Uma leitora que não se identifica – por razões que vocês logo compreenderão – me consulta sobre uma dúvida que lhe surgiu no trabalho. É que seu chefe “corrigiu” um texto em que ela havia empregado “um pouco de”, alegando que o correto é “uma pouca de”. Assim, ela me pergunta qual é a forma correta: “Eu bebo um pouco de água” ou “Eu bebo uma pouca de água”? Aqui vai a minha resposta.
Como você deve saber, sou linguista, não gramático. E para a linguística, não existe certo ou errado, existem fatos observáveis e analisáveis cientificamente. A linguística estuda as línguas como a biologia estuda animais e plantas. Um biólogo não legisla sobre a natureza, portanto nunca diz que uma bactéria está certa ou errada. Legislar sobre a língua é tarefa dos gramáticos.
Mas, já que você perguntou, vou dizer o que penso a respeito, com base no bom senso que deve ter um estudioso da linguagem: a única forma corrente em português brasileiro do século XXI é “um pouco de”. “Uma pouca de” é um arcaísmo que foi corrente nos meios eruditos até meados do século XIX, sobretudo em Portugal, tendo caído em desuso tanto lá quanto aqui após esse período. Usado atualmente, soaria pedante e mesmo sem sentido (quem é que entende essa expressão hoje em dia?). Portanto, se você ouvir alguém dizer “uma pouca”, pode ter certeza de que se trata de uma fala dialetal fossilizada pela falta de contato com a língua padrão. (Talvez nos recônditos mais distantes do Brasil ou de Portugal algum velhinho iletrado ainda use essa expressão.) Empregar “uma pouca de” num texto profissional, como um ofício ou relatório, produziria “ruído” na comunicação, isto é, ou não seria compreendido ou – pior ainda – causaria tal estranheza que desviaria a atenção do leitor do conteúdo da mensagem para a própria expressão. Se isso é bom na literatura, na comunicação corporativa é péssimo. Usar uma expressão como essa, por mais elegante que possa parecer ao seu chefe, pode colocá-lo em situação de ridículo e depor contra a sua imagem profissional. Em todo caso, por mais amiga que você seja da verdade e do bom senso, às vezes é melhor ser amiga do seu chefe, não é?