Que tipo de país queremos?

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou o termo Belíndia para se referir à realidade brasileira, um misto de Bélgica e Índia, um país com leis e impostos de Primeiro Mundo e com serviços e realidade social de Terceiro. A seguir, esse conceito foi estendido para dar conta de um Brasil contraditório, cuja sociedade tem ao mesmo tempo aspectos de Primeiro e Terceiro Mundos: de um lado, uma elite rica e culta, megacidades com infraestrutura de países desenvolvidos, grande parque industrial, importantes universidades produzindo pesquisa de ponta, recordes de produção agrícola, recordes em número de helicópteros e de cirurgias plásticas per capita, produção artística tipo exportação, e, de outro, fome, miséria, analfabetismo, doenças endêmicas, latifúndios improdutivos, muita corrupção, péssimos serviços públicos, comunidades ilhadas no meio de florestas, aonde só se chega de barco, e assim por diante.

Talvez hoje o termo Belíndia já não seja mais tão adequado, visto que a Índia, embora continue a ser um país com população majoritariamente pobre, é uma das nações emergentes e a quinta maior economia global, que também já conta com ilhas de excelência em vários campos, estando, por sinal, em alguns deles mais adiantada que o Brasil. Noutros termos, a própria Índia é hoje uma Belíndia. Por isso, penso que hoje o termo mais adequado para definir o Brasil e a Índia seja Beláfrica. Afinal, o continente africano segue sendo o mais atrasado do planeta em termos políticos, econômicos, sociais e educacionais. É lá que ainda estão os problemas mais graves da humanidade em termos de fome, miséria, superpopulação, educação precária, péssimas condições de saúde e higiene, pouquíssimo desenvolvimento industrial, infraestrutura deficiente, costumes retrógrados, fanatismo religioso, ditadores tirânicos e corruptos, guerras tribais intermináveis, etc. É claro que lá também há bons exemplos de progresso material e cultural, logo nem tudo é pobreza na África. No entanto, em termos gerais de desenvolvimento, especialmente aquele medido pelo IDH — Índice de Desenvolvimento Humano —, a África permanece em último lugar na média dos continentes.

Portanto, se somos uma Beláfrica e não queremos permanecer nesse estado, temos dois caminhos a seguir: ou nos aproximamos da Europa, onde estão os países mais desenvolvidos do mundo, ou nos aproximamos da África, onde estão os mais atrasados. Deveria ser consenso que o modelo a ser seguido é o europeu, com sociedades altamente industrializadas, democracias sólidas e a maior parte da população situada na classe média ou alta e portadora de escolaridade superior. No entanto, certos grupos ideológicos parecem querer que o Brasil rume na direção oposta. Embora façam um discurso aparentemente bem-intencionado (“lacrador” eu diria), polvilhado de um bom-mocismo que soa bem a muitos (especialmente aos que fazem parte de sua “bolha”), o que eles pregam é uma divisão do país em que uma das partes precisa aniquilar a outra. Trata-se da famosa oposição “nós x eles”, que dividiu e polarizou o Brasil.

Somos uma nação plural, somatório de muitas culturas, e essa é nossa grande vantagem estratégica. Nossa diversidade cultural é nosso grande capital, que, somado ao nosso potencial natural (imenso e rico território, riquezas minerais e vegetais, clima favorável, ausência de cataclismos), pode fazer de nós uma potência mundial. No entanto, para esses grupos ideológicos, a cultura brasileira dominante é fundamentalmente branca e europeia e, portanto, exclui a maior parte da população, de origem africana e/ou indígena. Na visão desses grupos, para incluir socialmente essa maioria preta ou parda e sobretudo pobre, é preciso mudar radicalmente nossos paradigmas culturais, não propriamente somando à cultura branca europeia as valiosas contribuições dos indígenas e afrodescendentes, mas erradicando aquela cultura e substituindo-a por esta.

Tenho falado muito aqui sobre o absurdo que é a proposta de alguns linguistas de substituir nossa norma-padrão supradialetal e fundada em longa tradição escrita e literária pelos usos do português brasileiro contemporâneo falado informal, isto é, o linguajar coloquial das ruas. Segundo esses linguistas, a gramática normativa do português é elitista, excludente, opressora, elaborada por homens brancos, burgueses, conservadores, heterossexuais e misóginos, logo precisa ser destruída, num ato revolucionário análogo talvez à Revolução Bolchevique ou à Revolução Cultural chinesa. Vejam o que diz, por exemplo, o livro Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores, organizado por Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira (p. 41): “Assim, a emergência de um novo paradigma de gramatização exige a destruição em larga escala do paradigma tradicional e grandes alterações nos problemas e técnicas arraigados historicamente no nosso fazer gramatical, algo próprio do caráter revolucionário” (grifos meus).

Sem dúvida, a linguística pode contribuir e muito para o fazer gramatical, e eu mesmo tenho sempre reiterado que o modelo de análise da língua baseado na gramática grega de Dionísio o Trácio precisa ser superado. Mas a elaboração de gramáticas normativas tem sua lógica própria, que esses linguistas aparentemente desconhecem. Eles criticam aquilo que nem sequer entendem. E elaborar novas gramáticas utilizando o ferramental da linguística é uma coisa, já substituir arbitrariamente um padrão linguístico estável e estabelecido por outro que só é usado na fala descontraída sob o pretexto da inclusão social dos menos favorecidos é pura demagogia. Em vez de levar educação de qualidade aos mais pobres, opta-se por mantê-los na situação em que estão, normalizando sua pobreza material e intelectual. Aos pobres, uma educação igualmente pobre.

Sem dúvida, a norma-padrão que utilizamos baseia-se numa variedade de português calcada no falar das elites culturais da “corte” — seja a Lisboa monárquica seja o Rio de Janeiro imperial. Mas isso é assim em qualquer idioma de cultura: o francês padrão nada mais é do que a língua falada pelos reis e nobres franceses de antanho; o italiano padrão é o dialeto da antiga corte de Florença, e assim por diante. É natural que a classe dominante de uma sociedade imponha a ela seus costumes e também sua língua. Assim como é natural nas sociedades complexas (isto é, as que passaram do estágio tribal ao civilizado) que haja hierarquia, classes sociais distintas e disputas de poder entre elas. No entanto, o que se vê historicamente é que, quando uma classe oprimida depõe o grupo dominante e toma o poder, é ela que passa a ser a classe opressora. Até costumo dizer que, se os europeus tivessem se mantido tribais e os africanos tivessem desenvolvido uma civilização altamente tecnológica, teriam sido os negros a escravizar os brancos. Afinal, o homem é o lobo do homem.

Se, como pregam alguns de meus colegas linguistas que não conseguem analisar o fenômeno “língua” sem projetar nele suas ideologias políticas pessoais, a gramática normativa em vigor é opressiva e reforça o preconceito linguístico, fazendo com que a população menos favorecida sinta que fala “errado”, substituí-la por uma nova gramática, baseada em outra variedade do português (a preferência desses linguistas é pelo padrão das pessoas pouco ou nada letradas) vai apenas trocar uma opressão por outra. Pois, se a gramática é normativa, portanto seu uso é uma injunção em textos formais, qualquer que seja ela, desrespeitá-la configurará erro, que estará decerto sujeito ao preconceito linguístico (mais uma vez, “o homem é o lobo do homem”).

Sob o pretexto de que nossa cultura e nosso padrão linguístico são eminentemente brancos e europeus, o que se propõe não é acrescentar ao estudo da história das civilizações da Europa e Ásia o estudo da história da África (por sinal, eminentemente oral, uma mistura de fatos e mitos), como, aliás, já vem sendo feito, e sim substituir uma pela outra. Em vez de filosofia grega, estudaremos os orixás africanos (a pergunta que faço é: ser versado em história e cultura africanas abre as portas do mercado de trabalho mais qualificado a alguém?). Em vez de permitirmos que jovens pretos e pardos das periferias tenham acesso à cultura letrada por meio do domínio da norma supradialetal, oficializaremos “eu vi ela” e “vamos se encontrar” como padrão culto.

A lógica desses grupos, que paradoxalmente incluem pessoas de alta cultura e muito bem informadas, é a de que só se combate uma sociedade patriarcal instituindo o matriarcado, que só se apaga a chaga do racismo contra os negros discriminando os brancos, e assim por diante. Numa palavra, o que eles propõem não é justiça social, é uma mera inversão de papéis, em que opressores se tornem oprimidos e oprimidos se tornem opressores. Era mais ou menos essa a lógica dos comunistas de 1917: o proletariado governando a burguesia. O que querem fazer com a língua é uma espécie de vingança dos iletrados sobre os que tiveram a chance de estudar.

Em suma, o que está em jogo é que tipo de país queremos ser: queremos ser como a Bélgica ou como a África? É bom lembrar que até o final do século XIX o Brasil era um país escravocrata, quase exclusivamente rural, sem indústrias, com uma população quase totalmente formada de africanos e indígenas e seus descendentes e governada por uma pequena elite latifundiária composta por descendentes dos primeiros portugueses que nos colonizaram. Foi com a chegada dos imigrantes europeus e asiáticos em fins do século XIX e princípios do XX, logo após o fim da escravidão, que começou nossa industrialização, surgiram as primeiras universidades e a sociedade brasileira foi progressivamente se urbanizando. É que esses imigrantes, mesmo aqueles que foram trabalhar na lavoura em substituição aos escravos, tinham uma cultura urbana e valores milenares de civilização, além de um espírito empreendedor e grande apreço pela educação. Tanto que, duas ou três gerações após sua chegada, seus descendentes, inclusive de muitos que eram analfabetos, já estavam na universidade. E vejam que esses imigrantes sofreram quase tanto racismo quanto os negros e os índios.

Vários de nossos intelectuais de esquerda criticam esse processo de “embranquecimento” da população brasileira promovido pela República Velha como se isso tivesse sido uma violência contra nossa nacionalidade quando, na verdade, esses imigrantes só vieram somar a essa nacionalidade. Não tivesse havido essa onda imigratória, seríamos provavelmente ainda hoje um país predominantemente agrícola e rural, dominado por oligarcas latifundiários, como éramos à época do Império. Mas parece que é exatamente isso que esses ideólogos gostariam que fôssemos.

Aliás, de maneira contraditória e incoerente, esses intelectuais críticos à política de imigração são eles próprios descendentes de imigrantes e certamente não estariam aqui no Brasil nem muito menos ocupando cargos nas universidades não fosse essa política que tanto criticam.

É evidente que a República Velha falhou em dar aos negros recém-libertos condições de emancipação econômica como cidadãos, o que os fez trocar a senzala pela favela. Mas, quase um século e meio após a Abolição, o que o Estado Novo, a República Nova, o regime militar e a Nova República fizeram por essas pessoas e seus descendentes? Já tivemos muito tempo para curar essas feridas, mas tudo que foi feito foram leis e políticas demagógicas, que nada resolvem. Tudo que se faz é um discurso hipócrita de inclusão social, entoado por uma elite acadêmica branca, eurodescendente e de classe média alta.

O fato é que se instalou em nosso meio intelectual, inclusive nas universidades, que deveriam primar pela racionalidade, pelo bom senso e pelo apego à verdade, uma ideologia iconoclasta, que vê tudo que é branco, europeu, ocidental, capitalista, judaico-cristão e, mais, masculino, heterossexual e cisgênero como negativo, opressor, excludente, elitista, quando não fascista. Temos, de fato, uma longa história de dominação de brancos sobre negros e índios, de europeus sobre africanos e outros povos aborígines, mas é preciso ter em mente que o Brasil está inserido no mundo ocidental, que é culturalmente oriundo da civilização europeia e cristã. Logo, apegarmo-nos a tradições africanas e indígenas em detrimento de conhecimentos científicos e filosóficos europeus não vai nos conduzir ao progresso que almejamos. Se queremos nos integrar cada vez mais ao mundo desenvolvido e incluir cada vez mais nossa população nas classes médias e altas da sociedade, não podemos renunciar ao patrimônio de cultura que nos foi legado desde a era greco-romana nem ao padrão linguístico que produziu todo o acervo literário de que dispomos.

Que se valorizem todas as culturas que formaram nosso país, que se acabe com o pernicioso racismo que nos assola, que se ajustem as contas com nosso passado escravista, que se respeitem as culturas nativas, que se estabeleça uma verdadeira justiça social em nosso país é o que todos queremos. Mas esse desideratum só se conquista somando e não subtraindo ou dividindo.

Ainda sobre a norma-padrão e o ensino de gramática

Não sou gramático nem professor de português, tampouco faço pesquisas na área chamada Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, mas acho que os exatos 40 anos em que venho me dedicando à linguística e mais o estudo de línguas que empreendo desde a adolescência, somados ao meu posicionamento sempre ponderado diante de assuntos polêmicos, me conferem alguma autoridade para opinar sobre uma questão envolvendo nossa língua e nosso ensino que já tratei aqui algumas vezes e que volta e meia ressurge tanto no meio acadêmico quanto na sociedade: a adequação ou não de nossa atual norma-padrão, ditada pela chamada gramática normativa, e o consequente ensino dessa gramática em nossas escolas.

Quem acompanha minhas publicações, tanto aqui no blog quanto em meu canal de vídeos Planeta Língua, do YouTube, sabe que tenho críticas fundamentadas tanto ao excessivo conservadorismo da norma atual, especialmente em face das simplificações e racionalizações operadas nas gramáticas das demais línguas românicas no último século, quanto a propostas e posturas de alguns colegas linguistas que criticam essa norma de um ponto de vista muito mais ideológico do que científico, por vezes lançando mão até de inverdades e falsas acusações aos gramáticos, e propõem em seu lugar uma norma baseada na modalidade falada do português brasileiro, com total desconsideração em primeiro lugar do uso que efetivamente se faz da língua nos textos escritos formais da atualidade, em segundo lugar de toda a nossa tradição escrita, que seria subitamente rompida, e, em terceiro, de nossos laços com as demais nações de língua portuguesa. Por sinal, meu mais recente vídeo no supracitado canal trata exatamente disso.

Pois agora me chega às mãos um excelente artigo do Prof. Ricardo Cavaliere, da Universidade Federal Fluminense e da Academia Brasileira de Filologia, além de mais recente membro da Academia Brasileira de Letras, que aborda essa questão de forma magistral, tocando em todos os pontos correntemente em debate.

Como o artigo é longo e redigido em linguagem acadêmica, portanto nem sempre acessível ao leitor leigo, tomo aqui a liberdade de fazer um resumo do texto, ressaltando seus principais argumentos.

De início, o Prof. Cavaliere distingue duas competências que por vezes são confundidas: a competência linguística (saber falar a própria língua) e a competência discursiva (saber adequar seu discurso, portanto, seu vocabulário e sua gramática, às diversas situações de comunicação). Diz ele:

O indivíduo que se refere ao interlocutor com um “Você está de sacanagem!”, seja no ambiente de trabalho, numa conversa distensa ou numa cerimônia de colação de grau, revela que domina as estruturas linguísticas da língua para expressar-se em português, isto é, tem competência linguística, mas não detém competência discursiva, pois é incapaz de discernir sobre a adequação dos usos linguísticos nas distintas situações em que se constroem os atos de fala. Em outras palavras, para ele não importa a variabilidade dos fatores extralinguísticos do discurso, pois seu texto (aqui entendido no sentido estrito) está moldurado numa espécie de engessamento linguístico. É o homem de um texto só.

E prossegue:

A questão está em que o processo de aprendizagem que nos confere esta especial competência discursiva não se adstringe à aula de português. […] Não obstante, creio que se tivesse que eleger, por algum motivo, um único profissional dentro da sociedade contemporânea para cuidar dessa delicada questão da língua em uso e das variáveis do uso, decerto que elegeria o professor de língua materna. Assim, percebe-se uma definitiva mudança no perfil desse profissional no seio da sociedade contemporânea: antes, julgavam-no responsável pelo aprimoramento da competência linguística; hoje, julgamo-lo responsável pelo aprimoramento da competência discursiva.

O autor assinala que a controvérsia sobre o ensino de língua surgiu por culpa de um entendimento maniqueísta da questão, que situa o ensino da gramática normativa “como um atentado à liberdade de expressão, não raro qualificado como uma institucionalização do preconceito linguístico na escola”.

De fato, a partir da década de 1970, muitos intelectuais brasileiros estimularam um confronto entre a norma gramatical e a liberdade de expressão, acusando a primeira de representar um instrumento de censura e exclusão social. Convém lembrar que estávamos então sob a ditadura militar, o que muito contribuiu para uma radicalização de posições em que, do mesmo modo como se combatia a opressão e o arbítrio do regime, atacava-se o cânone gramatical ao ponto de se confundir incorreção gramatical com democracia linguística. Era como se respeitar a gramática fosse sinônimo de compactuar com a ditadura!

Por outro lado, uma certa visão deturpada do papel da linguística, que, como ciência, não faz juízos de valor de certo e errado, mas analisa os fatos como eles são, levou, de um lado, certos linguistas a legitimar o chamado “erro de português”, estigmatizando os gramáticos e filólogos, e, de outro, induziu estes últimos a deplorar a linguística como uma disciplina permissiva, uma verdadeira ameaça ao nosso vernáculo. Infelizmente, essa visão permanece em muitas mentes até os dias de hoje.

É nesse contexto de radicalização política e entendimento equivocado dos papéis da linguística e da gramática que surge a bandeira do chamado “vale-tudo linguístico”. Como diz Cavaliere:

Na ilusória empreitada de desagrilhoar a palavra política, muitos defenderam a nivelação do discurso escrito com o oral, rezando pela cartilha-chavão do vox populi vox dei e do “é proibido proibir”, esquecidos de que o aprimoramento do discurso escrito transcende as fronteiras da opinião política, podendo até ser simplesmente um mero exercício do prazer de escrever bem. E o que  se percebe é que tais juízos tiveram origem em cérebros absolutamente laicos em assuntos linguísticos, vindo a encontrar conveniente amparo em outros totalmente carentes de saber gramatical. (grifo meu)

Ele complementa: “Admitir que a norma oral deva servir de parâmetro para uma norma escrita é negar uma diferença de comportamento que não está propriamente nem no discurso nem na língua, mas no próprio homem social”. E ainda: “no seio da sociedade brasileira permeiam duas modalidades bem distintas de uso linguístico: a oral e a escrita. Também sabemos que a norma oral é em muitos pontos colidente com a escrita, a ponto de uma tornar-se intolerável quando invade o espaço da outra”. Como diria Evanildo Bechara, não se vai à praia de fraque nem de chinelos ao Municipal.

Alguns gramáticos mais puristas costumam dizer que “eu vi ela” e “vamos se encontrar” sequer é português, como se só a norma-padrão representasse o idioma. Numa crítica a esses gramáticos, alguns linguistas, como Mário Perini, afirmam que há duas línguas distintas: a que se escreve, chamada português, e a que se fala, que nem nome tem. A esse respeito, diz Cavaliere: “A rigor, não existe uma língua que se escreve e outra que se fala, mas uma língua em que há estruturas que se usam somente quando se escreve e outras que se usam apenas quando se fala. […] Em outros termos, tanto ‘eu o vi ontem’ quanto ‘eu vi ele ontem’ são produtos da mesma gramática da mesma língua”.

Outro importante ponto destacado pelo autor do artigo é o fato de que o que entendemos por modalidade oral, ou língua falada, é uma pluralidade de manifestações, correspondentes a diferentes localidades e classes sociais, de modo que não há uma única linguagem oral, mas várias. Há entre os falantes diferenças regionais e sobretudo de escolaridade que fazem com que um cidadão bem escolarizado se permita dizer “Tem um filme legal passando no cinema” ou “eu assisti ele ontem”, mas não “nós foi no cinema junto”.

Portanto, quando se prega adotar a modalidade oral como parâmetro para constituir uma nova norma-padrão, que oralidade se toma como modelo? Algumas construções típicas do discurso oral já aparecem na escrita formal e são até toleradas; outras ainda não. Quem deve estabelecer esses critérios ou fazer essas escolhas? Segundo Cavaliere, “[é] esta avaliação subjetiva que nos afasta do consenso e provoca tantas opiniões radicalizadas sobre o assunto. Como quem se ocupa de descrever e abonar as estruturas prestigiadas para uso em texto escrito é o gramático, no fim sobre ele recai o ônus do anacronismo e do preconceito linguístico”.

Só que os gramáticos, especialmente os contemporâneos, têm métodos objetivos para determinar o que deve ou não ser abonado. Eles fundamentalmente abonam aquilo que já está no uso dos redatores de prestígio, sejam eles grandes escritores, juristas, acadêmicos, jornalistas de peso, etc. E estes, por sua vez, sendo dotados de grande cultura, seguem, ao escrever, os preceitos ditados pelas gramáticas — com exceção talvez de alguns ficcionistas que se permitem transgredir a norma em prol da literariedade, a chamada “licença poética”.

Em outros termos, tem-se um círculo vicioso: o gramático abona estruturas já consagradas e rejeita usos que, embora correntes na linguagem oral, incidem apenas marginalmente no texto escrito, ao passo que os redatores de textos formais que servem de base à abonação gramatical — inclusive os linguistas que pregam o rompimento com a gramática tradicional, assim como seus discípulos — não inovam em seus textos, mas repetem apenas as estruturas já consagradas.

Outra crítica feita pelos linguistas “modernosos” ao ensino de gramática, especialmente da norma em vigor, é que o importante é que o aluno aprenda a ler, escrever e falar bem. Com efeito, desde o advento na linguística do chamado pós-estruturalismo na década de 1970, passou-se a valorizar mais o texto e o discurso do que a língua que os produz. Se até então a tônica dos estudos linguísticos estava no processo, passou-se a praticamente ignorá-lo em detrimento de seu produto. Com isso, enfatiza-se muito hoje a leitura e a produção de textos, relegando a análise sintática a um segundo plano. Na verdade, os radicais sustentam mesmo que seu ensino seja abolido. Ouçamos mais uma vez Cavaliere:

Sabemos desde pelo menos 1915, quando Otoniel Mota publicou a primeira edição de suas Lições de português, que saber analisar sintaticamente uma sentença não garante boa redação a ninguém, mas daí a dizer que fazer análise sintática é algo absolutamente inútil implica avaliar restritivamente a validez dos conteúdos programáticos em língua materna.

Os que hoje trabalham com descrição linguística […] não conseguiriam decerto fazê-lo em nível avançado se em sua formação escolar básica se lhes tivesse sonegado o saber científico sobre a sintaxe e a morfologia da língua […].

Em parte, a culpa é do próprio modo como a gramática tem sido ensinada em nossas escolas, como se fosse um fim em si mesmo e não como um meio para a produção de bons textos. É isso o que municia os mais radicais ao exigir o fim de seu ensino. Na verdade, o que precisamos é repensar esse ensino com vistas ao aprimoramento da competência do aluno tanto linguística quanto discursiva e não sua abolição pura e simples e sua substituição pelo vale-tudo ou por uma norma calcada na oralidade: “a leitura diversificada revela-nos que no texto escrito não se pode contar com as inferências, nem se conformar com as lacunas típicas do texto oral. A leitura, a rigor, demonstra que a arquitetura do texto escrito, se pautada nas técnicas da oralidade, resulta na incoerência e na obscuridade”.

O bom ensino de língua portuguesa é o que dá ao estudante acesso a todas as variedades de uso do idioma, especialmente as que ele ainda não conhece ou domina. Este sim é o verdadeiro ensino democrático e inclusivo e não aquele proposto por indivíduos tão radicais em matéria de língua quanto de política e que impropriamente fazem da ciência uma seara para disseminar suas ideologias e sua militância política. Como conclui Cavaliere, “[n]ão há democracia mais deliciosa do que a do livre acesso às fontes do saber”.

Os peixe

Hoje quero reproduzir aqui neste espaço um excelente artigo de meu amigo e colega José Horta Manzano publicado originalmente no Correio Braziliense em 2011. A questão aqui abordada continua mais atual do que nunca. Vamos ao artigo.

Alguns anos atrás, o Ministério da Educação deu seu aval a uma publicação que reconhecia frases do tipo “os menino pega os peixe”como adequadas em certos contextos. Foi um deus nos acuda. Baldes de tinta foram gastos em aplausos entusiasmados e reclamações indignadas. Embora já não provoque tanto alvoroço, o assunto ressurge de tempo em tempo.

Na época, houve quem entendesse que o ensino da língua portuguesa, com a anuência do MEC, acelerava sua descida aos infernos. Artigos inflamados brotaram da pluma daqueles que, tendo-se esfalfado para aperfeiçoar seu conhecimento da língua, sentiam-se frustrados como se o esforço tivesse sido vão. Com que então, todo esse sacrifício não vale mais que dez réis de mel coado?

Houve quem aplaudisse a boa-nova. Afinal, já era hora de oficializar a existência de uma língua brasileira, distinta da matriz lusa. Muitos exultaram ao ver abolidos os grilhões que nos prendem a normas gramaticais exógenas. Ouviu-se, nas entrelinhas de alguns artigos, um grito de independência definitiva, eco e epílogo do brado de 1822.

Vejo exagero nos dois campos. Não é certo enxergar, nesse episódio, nem o prenúncio do banimento do português dito culto, nem a acessão da fala popular ao status de língua oficial. Quando há impasse, o bom senso manda dar uma espiada no quintal de quem já enfrentou o mesmo problema. Por que reinventar a roda? Se uma solução dada funcionou lá, periga funcionar aqui também.

Qualquer conhecedor da língua alemã pode visitar qualquer lugarejo alemão, do Mar Báltico à Bavária, sem encontrar problema em se fazer entender. O mesmo fenômeno se repete na Itália, das Dolomitas até a ponta da Sicília. Nosso viajante constatará idêntica situação na Grã-Bretanha, na França, na Espanha e em inúmeros outros países. Imaginará até que isso é natural, que foi sempre assim. Pois equivoca-se.

Os falares regionais estão longe de desaparecer. A língua materna de um bávaro não é a mesma de um brandeburguês, embora os dois sejam alemães. A prosa coloquial de um siciliano não é a de um vêneto, não obstante serem ambos italianos. Um catalão, em família ou entre amigos, não usa o mesmo falar de um asturiano nas mesmas condições. Como é possível?

Faz tempo que esse fenômeno é estudado. Uma nação composta de populações que utilizam falares variados tem de recorrer a uma Dachsprache, uma língua-teto. Assim, numerosos povos vivem num universo até certo ponto bilíngue. No Brasil, vivemos uma situação esquizofrênica, uma diglossia em que as variantes populares são desvalorizadas, estigmatizadas, negadas até.

Imbuída do nobre objetivo de pacificar e unificar nosso imenso território, a autoridade central — imperial primeiro, republicana em seguida — usou de seu poder para atrofiar os falares regionais, chegando a negar-lhes a existência, a fim de sufocar no nascedouro quaisquer veleidades de regionalismos independentistas.

Fazia sentido. Politicamente, foi sucesso total. A América Portuguesa não se fragmentou, e faz quase um século que nosso país não é palco de conflitos separatistas. Mas essa história gerou um efeito colateral. Todo brasileiro aprendeu, desde criança, esta verdade incontestável: o Brasil não tem dialetos — afirmação ousada que acabou por criar em nós todos uma insegurança linguística. A doutrina oficial afirma que temos uma só língua. Ora, eu não falo como está escrito nos livros, portanto… eu falo errado! Todos os brasileiros sofrem desse complexo de “falar errado”. Mas estão enganados.

Nenhum de nós jamais erra ao usar a própria língua materna, aquela que aprendeu desde criança, utilizada por seu grupo social. Se a palavra dialeto pode chocar, utilizemos o termo variante. O Brasil tem, sim, dezenas de variantes linguísticas que podem até, em casos extremos, dificultar a intercompreensão. É tolice abordar esse tema sob um viés nacionalista. Justamente por causa dessa grande variedade de falares, nós brasileiros temos necessidade absoluta de uma língua-teto estável e normatizada.

Cabe às autoridades encarregadas da instrução pública dissipar falsas crenças. A elas compete fazer que os brasileiros entendam que não “falam errado”. Mas a elas cabe sobretudo ensinar a norma culta e esclarecer que tal aprendizado, longe de ser ato de submissão a uma remota ex-metrópole, é a chave da intercomunicação entre todos os compatriotas. A elas cumpre também incentivar a preservação e a valorização das variantes regionais.

Informalmente, “os menino pode pegar tudo os peixe”. Na hora de escrever, convém saber que os meninos pegam os peixes. Cai melhor.

Quem é o calhorda?

Desde o início do ano, o Prof. Fernando Pestana, meu colega colunista na página Língua e Tradição, vem publicando nessa página uma série de artigos comentando a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, do linguista Marcos Bagno, sobretudo apontando os erros metodológicos e as incoerências entre o que o autor prega e o que ele mesmo e os autores em que se apoia fazem em matéria de uso da chamada norma-padrão da língua portuguesa.

Antes de mais nada, convém situar o leitor sobre do que trata essa gramática. Nela, Bagno advoga que a atual norma culta do português brasileiro, isto é, o modo como os brasileiros altamente escolarizados falam e escrevem, está bastante distante da norma-padrão, aquela preconizada pela gramática normativa e ensinada nas escolas, a qual estaria, portanto, desatualizada e se teria tornado anacrônica, além de refletir mais o português lusitano do que o brasileiro. Como resultado, o autor propõe não só que se adote uma nova norma-padrão, que abone construções típicas do falar brasileiro, como também que se passe a ensinar essa nova norma nas escolas. É daí que vem o epíteto “pedagógica” do título da obra.

Bagno afirma, dentre outras coisas, que os pronomes demonstrativos este/esta/estes/estas não existem mais no português brasileiro, substituídos que foram por esse/essa/esses/essas em todos os casos. No entanto, o próprio autor emprega diversas vezes este/esta/estes/estas em sua obra, numa contradição com sua própria lição.

Ele também defende que construções como “eu a vi” quase não se usam mais e, portanto, deve-se a partir de agora abonar construções como “eu vi ela”. Seu argumento, coerente com o militante de esquerda que é, é o de que a norma-padrão vigente é elitista e excludente e que, para empoderar os menos favorecidos, é preciso chancelar o modo como eles se expressam.

Esse raciocínio tem dois problemas. Primeiro, a verdadeira emancipação dos mais pobres e menos escolarizados se dá justamente pela educação, portanto pelo acesso dessa população a um ensino de qualidade, que a torne proficiente naquela norma que vai lhe abrir as portas do mercado de trabalho qualificado, e não pelo rebaixamento da norma-padrão ao linguajar das pessoas menos escolarizadas. Essa proposta seria como se, em vez de lutar pela saúde bucal da população, tornando o tratamento dentário acessível a todos, se instituísse a boca banguela como padrão de normalidade.

O segundo problema é que a norma-padrão de uma língua se baseia no uso formal que as pessoas cultas fazem na modalidade ESCRITA. Embora a maioria de nós brasileiros use de fato esse no lugar de este mesmo referindo-se a um objeto próximo de quem fala, o uso do pronome este ainda está muito vivo em nossa escrita formal. Da mesma forma, todos nós dizemos “eu vi ela” quando falamos informalmente, mas nenhuma pessoa bem escolarizada, que é a que redige textos formais, escreveria dessa maneira num documento profissional, trabalho escolar ou na prova do Enem. Logo, o argumento de que nossa norma-padrão é uma peça de ficção, um retrato do português escrito de séculos atrás, como sustenta Bagno, não se sustenta.

É bem verdade que muitos profissionais de nível superior já não respeitam rigorosamente certas regras da gramática normativa quando escrevem, como, por exemplo, quando utilizam a próclise (anteposição do pronome oblíquo ao verbo) em contextos em que deveriam usar a ênclise (posposição do pronome ao verbo). Nesse sentido, a norma-padrão poderia, sim, ser flexibilizada, e creio que o será nos próximos anos, como é da dinâmica natural das gramáticas. Mas, se as pessoas cultas já escrevem assim — eu mesmo faço isso e, aliás, o fiz aqui neste texto — e essas construções são aceitas pacificamente, por que precisaríamos reformular radicalmente a norma-padrão? Não bastariam alguns pequenos ajustes? Por outro lado, que sentido há em institucionalizar uma construção como “eu vi ela” se nenhum redator culto a emprega em textos formais?

Nesse sentido, as críticas do Prof. Pestana à obra de Bagno são plenamente razoáveis e pertinentes. Além disso, a gramática em questão se baseia muito mais nas percepções pessoais do próprio autor sobre o português brasileiro do que num levantamento sistemático, segundo o método científico, de textos escritos formais do Brasil atual, ainda que ele afirme ter feito tal levantamento. Na prática, o que Bagno faz é tomar o português oral informal como padrão a ser adotado na escrita formal, algo que ainda está muito longe de acontecer e de ser aceito socialmente.

Mas o motivo deste meu artigo é que o linguista Marcos Bagno postou recentemente um texto no Facebook com o título “A calhordice do ‘ele não escreve como manda os outros escreverem’”. Embora não especifique a quem dirige sua ira, fica claro que o alvo é justamente o Prof. Pestana, primeiro porque, num trocadilho de gosto duvidoso, Bagno impreca a certa altura: “Vá queimar pestana, calhorda (…)”. E, em segundo lugar, porque as críticas que tenta rebater em sua postagem são exatamente aquelas feitas por Pestana.

A primeira coisa a observar é que Bagno não contra-argumenta, em nenhum momento afirma que os apontamentos de Pestana são inverdades, mas limita-se apenas a dizer que

a postura mais democrática em língua é aquela que diz que as formas inovadoras já devidamente implantadas na linguagem dita culta podem ser empregadas TANTO QUANTO as formas previstas pela tradição normativa. A palavra mágica é TAMBÉM, mas, numa sociedade polarizada como a nossa, com o evângelo-fascismo se espalhando feito a doença que é, falar de TAMBÉM é quase uma heresia.

Só que, em sua gramática, Bagno não sustenta que se use indiferentemente quer a forma tradicional quer a inovadora, ele aconselha os professores a ensinar apenas esta segunda. Diz ele: “é perda de tempo tentar inculcar nos aprendizes uma diferença entre esse e este, que não existe na língua e que não é rigorosamente seguida nem sequer pelos que produzem gêneros escritos mais monitorados”.

Como não tem argumentos para negar que as críticas de Pestana têm fundamento, Bagno recorre ao argumentum ad hominem da retórica de Aristóteles e chama seu crítico de calhorda. Não podendo atacar o argumento, ataca o argumentador, numa atitude infantil de descontrole emocional de quem sabe que não tem razão. Ao contrário, Pestana critica Bagno com espírito científico, como é praxe no debate acadêmico, jamais em nível pessoal, jamais resvalando para a ofensa ou o insulto. Em outras palavras, ataca as ideias, não a pessoa.

Em outro momento, Bagno dá uma “carteirada” em Pestana, um típico “você sabe com quem está falando?”, ao dizer:

escreva uma gramática com pelo menos 1.000 páginas como a minha, leia tudo o que tive de ler para escrever ELA, colete os milhares de dados que coletei para provar meus argumentos, faça dela uma referência internacional para quem estuda português, e um dia talvez quem sabe (mas eu sei que é nunca) você possa (mas sei que não vai poder) começar a pensar em me dar conselhos e passar pito.

Arrogante como sempre e detentor de uma postura de dono da verdade, como o são todos os extremistas, radicais e dogmáticos, Bagno se gaba de ter escrito uma gramática de mil páginas, o que, supostamente, Pestana não seria capaz de fazer. Ora, primeiramente, um livro grande não é necessariamente um grande livro, ou “tamanho não é documento”. Em segundo lugar, Pestana é autor d’A Gramática para Concursos Públicos, por sinal, a gramática mais vendida e a mais lida por concurseiros e vestibulandos, mas não só por eles.

A certa altura, Bagno coloca o pronome pessoal oblíquo antes do advérbio de negação (“…como se fosse possível algum trabalho que o não seja…”) e, pretensioso, desafia seu opositor como quem quer ensinar o padre-nosso ao vigário: “já ouviu falar em apossínclise? Eu já, e uso quando bem quiser!”.

Bagno também afirma em sua postagem que sua gramática “descreve uma construção sintática nova e comprova que ela já está perfeitamente enraizada nos usos falados e escritos das pessoas ditas cultas”. Será? “Eu vi ela” já está enraizado no uso ESCRITO das pessoas cultas? Diz também que “descrever fenômenos gramaticais não é o mesmo que se obrigar (ou às outras pessoas) a usar esses fenômenos na própria escrita”. No entanto, sua gramática se diz pedagógica justamente porque quer ensinar as pessoas a usar essas formas em sua escrita. Gramáticas descritivas descrevem a língua tal como é falada e escrita, tanto pelos mais cultos quanto pelos iletrados; já gramáticas normativas e pedagógicas normatizam a linguagem formal, isto é, estabelecem normas de como se deve ou não se deve escrever textos formais. A gramática de Bagno é pedagógica até no título, e seu conteúdo não é meramente descritivo, com fins unicamente científicos, é prescritivo e estimula os professores a ensinar a seus alunos um padrão que praticamente só o próprio Bagno utiliza. Afinal, quem mais no meio acadêmico ou profissional escreve “leia tudo o que tive de ler para escrever ELA”?

Em outra passagem de seu texto, Bagno se vangloria de ter escrito um romance em que não usou nenhuma vez a palavra cujo. Enquanto os grandes escritores se esmeram em produzir obras linguisticamente ricas, Bagno se orgulha de sua pobreza vocabular. E ainda assim se considera um literato!

Por fim, usando da falsa humildade característica dos cínicos, Bagno afirma: “aceito as críticas e observações que fazem, sempre com bom conhecimento de causa, acato umas, outras não — como é próprio de quem faz ciência e assume coerência teórica. Aceito criticas e observações — mas calhordice, aceito não”. Coerência teórica?! Aceita críticas e observações?! Só se forem aquelas que não exponham sua incoerência ou a fragilidade de suas postulações. Do contrário, o crítico é calhorda, mesmo que todas as suas críticas estejam fundamentadas e apoiadas em dados colhidos por metodologia científica, como o fez o Prof. Pestana.

Mas, a certa altura de seu texto, Bagno também confessa: “na virada do milênio, fiz concurso para uma universidade pública e um dos membros da banca examinadora me perguntou como é que eu tinha sido aprovado no doutorado usando tantas formas não normativas na minha tese”. Pergunta que eu também me faço. O fato é que Marcos Bagno diz o tempo todo fazer ciência ao mesmo tempo em que confessa que todo o seu trabalho é eivado de ideologia (marxista, no caso), e que não é possível fazer ciência não ideológica. Na verdade, todo trabalho científico estritamente descritivo e explicativo que seja bem feito e metodologicamente correto, seja nas ciências naturais ou nas humanas, é não ideológico, já que se atém à realidade dos dados coletados, sem emitir opiniões ou juízos de valor. No entanto, Bagno advoga o tempo todo em favor de uma agenda política, como quando diz em sua postagem:

[o argumento] (é) calhorda porque vem, sempre, da parte de gente que tem acesso suficiente à informação para formar opiniões mais bem fundamentadas, mas que, sempre, troca a boa fundamentação pela defesa de uma ideologia linguística que, como tudo na vida, é uma ideologia política que só deseja preservar o tipo de sociedade em que o uso da língua é mais um critério para excluir as pessoas, tanto quanto a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, o nível de pobreza (porque, no Brasil, falar em “nível de renda” é falta de compaixão) etc.

Em resumo, Bagno não faz ciência, faz política travestida de ciência. Como todo extremista, não se pauta por fatos objetivos e sim por dogmas. Como todo radical, é raivoso contra quem discorde de suas ideias. Como todo hipócrita, finge-se de democrata quando só dá ouvidos a quem lhe faz coro. Como todo aquele que se sabe medíocre (porque quem é bom de fato não precisa provar nada a ninguém), vomita o tempo todo seu currículo acadêmico e desqualifica seus adversários. Como militante político barulhento e rebelde sem causa, desprestigia os verdadeiros linguistas, aqueles que fazem ciência de verdade com seriedade e responsabilidade, que não misturam fatos com opiniões, que não falseiam dados para provar suas teses, que não atacam a honra de seus críticos ou adversários e que, além de tudo, escrevem num português que, mesmo não seguindo religiosamente a norma-padrão, é perfeitamente aceitável entre as pessoas de cultura. O que não é o caso do Sr. Marcos Bagno.

Corrigindo o correto

No clima de violência em que vivemos, é cada vez mais comum ver na televisão entrevistas de pessoas que não querem se identificar e, por isso, têm seu rosto encoberto e sua voz modificada eletronicamente. Como a voz assim alterada nem sempre soa de modo claro, as emissoras costumam adicionar legendas à cena. E como muitas dessas pessoas não se expressam segundo a norma-padrão (na prática, quase ninguém faz isso), as legendas reproduzem literalmente sua fala, inclusive com todos os “erros”. Mas, para não chancelar formas tidas como incorretas pela gramática, essas legendas geralmente trazem as formas não padrão em itálico ou entre aspas. É a maneira encontrada pela TV para ser fiel aos depoimentos dos entrevistados e ao mesmo tempo ficar de bem com os “vigilantes da língua”. Desse modo, pra, prum, tava, os menino, eles foi e demais pérolas do português popular aparecem sempre destacadas na legenda.

O problema é que os profissionais responsáveis pela digitação de tais legendas tampouco dominam cem por cento a norma culta. E às vezes acabam por “corrigir” o que está correto, destacando formas legítimas e fazendo crer aos desavisados que seriam erradas.

Um caso recorrente é o das contrações dum e duma. Muitos pensam que essas formas sejam incorretas ou vulgares e as evitam a todo custo, ignorando que alguns dos nossos melhores escritores e poetas as prefiram. E as legendas da TV não poupam itálicos ou aspas para elas.

Outro caso comum de hipercorreção (isto é, errar ao tentar corrigir o que já está correto) é “me deu um dó”, que os legendistas televisivos não perdoam e metem logo em destaque, ignorando que , do latim dolum, é palavra masculina e não feminina em português.

Outro dia, no Fantástico (Rede Globo), leu-se a seguinte legenda à fala de um policial: “Você dentro de uma base, num contêiner que facilmente um projetil atravessa”. Isso mesmo, com as palavras num e projetil destacadas em itálico, como se estivessem erradas!

Acontece que a contração num, resultante de em + um, é perfeitamente possível e gramaticalmente correta em nossa língua, sendo até de uso mais frequente do que a forma não contraída em um, mesmo em textos formais. E projetil (oxítono) é forma divergente de projétil (paroxítono), estando ambas dicionarizadas. Por sinal, projétil deve sua prosódia ao latim projectilis, cujo acento tônico cai no e, ao passo que projetil nos chegou pelo francês projectile, cujo acento é no i. As duas formas igualmente corretas constituem um exemplo de palavras com dupla prosódia, como ocorre também com biópsia e biopsia, necrópsia e necropsia, casos também já tratados aqui.

Em compensação, formas indiscutivelmente erradas como interviu por interveio e se eu ver em lugar de se eu vir costumam passar incólumes nas legendas das reportagens.

A norma culta do futuro

Que a língua ela evolui todo mundo sabe. E que a gramática normativa, mais cedo ou mais tarde, ela acaba mudando também pra acompanhá a evolução da língua todo mundo também já sabe. Então por que que a gente não começa desde já a escrevê na norma culta do futuro, aquela que vai sê usada daqui uns cem, duzentos ano?

Cê pode achá esse meu exercício de futurologia meio esquisito, mas eu aposto de que é assim que as gerações futura vão redigi textos culto. Não vai mais tê tempo futuro sintético, só o analítico, não vai mais tê o verbo “haver” e talvez nem tenha mais concordância verbal e nominal, ou seja, as palavra não vai mais precisá sê flexionada no singular e no plural, a não sê a primeira palavra da oração.

Em compensação, vai tê concordância de numeral (duas milhões de vacina), e os infinitivos pessoal vão concordarem sempre com os sujeito. Os verbo vão sê facílimo de conjugá: eu sô, cê é, ele é, a gente é, cês são (ou é), eles são (ou é). Cês viram que moleza vai sê?

Os sujeito eles vão sê sempre duplo, que nem nessa mesma frase. Aliás, os demonstrativo “este”, “esta”, “estes”, “estas” eles vão sê puro arcaísmo. Ninguém mais vai escrevê como o Machado de Assis, o José de Alencar, ou mesmo o Jorge Amado e a Raquel de Queiroz. Escrevê que nem o Rui Barbosa, nem pensá!

Cê deve tá achando esse meu artigo bem provocativo, e é essa mesmo a intenção dele. Afinal, a língua da gente, isto é, a língua portuguesa do Brasil, que até lá ela já vai sê língua brasileira, divorciada do idioma de Portugal, já tá hoje mesmo dando sinais de como ela vai sê no futuro, e não só na fala, mas também na escrita. Afinal, o Brasil ele é e sempre vai sê o país do futuro, como disse certa vez o Stefan Zweig, e por isso a língua dele também tem que caminhá sempre pro futuro e não se apegá no passado. Pra onde a língua tá indo, e em que lugar a gente vai chegá eu não sei, mas eu preciso falá pra vocês de que não adianta nada nadá contra a corrente, porque o trem da história e da evolução passa e atropela quem se pôr na frente dele.

A minha hipótese é de que um dia todes vão falá e escrevê assim. Pelo menos tem vários linguista atualmente que eles pensam que nem eu. Pra gente escrevê bem e com correção textos culto e formal, a gente vai tê que aprendê a dominá a norma-padrão e, consequentemente, a gramática normativa. Que eu acho que vai sê mais ou menos assim como eu tô escrevendo nesse momento.

Eu e você a gente pode até não concordá com isso hoje em dia, mas o que que se pode fazê? A língua ela muda inexoravelmente (será que essa palavra ela ainda vai existi?). E quem que vai sabê dizê se daqui um ou dois século não vai sê essa a forma mais correta e elegante de se expressá? Até porque, se a norma culta for assim, é porque a norma coloquial vai sê ainda mais futurista. Cês não acha?

Qual é o correto: “pra” ou “prá”?

Caro Aldo, boa tarde.
Vejo em muitos lugares a preposição “pra” escrita como “prá”. Afinal qual é o correto, “pra” ou “prá”? Obrigado.
Kléber Araújo dos Santos

Caro Kléber, a rigor, nenhuma das duas grafias está correta, pelo menos em termos do português padrão. Acontece que “pra” é forma coloquial da preposição “para”, logo só deveria ser usada em textos escritos que procurem reproduzir a fala informal, como é o caso da transcrição de diálogos em obras de ficção.

No entanto, muitas propagandas (talvez a maioria delas) utilizam correntemente “pra” em lugar de “para” com o objetivo de assumir um tom mais intimista, menos sisudo, e assim criar um vínculo maior com o público-alvo. Coisas do marketing.

Mas a questão é: já que essa forma popular da preposição aparece cada vez mais em textos escritos, seja via literatura ou via publicidade, deve haver uma grafia recomendada para ela, certo? Nesse ponto, a maioria dos dicionários se cala, já que formas populares como “tó”, “ói”, “tô”, “tá”, “peraí”, etc., não costumam ser dicionarizadas. Em contrapartida, o VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) elenca “pra” (sem acento). Só que temos um complicador: a preposição “para” é frequentemente seguida de artigos (“para o”, “para a”, “para os”, “para as”), no que é seguida por sua forma alternativa “pra” (“pra o”, “pra a”, “pra os”, “pra as”). Essa pronúncia, comum no Nordeste, evoluiu no Centro-Sul do país para as formas contraídas “pro”, “pros”, etc. Se “pra” + “o” = “pro”, então “pra” + “a” deveria ser algo diferente do próprio “pra”, ou seja, deveria valer nesse caso a mesma regra da crase (“a” + “o” = “ao”, “a” + “a” = “à”).

Segundo esse raciocínio, a contração de “pra” com “a” ou “as” deveria ser grafada “prà”, “pràs”. Como essa grafia não existe, é possível que alguém (provavelmente em Portugal, onde a distinção de timbre entre “a” e “à” é bastante forte) tenha adotado a grafia “prá” a fim de indicar a contração de “pra” com “a”.

Só que, como estamos no âmbito da informalidade, a ausência de uma norma ortográfica que reja expressões coloquiais faz com que as pessoas grafem essas palavras a seu bel-prazer, sem nenhum critério morfológico ou etimológico. Conclusão: “pra” e “prá” andam juntos e misturados. Pelo sim e pelo não, prefira a grafia “pra”, que ao menos está registrada no VOLP. Além disso, se você não é escritor nem publicitário, certamente ninguém o censurará por escrever errado, num bilhete ou e-mail informal, uma palavra que não está nos dicionários.