir expressões como “jogar fora das quatro linhas da Constituição”, “esticar a corda”, “avançar o sinal”, “cruzar o Rubicão”, “enquadrar o STF”, “panela de pressão prestes a explodir”, “queimar as pontes entre o Executivo e o Judiciário”, “jogar para a plateia”, “fazer cortina de fumaça” e algumas outras.

“Jogar fora das quatro linhas da Constituição” faz referência a uma partida de futebol, em que só são válidas as jogadas que ocorrem dentro de campo; portanto, fora das quatro linhas, temos o desrespeito à Constituição e, consequentemente, o arbítrio.

Também do futebol vem a expressão “jogar para a plateia”, em que o jogador está mais preocupado em fazer jogadas bonitas do que eficientes, logo em encantar o público e não em ganhar o jogo. Nesse sentido, ao fazer suas bravatas, o Presidente insufla sua torcida, isto é, seus apoiadores, mas não rompe de fato com o estado de direito.

Já “esticar a corda” remete ao cabo de guerra, esporte em que cada grupo de competidores puxa uma das extremidades de uma corda, vencendo aquele que conseguir derrubar o grupo adversário. Muito praticado pelos militares, e por isso mesmo relacionado ao universo de Bolsonaro, é um exercício de medição de forças. Ou seja, ele e o Supremo Tribunal Federal estariam disputando para ver que é o mais forte. Depois de suas declarações de ontem em Brasília e em São Paulo por ocasião do Sete de Setembro, o capitão Bolsonaro teria, segundo analistas, não apenas esticado, mas rompido a corda, num processo sem volta.

Também do vocabulário militar vêm as expressões “fazer cortina de fumaça” e “queimar as pontes”. A cortina de fumaça é uma fogueira que as tropas fazem para que, encobertas pela fumaça, o inimigo não possa vê-las. Assim, a própria crise entre os Poderes seria uma tática diversionista para desviar a atenção da opinião pública dos reais problemas do país: má gestão da pandemia, com quase 600 mil mortes; má gestão da crise hídrica, em grande parte causada pelo próprio descaso do governo com a destruição da Amazônia (sim, amigos, o desmatamento é o principal responsável pela falta de chuvas no Sudeste e Centro-Oeste); alta do dólar; alta dos combustíveis; alta da inflação; desemprego em massa; fome; corrupção no governo; reformas ruins e que, mesmo assim, não andam no Congresso (agora devem andar menos ainda), y otras cositas más.

Por outro lado, quando uma tropa atravessa um rio, ela queima a ponte por onde passou para que o inimigo não possa alcançá-la. Por isso, “queimar as pontes” é ao mesmo tempo romper a comunicação e destruir qualquer possibilidade de retorno. É exatamente o que faz o Presidente.

“Avançar o sinal” é evidente metáfora do trânsito, em que ultrapassar o sinal vermelho é infração gravíssima, assim como desrespeitar ou tentar destruir a ordem democrática.

“Cruzar o Rubicão” alude ao episódio da história de Roma em que, tendo conquistado a Gália, Júlio César atravessou um rio chamado Rubicão, que separava a Gália Cisalpina da Itália, marchou com seu exército sobre Roma, o que era proibido pela lei romana, e declarou guerra ao Senado. Nessa ocasião, proclamou: alea jacta est, “a sorte está lançada”. A partir de então, “cruzar o Rubicão” passou a significar “tomar uma decisão arriscada e irreversível”.

A “panela de pressão prestes a explodir” é uma óbvia analogia a situações de grande tensão emocional das quais qualquer ato explosivo pode repentinamente surgir, como a ruptura institucional, por exemplo.

Por fim, “enquadrar o STF” ou “enquadrar o ministro Alexandre de Moraes” remete a colocar a pessoa ou instituição dentro de uma moldura, como um quadro, de modo que ela não possa sair e fique confinada a esse espaço. No caso em questão, trata-se de limitar o poder de ação do(s) ministro(s) do Supremo, especialmente em ações que possam atingir Bolsonaro ou seus apoiadores.

O recurso à metáfora é uma das estratégias comunicativas mais antigas que existem. Eu arriscaria dizer que ela surgiu praticamente junto com a própria aptidão linguística do ser humano. Prova disso é que grande parte das palavras que usamos são metáforas desgastadas das quais já não nos damos mais conta. Tanto que acabei de empregar uma: desgastar uma metáfora é empregá-la com tal frequência que ela deixa de ser sentida como figura de linguagem, do mesmo modo como se desgasta uma ferramenta de tanto usá-la até que ela perca sua funcionalidade. Infelizmente, o cenário atual nos tem brindado com mais metáforas do que com saídas para a crise.

*-*-*

Agora uma consideração política: apoiar Bolsonaro neste momento é, a meu ver, trabalhar para eleger Lula no próximo ano. Se o capitão sofrer impeachment, o segundo turno da eleição de 2022 será disputado entre Lula e o candidato da terceira via, seja ele quem for. E esse candidato, seja ele quem for, terá grandes chances de derrotar Lula, dada a grande rejeição que o petista e seu partido têm no eleitorado brasileiro. Já uma disputa de segundo turno entre Lula e Bolsonaro evidentemente favorece o primeiro. Portanto, os bolsonaristas podem estar involuntariamente fazendo campanha para seu arqui-inimigo. Ou, para usar mais uma metáfora, dando um tiro no próprio pé.