Os evangélicos e as eleições

Nestas eleições, em que deveriam estar sendo discutidos os grandes temas nacionais, como a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a infraestrutura, o debate se perde em questões que não têm nada a ver com a administração do país, mas que são caras a grande parte da população, provavelmente por falta de uma cultura política, reflexo de nossa falta de cultura geral. Uma dessas questões é, infelizmente, a religião. Desde sempre, o povo brasileiro escolheu seus governantes e representantes muito em função de suas crenças religiosas. Para muitos brasileiros, mais importante do que se o candidato é honesto ou competente, é se ele acredita ou não em Deus, especialmente no Deus judaico-cristão. Historicamente, padres e pastores têm influenciado muitos fiéis, fazendo pregação política nos templos e por vezes ameaçando com o Inferno e a danação eterna aqueles que não votarem em determinado candidato, o que surte grande efeito nos mais ignorantes – por sinal, boa parte da população brasileira.

Mas desde que se discute religião nas campanhas políticas, o foco têm sido sempre os chamados “evangélicos”, na verdade, protestantes de linha pentecostal, como os membros da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, ou neopentecostal, como os fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo. É que existem também os protestantes tradicionais, adeptos das igrejas que surgiram com a Reforma Protestante de Lutero em 1517: são os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, etc. Estes não costumam ser chamados de evangélicos porque seu comportamento em geral difere bastante daquele dos (neo)pentecostais. Portanto, é destes últimos que quero falar, já que são estes que estão no foco da discussão política atual.

O Brasil é um país majoritariamente religioso e sobretudo cristão, abarcando cidadãos das mais diversas fés e confissões, como católicos, protestantes, ortodoxos, espíritas, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas, umbandistas, candomblecistas, além daqueles que creem em Deus mas não seguem nenhuma doutrina em particular.

No entanto, não se fala desses grupos religiosos como se fala dos evangélicos, nem o interesse dos políticos está voltado para essas outras comunidades como está para a evangélica. Por quê?

É fato que as denominações (neo)pentecostais são as que mais têm crescido no Brasil, apontando para a tendência de se tornarem majoritárias dentro em breve. Isso se deve a diversos fatores, mas principalmente ao apelo que essas igrejas têm na população mais carente, oferecendo-lhe a possibilidade de solução mais concreta e imediata de seus problemas do que outras religiões.

Mas, se não só os políticos como também a população em geral tende a considerar os evangélicos um grupo à parte em meio à massa dos religiosos em geral e, mais do que isso, um setor à parte da própria população brasileira, é porque esse grupo tem um comportamento que os diferencia, e muito, dos demais cidadãos, o que também é a causa do preconceito que sofrem.

Para o senso comum, o evangélico é um indivíduo que lê a Bíblia todos os dias, vai à igreja toda semana (às vezes mais de uma vez por semana) ouvir um pastor gritar histericamente, não bebe álcool, usa roupas sóbrias – no caso das mulheres, saias e cabelos compridos; algumas nem se depilam –, só ouve música gospel, só assiste a canais de TV de suas igrejas e sobretudo paga o dízimo à sua igreja “religiosamente” (desculpem o trocadilho).

Diferentemente de outros grupos religiosos, os evangélicos são proselitistas e tentam agregar cada vez mais fiéis às suas igrejas, o que representa cada vez mais dízimos e, portanto, mais poder financeiro, que se traduz em cada vez mais templos e mais canais de rádio e televisão – além, é claro, de uma vida cada vez mais rica e luxuosa para os comandantes dessas igrejas.

Nenhuma outra confissão religiosa tem uma bancada tão organizada no Congresso Nacional: não há uma bancada espírita, judaica ou islâmica, mas há uma poderosa e influente bancada evangélica, por sinal sempre fazendo parte da base de apoio ao governo – qualquer governo que seja. Nenhuma outra confissão tem tantas emissoras de rádio ou de TV. Nenhuma outra confissão é tão rica, com exceção, é claro, da Igreja Católica, mas a riqueza desta resulta de um patrimônio de séculos de hegemonia no Ocidente e não da arrecadação de dinheiro entre os fiéis.

Outro aspecto que chama a atenção aos evangélicos é seu conservadorismo em termos de costumes, o que faz a extrema direita sempre flertar com eles. Mais do que isso, o fundamentalismo e, por vezes, o literalismo das posturas de certos evangélicos os coloca como fanáticos religiosos, e daí vem o preconceito maior contra eles. Ao mesmo tempo, o preconceito deles contra outros credos, especialmente os de matriz africana, chegando em alguns casos a pregar e a praticar a violência física contra “a religião do Diabo”, bem como sua censura ao homossexualismo, os faz serem vistos como racistas e homofóbicos, portanto cultores do ódio em vez do amor, base de todas as religiões.

Enfim, todos esses aspectos acabam por alimentar a desconfiança contra os evangélicos por parte dos que não seguem essa doutrina. E, pelo crescente tamanho dessa comunidade, nenhuma força política pode ignorá-la, já que, sem ela e seu apoio no Congresso, fica difícil governar. O temor da parcela mais progressista e esclarecida da população é que essa comunidade, vindo a tornar-se majoritária no Brasil, tente impor a toda a sociedade, incluindo os não cristãos e os não religiosos, uma teocracia, em que a “palavra de Deus”, isto é, a Bíblia em sua leitura literal e sobretudo a vontade dos pastores, se sobreponha à Constituição e às leis. Isso seria o fim da democracia, eis por que fanáticos religiosos e extremistas de direita têm tanto apreço uns pelos outros.

O estilo “Carluxo” de Bolsonaro

Leio num site de notícias que no debate de hoje à noite na Rede Globo Bolsonaro deverá adotar o “estilo Carluxo”, isto é, aquela atitude mais radical, raivosa e aguerrida que, por sinal, notabilizou o presidente desde sempre e que contrasta com a imagem “Bolsonarinho paz e amor” que às vezes seus marqueteiros tentam vender ao eleitorado.

Esse tipo de postura política ganhou o nome de Carluxo por referência ao filho do presidente, Carlos Bolsonaro, principal idealizador e incentivador dessa postura, e cujo apelido – não sei se usado por ele próprio ou se a ele impingido pela imprensa – é um diminutivo carinhoso de Carlos. O que chama aqui minha atenção é a grafia com x desse apelido, a meu ver inadequada. Se a alcunha é utilizada pelo próprio Carlos e por seus íntimos, resta saber se o próprio filho do presidente a grafa com x. Se o faz, é um direito seu. Mas, se não, ou seja, se o apelido lhe foi dado pela mídia, então temos aí um deslize ortográfico. É que ‑ucho é um sufixo diminutivo, por vezes afetuoso, que ocorre em palavras como gorducho, pequerrucho, capucho, fofucho e outras e cuja grafia correta é com ch e não com x (falei semana passada sobre a questão da grafia com x ou ch de imbroxável; este é mais um caso em que a língua portuguesa nos coloca em situação de insegurança).

Mas por que o sufixo ‑ucho é com ch e não com x? Mais uma vez, temos de recorrer à etimologia para explicar. Acontece que esse sufixo é um empréstimo do sufixo diminutivo italiano ‑uccio, por sinal muito frequente em nomes de pizzarias como Micheluccio, Freduccio, etc. (Atenção: isto não é merchandising de pizzarias, ok?) Em italiano, o cc seguido de i soa como /tch/, portanto a pronúncia desse sufixo é /utcho/. Quando aportou em terras portuguesas, lá pelo século XVI, formando os primeiros derivados, o ch português também tinha som de /tch/, logo a transcrição de ‑uccio por ‑ucho foi natural. Somente tempos depois foi que o ch português perdeu o som /tch/ e assumiu a pronúncia atual, que se confunde com a do x. Mas a ortografia manteve o ch mesmo assim, pois nosso sistema é parcialmente fonético (melhor seria dizer fonológico) e parcialmente etimológico. É por isso, por exemplo, que eliminamos o h dos dígrafos th, rh, ph, mas mantivemos o h de hora, hoje, etc.

Conclusão: o colérico filho de Bolsonaro deveria ser Carlucho e não Carluxo. A menos que o próprio, como disse acima, prefira a grafia com x. Aí é uma escolha dele, e ninguém tem nada com isso.

Bom debate hoje à noite!

A etimologia e as eleições

Estamos a menos de uma semana das eleições, e mais uma vez teremos um pleito marcado por tensão, ressentimento e ódio. Mas não é propriamente disso que quero falar. A etimologia das palavras relacionadas ao processo eleitoral é bastante sugestiva das metáforas cognitivas de que lançamos mão para falar de algo essencialmente moderno usando radicais linguísticos que remontam à Pré-História.

Embora “eleição” provenha do latim, e o português seja uma língua latina, essa palavra não existia no português arcaico, tendo sido introduzida posteriormente por via culta. Ela provém do latim electionem, caso acusativo (isto é, forma de objeto direto) de electio, com mutação fonética de ct para it e tradução do sufixo ‑tionem pelo correspondente vernáculo ‑ção. Ou seja, um falante culto do português em algum momento da Idade Média cunhou esse vocábulo por imitação da palavra correspondente latina, fazendo as devidas adaptações fonéticas e morfológicas para aclimatar o termo no português. Quem cunhou a palavra e quando é algo que não se sabe, pois só podemos recuar no tempo até o primeiro registro escrito de que dispomos, datado do século XIII, o qual pode não ter sido o original.

O fato é que o latim electio deriva do verbo eligere, por sua vez composto do prefixo ex, “fora”, e legere, “catar, colher”, provenientes respectivamente do indo-europeu *eks (ou *eghs) e *leg‑. (Para saber mais sobre o indo-europeu, assista ao vídeo A língua mais importante do mundo em todos os tempos no meu canal do YouTube.) Portanto, eleger alguma coisa é extraí-la de seu conjunto, como se faz quando se tira um grão de feijão de um saco.

Já “concorrer”, do latim concurrere, é literalmente “correr juntos” e referia-se à competição esportiva da corrida na Roma antiga. Até hoje a metáfora da competição, inclusive eleitoral, como uma corrida permanece ligada ao verbo “concorrer” e seus cognatos “concorrência”, “concorrente”, “concurso”, etc. A imprensa, por exemplo, volta e meia se refere à “corrida presidencial”.

“Voto” vem do latim votum, particípio do verbo vovere, “prometer, jurar solenemente, fazer um voto (de castidade, por exemplo), fazer votos (de felicidade, etc.)”. Do voto com sentido religioso passou-se ao voto político, que era pronunciado solenemente em voz alta no senado romano. Por sinal, “voto” é da mesma origem que “voz”, e em ambos os casos há a ideia de fala. Por isso mesmo, criou-se a expressão aliterativa “direito a voz e voto”.

Urna, na Roma antiga, era um vaso de gargalo estreito e bojo largo que servia para guardar água, óleo, cinzas e… votos. Por incrível que pareça, urna é da mesma origem que urina, e ambas remontam à raiz indo-europeia *wod‑, “água”, que deu water em inglês e vodka (a água que passarinho não bebe) em russo.

Finalmente, “candidato” vem do latim candidatus, aquele que se vestia de branco (candidus em latim) para concorrer a uma vaga no senado, pois a túnica branca era uma espécie de traje oficial dos políticos da época, assim como o terno hoje em dia. Candidus deu “cândido” e “candura” em português. E como o branco é a cor da pureza, uma pessoa cândida é uma pessoa pura, sem máculas de caráter. Já que cândido é branco, sem manchas, existe até um alvejante de roupas com essa marca. E a lição que fica é que os candidatos a cargos públicos deviam ser pessoas cândidas de caráter, isto é, políticos “ficha limpa”. (Será que eram mesmo?)

“Cândido” é da mesma origem de “candeia”, “candelabro”, incandescente”, “candente”, “incêndio”, etc. E todos provêm da raiz indo-europeia *kand‑, que quer dizer “brilhar”. Como o brilho resulta da luz, que na Pré-História só podia provir do fogo ou do Sol (que também é, grosso modo, uma bola de fogo), daí a relação entre a cor branca e o fogo, ambos dotados de brilho e resumidos na raiz *kand‑.

Como vemos, numa eleição há vestígios de conceitos imemoriais, como catar, correr, voz, vaso, água, brilhar, branco… Só não se pode dizer que haja pureza!

Boa eleição a todos!

O Brasil é de fato uma democracia?

Desde o fim do regime militar, diz-se que o Brasil é uma democracia. Aliás, o processo de passagem de um regime a outro foi chamado de “redemocratização”. De fato, com o fim da era militar, passamos a ter eleições diretas em todos os níveis, desapareceram o arbítrio e a censura, e a tortura passou a ser crime. Mas, recorrendo à própria etimologia da palavra, democracia é o governo do povo, isto é, aquele em que as leis e os atos de governo correspondam à vontade popular. Portanto, democracia não é apenas eleição direta e ausência de censura ou de tortura.

A democracia verdadeira se inicia por um parlamento que realmente represente os cidadãos e ao qual estes tenham acesso direto e poder de influência. Ora, no Brasil, dos atuais 513 deputados federais, constitucionalmente definidos como representantes dos cidadãos (os senadores são representantes dos Estados), apenas 36 foram eleitos com seus próprios votos; os demais 477 chegaram ao poder alavancados pelo chamado quociente eleitoral. Funciona assim: se um candidato a deputado recebe mais votos do que o estabelecido por esse quociente (que é a divisão entre o número de votos válidos e o número de cadeiras na Câmara dos Deputados), ele transfere os votos excedentes a outros candidatos do mesmo partido que não tenham atingido o tal quociente. Somem-se a isso os suplentes, eleitos com poucos votos, que em muitos casos passam um mandato inteiro substituindo seus titulares.

Conclusão: você se sente realmente representado por esse Congresso? Na prática, o que fazemos ao eleger um parlamentar é dar-lhe carta branca para fazer o que bem entender durante os quatro anos de seu mandato. E, como os parlamentares não têm nenhum compromisso com os cidadãos, eles simplesmente legislam em causa própria ou na de poderosos lobbies que os patrocinam. E como não temos nenhum mecanismo institucional de controle das ações de nossos supostos “representantes” – como um recall por exemplo –, a única coisa que nos resta fazer quando não concordamos com os rumos da política é sair às ruas em passeata (o que, convenhamos, não é algo fácil de se articular) – isso quando não somos reprimidos pela força policial da “democracia”.

No Brasil, os ministros do Supremo Tribunal Federal são indicados pelo Presidente da República e sabatinados apenas pro forma pelo Congresso (na prática, jamais um candidato a ministro indicado pela Presidência foi rejeitado pelo parlamento). Isso significa que o STF, órgão judiciário máximo da República, é uma corte aparelhada pelo Executivo. Nessa corte, antiguidade na função de magistrado ou mérito pessoal (aferível por meio de concurso público) nada contam: o que vale é a sintonia política com o governo.

Em nosso país, toda noite, às 19 horas, as emissoras de rádio são obrigadas a interromper sua programação e transmitir a Voz do Brasil. Todos os dias, durante uma hora, somos obrigados a ouvir os enfadonhos comunicados oficiais do Estado ou então desligar o rádio. Além disso, ao longo de quase todo o ano, as emissoras de televisão são obrigadas a dispor de dez minutos de seu tempo de programação (até um passado recente era uma hora) duas vezes por semana para transmitir propaganda partidária. Mais uma vez, ou escutamos um rosário de mentiras e de promessas demagógicas ou desligamos a TV (a menos que tenhamos TV por assinatura, é claro). E ainda tem a propaganda eleitoral obrigatória durante 60 dias a cada dois anos.

No Brasil somos todos iguais perante a lei, só que portadores de diploma de curso superior (isto é, a elite) têm direito a cela especial quando presos, e políticos com mandato, quando julgados, têm direito a foro privilegiado, um verdadeiro passaporte para a impunidade.

Se quisermos propor uma lei ao Congresso Nacional, existe o mandado de injunção, uma espécie de abaixo-assinado popular. Só que, para conseguir que a proposta de lei de iniciativa popular seja protocolada no Legislativo, são necessários um milhão de assinaturas (e assinatura digital pela internet não vale). Apesar desse milhão de assinaturas, o Congresso tem toda a liberdade para modificar, emendar, suprimir ou acrescentar trechos e mesmo rejeitar in toto (isto é, no todo) a proposta.

Para terminar, o voto no Brasil é obrigatório, enquanto na maior parte do mundo é facultativo. O Brasil faz parte de um pequeno grupo de países, quase todos ditaduras, em que o eleitor é obrigado a votar e está sujeito a punições se não o fizer, mesmo que ele considere que nenhum candidato merece seu voto.

Afinal, você, cidadão brasileiro, se sente representado, ouvido e respeitado pelo Estado? Você tem a sensação de que a sua vontade é feita por aqueles que receberam o seu voto? Em suma, será que o Brasil é de fato uma democracia?