A cicuta nossa de cada dia

Corrija um sábio e o tornará ainda mais sábio; corrija um idiota e o tornará seu inimigo.
(Provérbio de origem desconhecida)

Como todos sabem, Sócrates foi um grande sábio grego da Antiguidade. Por sinal, é considerado o pai da filosofia ocidental. Não que não houvesse filósofos antes dele, mas estes ficaram conhecidos como pré-socráticos justamente porque Sócrates representou um divisor de águas: a filosofia passou a ser dividida entre antes e depois dele. Enquanto seus antecessores se preocuparam em estudar a natureza — e por isso poderiam ser comparados aos modernos cientistas —, Sócrates se ocupou de estudar o homem e de compreender a natureza humana. Daí o impacto de suas ideias até hoje.

Mas Sócrates é lembrado também por ter sido mais uma das tantas vítimas da ignorância sobre o conhecimento e a sensatez, assim como o foram Jesus, Giordano Bruno, Galileu e outros.

Sócrates desenvolveu um método próprio e peculiar de filosofar e de ensinar seus discípulos, o chamado método socrático, ou maiêutica, que, à maneira de uma parteira, que traz o bebê ao mundo retirando-o de dentro do ventre da mãe, procura extrair das pessoas o conhecimento que já está dentro delas, mas do qual elas ainda não têm consciência. Para isso, Sócrates basicamente fazia perguntas instigantes, que levavam o interrogado a buscar a resposta dentro de si e, assim, fazer uma descoberta.

A questão é que as perguntas de Sócrates eram tão instigantes quanto inconvenientes, pois não raro levavam as pessoas a deparar-se com verdades incômodas, que elas se recusavam a aceitar, por mais evidentes que fossem, porque contrariavam crenças muito arraigadas dentro delas, tão arraigadas que, para elas, se confundiam com a própria verdade.

O incômodo provocado na sociedade ateniense por Sócrates perturbou os poderosos locais, dentre os quais os políticos, cuja manipulação da opinião pública o filósofo tornava evidente, e os sofistas, filósofos profissionais que ganhavam dinheiro dando aulas em que também manipulavam a verdade por meio de habilidosos jogos de palavras. Em razão do mal-estar que causava, Sócrates acabou sendo condenado por não acreditar nos deuses gregos e por corromper a juventude com suas ideias. Em relação à primeira acusação, não se sabe se Sócrates realmente pregava alguma espécie de ateísmo, mas a crença religiosa prevaleceu sobre qualquer argumento racional que a questionasse, como costuma acontecer ainda hoje. Quanto a corromper os jovens, a sociedade de então viu como corrupção a abertura da mente desses jovens a novas ideias, vistas como perigosas ao status quo, como também ocorre até hoje.

Condenado à morte, Sócrates foi obrigado a ingerir um veneno chamado cicuta, e o fez com serenidade, segundo relatam seus discípulos, que a tudo assistiram. Na realidade, ele pagou com a própria vida por exercer o livre pensamento e por tentar ensinar seus contemporâneos a pensar com a própria cabeça em vez de aceitar passivamente os dogmas que se lhes impunham.

A questão é que, tanto antes dele quanto nos 2.400 anos seguintes, isto é, até os dias de hoje, o pensamento livre, o raciocínio lógico, a busca da verdade por meio da razão e da observação dos fatos, a recusa ao argumento de autoridade e ao dogmatismo incomodam. Seja porque ameaçam o poder de alguns, seja porque abalam aquilo que o ser humano mais preza e em que mais se agarra: suas próprias crenças.

Dizem que o homem é um ser racional. Tanto que a biologia nos intitulou Homo sapiens sapiens, “homem duplamente sábio”. Mas a verdade é que apenas uns poucos homens são ou foram realmente racionais no sentido de pautar sua vida e seu pensamento pela razão e pelo bom senso e não pelos instintos, pelas emoções (inclusive as mais primitivas) e por crenças irracionais e sem fundamento. Todo o progresso civilizatório que desfrutamos hoje se deve a alguns gênios, muitos deles incompreendidos, como o próprio Sócrates, Aristóteles, Leonardo, Galileu, Newton, Voltaire, Darwin, Nietzsche, Freud, Einstein… Esses personagens questionaram a realidade, recusaram aquilo em que se acreditava e foram mais longe, desbravando o desconhecido e revelando aspectos da nossa existência que não conhecíamos — na verdade, a maioria da humanidade ainda não conhece. Aliás, intelectual e moralmente, a maioria da humanidade ainda se encontra no mesmo estado em que estava no tempo das cavernas. Basta olhar para o nosso mundo e constatar que, apesar de todo o nosso progresso material e tecnológico, a maior parte de nós ainda vive na miséria, na fome, dominada por tiranos, travando guerras tão sangrentas quanto inúteis, cultuando deuses que não existem, destruindo a natureza que é nossa própria e única casa, julgando os semelhantes por defeitos que nós próprios temos, odiando-nos uns aos outros por meras questões ideológicas, matando e morrendo por dinheiro, consumindo entretenimento de péssima qualidade, perdendo tempo com futilidades e deixando de nos ocupar com o que é realmente importante, mas, sobretudo, fazendo mal aos outros e a nós mesmos.

Ainda hoje, embora todo o nosso progresso se deva ao conhecimento científico e filosófico, a ciência e a filosofia ainda são desconhecidas ou, pior, desacreditadas pela maior parte das pessoas. Ainda há terraplanistas, antivacinistas e criacionistas. Em contrapartida, crenças metafísicas e ideologias ainda dão o tom. Ainda hoje, quando alguém tenta, mesmo que com argumentos lógicos e evidências objetivas, retirar o véu que encobre a visão dos ignorantes e mostrar-lhes a realidade, estes se revoltam não contra quem os enganou o tempo todo e sim contra quem os livrou do escuro e lhes mostrou a luz. É que a escuridão é muito cômoda, ela nos impede de ver coisas que, no fundo, não queremos ver, como, por exemplo, nossa própria mortalidade e nossa fragilidade e pequenez diante do Universo. A maioria de nós, vendo que o rei está nu, prefere acreditar que ele está vestido com um manto que só os sábios podem ver e, se um abelhudo grita no meio da multidão que o rei está despido, em vez de se dar conta da real nudez do rei, trata logo de linchar o abelhudo.

Viver entre as pessoas comuns é uma tarefa árdua especialmente para quem enxerga um pouco mais longe, para quem tem algum senso crítico, para quem costuma pensar antes de agir ou de falar. O sábio só pode conversar sobre coisas sábias com outro sábio. E os sábios são tão raros! Se o indivíduo sensato tentar discutir qualquer questão mais profunda com o cidadão comum, mediano, provavelmente será incompreendido e fará um inimigo. Quando duas pessoas racionais discutem, mesmo que tenham ideias opostas, elas se dispõem a ouvir e ponderar os argumentos do outro e mesmo a rever seus próprios conceitos em função de algo novo que tenham aprendido com esse outro. Já os irracionais, que são a maioria, só estão preocupados em vencer a discussão, em impor suas próprias convicções ao outro e a destruir as dele. Os sábios, como Sócrates, sabem que nada sabem e que, quanto mais aprendem, mais consciência têm do que ainda falta descobrir. Por sua vez, os estúpidos acham que já sabem tudo, que não têm nada a aprender e muito a ensinar, que qualquer um que os corrija, ainda que com toda a delicadeza e com argumentos sólidos, é um arrogante e impertinente. E, assim, as pessoas racionais e de bom senso vão sendo obrigadas a tomar sua dose diária de cicuta enquanto o mundo marcha a passos largos para seu desfecho trágico. Mas, como diz o título daquele filme de 1956 e também da canção de Lulu Santos, assim caminha a humanidade.

Ética e moral são a mesma coisa?

Nesta semana, respondo à pergunta de um assíduo leitor desta coluna. Edilson Zafira de Sousa, de São Paulo, questiona:

Qual é a etimologia de ética e de moral? São sinônimas?

“A ética está ligada à filosofia. A moral está ligada à religião.” Está correta essa definição?

Embora no linguajar corrente ambos os termos sejam utilizados como sinônimos – e a razão disso explico mais abaixo –, eles têm diferentes significados. “Moral” deriva do latim mores, “usos, costumes”, e corresponde ao conjunto das práticas toleradas e mesmo recomendadas por uma sociedade a seus membros – os chamados “bons costumes”. Portanto, moral é algo aceito como normal pela coletividade, seja um povo inteiro ou uma comunidade restrita (as Forças Armadas, a Igreja Católica, um determinado colégio).

A moral é fruto de uma convenção social e, por isso mesmo, muda com o passar do tempo e de uma sociedade para outra. Muitas práticas comuns hoje em dia, como usar biquíni na praia, já foram noutros tempos consideradas imorais. O topless ainda é visto como atentado ao pudor pela maioria dos brasileiros, mas em lugares como Ibiza (Espanha) e Saint-Tropez (França) é prática normal e corrente.

Como se pode ver, a moral é relativa e está intimamente ligada à cultura, embora, para os membros da comunidade que a adotam, tenha valor de verdade indiscutível.

A ética, por outro lado, é a especulação filosófica a respeito da moral e dos costumes. Derivada do grego éthos, “modo, jeito de ser, costume”, a ética busca valores universais, como o bem comum. Para Sócrates, o segredo do bem viver é viver com sabedoria, algo que só se atinge pelo autoconhecimento. Já Aristóteles, em sua Ética a Nicômano, afirma que somos o produto de nossas escolhas. Cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, mas, se todos fizerem isso, a convivência social se torna impossível. Portanto, a reflexão filosófica visa responder à pergunta: o que posso ou não posso, devo ou não devo fazer se quiser viver em paz comigo mesmo e com os outros? A resposta parece ser a chamada Regra de Prata: “não faça aos outros o que não quer que os outros lhe façam”. E que pode ser complementada pela Regra de Ouro, ensinada por Jesus: “faça aos outros o que quer que os outros lhe façam”. Ou, simplesmente, “amai-vos uns aos outros”. Sendo uma reflexão filosófica, guiada pois pela razão, a ética pode até mesmo confrontar regras morais vigentes por considerá-las ultrapassadas ou injustas. A ética reflete sobre o bem comum, o bem da coletividade, ao passo que a moral disciplina o comportamento individual.

Mas, se, na teoria, ética e moral são coisas diferentes (a ética seria o estudo filosófico da moral), na prática elas se confundem, pois é comum usarmos o nome de uma ciência para designar o próprio objeto dessa ciência. É assim que “economia” é tanto o conjunto dos bens e recursos de uma sociedade quanto a ciência que estuda a circulação desses bens e recursos; “história” é tanto o conjunto dos fatos passados de uma sociedade quanto a disciplina que estuda esses fatos.

Portanto, é possível falar em moral católica ou em ética empresarial como códigos de conduta a ser seguidos. Na verdade, a sociedade ocidental, que por séculos viveu dominada pela ideologia religiosa, ainda atrela, mesmo que inconscientemente, a moral secular aos preceitos do Cristianismo, por sua vez herdados do Judaísmo. É nesse sentido que muitos setores da nossa sociedade veem como imoralidade a nudez em público ou o homossexualismo.

É preciso lembrar, no entanto, que nem tudo que é ético é estritamente moral, assim como nem tudo o que é legal é moral ou ético. Furar fila não é ilegal, mas não é moral, pois contraria os ensinamentos que todos deveríamos trazer do berço, nem tampouco é ético, já que ninguém gosta de ter seu direito violado. Mentir é geralmente visto como atitude reprovável, logo imoral, mas, e se mentimos para salvar uma vida? Não seria algo perfeitamente ético e mesmo louvável?

Portanto, ética e moral não têm necessariamente a ver com fé religiosa, embora na maioria das sociedades ainda seja a religião a principal referência do bom comportamento. Sobretudo a ética busca o justo, o que garanta a harmonia social.

Nesses nossos tempos em que a ética parece andar tão distante da política, em que basta que um gesto não seja ilegal para que seja considerado moral, recordar o significado dessas duas palavras pode ser de algum proveito.