A potência e o ato

Antes que algum engraçadinho faça piada, já aviso que o título deste artigo não tem nada a ver com sexo. O que quero tratar aqui são as palavras gregas érgon e enérgeia, utilizadas por Aristóteles para resolver uma questão sobre a perenidade ou mutabilidade do Ser, colocada por outro filósofo grego, Parmênides, e que admitem várias traduções em português moderno dependendo da área do conhecimento em que se esteja. Potência e ato produzem, por exemplo, os derivados potencial e atual (no sentido de “efetivo”, não no de “contemporâneo”).

Em áreas como a administração de empresas e a engenharia, é comum distinguir entre a produtividade e o produto. Aliás, aí costuma aparecer um terceiro termo, intermediário entre eles, a produção. Logo, produtividade é a quantificação da capacidade de realizar a produção; esta é o processo de geração de produtos, sejam eles materiais (bens) ou imateriais (serviços); e o produto é o bem em si, objeto de valor econômico.

Na física, distinguem-se os conceitos de energia e trabalho. Realizar um trabalho é aplicar uma força sobre um corpo de modo a provocar seu movimento. Para realizar esse trabalho, é preciso que haja energia: um motor elétrico só se movimenta e executa um trabalho (como mover um portão automático) se houver energia elétrica passando em seu interior.

Como já deve ter dado para perceber, enérgeia deriva de érgon por parassíntese (parassíntese é o resultado da prefixação e sufixação simultâneas), mediante o prefixo en‑ e o sufixo ‑eia. E érgon, “trabalho”, que aparece em termos do português como ergonomia e teste ergométrico, vem da raiz indo-europeia *werg-, que também produziu o inglês work, igualmente “trabalho”.

A ideia central de Aristóteles ao introduzir esses termos em sua filosofia era distinguir entre algo real, palpável, que ocorreu ou está ocorrendo, e algo apenas possível ou provável, que pode ocorrer ou não. Para isso, ele de certa forma retoma os conceitos platônicos de mundo real e mundo ideal: o real é o ideal realizado.

O já citado Parmênides argumentava que, se o ser é e o não ser não é (logo o Nada não existe), a mudança seria uma ilusão, já que implicava a transformação do ser em não ser e vice-versa — para que algo mude, é preciso que algo que não era passe a ser.

Aristóteles responde que a árvore já existe potencialmente na semente que será plantada, logo não há surgimento nem desaparecimento, apenas transformação, o que reforça o pensamento de outro filósofo, Heráclito, segundo o qual pánta rheí, “tudo flui” em grego, isto é, tudo muda o tempo todo, de modo a ser impossível entrar duas vezes no mesmo rio: a cada vez, tanto nós quanto o rio já mudamos.

Em suma, potência remete ao poder (ou não) ocorrer, e ato, ao efetivo ocorrer. A potência dá origem à noção filosófica e também linguística da modalidade e, por conseguinte, dos verbos modais (querer, dever, saber, poder). Por sinal, para quem tiver interesse, em meu mais recente livro, O universo da linguagem, há um capítulo falando sobre a questão da modalidade.

Uma curiosidade: em inglês, actual não significa “atual, contemporâneo” e sim “efetivo”. Essa língua preservou o sentido original da palavra latina actualis, “relativo ao ato”.

Pensando bem, este artigo até poderia ser também sobre sexo. Afinal, a potência sexual significa a capacidade de realizar o ato sexual, e o ato propriamente dito é o sexo efetivamente realizado.

O ser e o devir

A ontologia é a parte da filosofia que estuda o ser em si, independente de suas qualidades. Um dos primeiros filósofos a se preocupar com a questão do ser foi Parmênides, para quem “o ser é, o não-ser não é”. Essa afirmação algo enigmática pressupõe a imutabilidade do real e a inexistência do nada: a realidade é perene e eterna em sua plenitude, e a mudança que percebemos no mundo, mera ilusão.

Contrapondo-se a essa visão estática do ser, Heráclito afirmou que tudo flui e nada permanece, portanto não se pode atravessar duas vezes o mesmo rio. Estava instaurada a noção de “devir”, isto é, “tornar-se”, do latim devenire, que produziu o francês devenir e o italiano diventare.

Aristóteles procurou conciliar essas duas visões da realidade postulando a diferença entre potência e ato: a realidade é o que é, mas contém também a possibilidade do vir a ser (assim como a semente é uma árvore em potencial).

Se o ser é visto como algo estático, permanente, o devir é a mudança, o movimento. Talvez por isso os verbos que nomeiam esse processo de passar de um estado a outro (de um ser a um não ser e então a um novo ser) estejam relacionados ao deslocamento, seja de longe para perto (do ausente ao presente, diríamos), representado pelo “vir” (latim devenire, inglês become, português “vir a ser”), seja o deslocamento em torno ao próprio eixo (de costas para a frente), como algo que, ao girar, se nos apresenta.

Essa segunda concepção do devir como volta, giro, está presente no grego pélein, proveniente da raiz indo-europeia *kwel, que também deu pólos (polo, eixo), kýklos (círculo) e em latim produziu colere (revolver, cultivar), collum (pescoço), em sânscrito cakram (chacra, círculo) e em inglês wheel (roda).

Além do grego pélein, a ação de tornar-se se expressa em várias línguas com termos que significam “virar, verter”: alemão werden, espanhol volverse e convertirse, além do próprio português “tornar-se” (de “torno”) e “virar”, este último de uso popular. É como se aquilo que se transforma girasse em torno do próprio eixo e, ao completar a volta, fosse outro (como o super-herói disfarçado de cidadão comum que, ao girar rapidamente, ressurge já com sua máscara e sua capa, pronto para combater o mal).

Essa recorrência da imagem do giro como transformação espontânea é o que chamamos de metáfora cognitiva: é tão intuitivo associar mudança a movimento e a mudança de si mesmo ao giro em torno do próprio centro que muitos povos e culturas recorrem a essa concepção para nomear o devir. Talvez a própria percepção de que os movimentos do cosmos são cíclicos nos tenha levado a ver a transformação como ciclo: a realidade é um constante e eterno embate entre o ser e o devir – no fundo, um eterno retorno.