A leitora Ana Cristina Fischmann me faz a seguinte pergunta:
Caro Aldo, tenho ouvido em muitos lugares, inclusive em palestras, a expressão “pessoa humana” (por exemplo, a dignidade da pessoa humana etc.). Isso está certo?! Existe pessoa não humana? Me esclareça, por favor. Muito obrigada.
De fato, Ana, eu também por muito tempo estranhei essa expressão, pois para mim a palavra “pessoa” sempre se refere a um ser humano (exceto, talvez, as três pessoas da Santíssima Trindade – o Pai, o Filho e o Espírito Santo). No entanto, o Direito define pessoa como “toda entidade natural ou moral com capacidade para ser sujeito ativo ou passivo de direito, na ordem civil” (definição do dicionário Houaiss). Daí termos a pessoa física (o cidadão) e a pessoa jurídica (organização, entidade ou empresa). O problema é que, na prática, a única realidade que nossa legislação reconhece como entidade capaz de ser sujeito do direito acaba sendo o ser humano, individualmente ou em grupo. Nesse sentido, toda pessoa é humana, e portanto a expressão “pessoa humana” seria uma redundância.
Entretanto, sobretudo nos últimos tempos, uma nova perspectiva tem dado um significado mais amplo à palavra “pessoa”: trata-se da teoria (ou filosofia) dos seres sencientes. O que é ser senciente? Segundo Luciano Carlos Cunha, no site Pensata Animal (www.pensataanimal.net/glossario-dm/97-senciencia), senciência é a
[j]unção de dois conceitos: sensibilidade e consciência. Diz-se de organismos vivos que não apenas apresentam reações orgânicas ou físico-químicas aos processos que afetam o seu corpo (sensibilidade), mas além dessas reações, possuem um acompanhamento no sentido em que essas reações são percebidas como estados mentais positivos ou negativos. É portanto, um indício de que existe um eu que vivencia e experimenta as sensações. É o que diferencia indivíduos vivos de meras coisas vivas.
Dito de outra maneira, um ser senciente (do latim sentiens, do verbo sentire, “sentir”) não apenas está vivo, no sentido biológico de processar e transformar energia, mas é capaz de sentir dor e prazer e, mais ainda, de fugir da primeira e buscar o segundo. O aspecto mais visível para nós de que um animal tem sensibilidade e consciência é a reação à dor. Sobre esta, a filósofa Sônia T. Felipe afirma em Por uma questão de princípios: Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais (Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 113):
Para se poder dizer de um ser que este tem a capacidade de sofrimento, à qual se pode designar “capacidade para realizar a perda”, tal deve apresentar, de alguma maneira: 1) uma sensibilidade para os eventos que afetam o próprio organismo; 2) uma consciência dessa afecção, ou, em outras palavras, uma espécie de percepção das próprias experiências afetivas, a qual vem acrescida, na maior parte dos seres sensíveis, daquilo que chamamos de 3) memória, a qual torna o ser apto para reter ou manter o registro das informações de experiências passadas, e de 4) imaginação ou capacidade para ordenar as experiências sensíveis, as imagens da memória e a recordação consciente das mesmas de modo a prevenir-se contra situações de risco no presente. Quando tal capacidade se apresenta ainda mais elevada, o indivíduo pode, ainda, apresentar outra habilidade, qual seja, a de 5) ordenar atos em relação não apenas ao presente mas também ao futuro, demonstrando, desse modo, que tem 6) consciência temporal de si, o que caracteriza sua preferência por estar vivo e não pelas situações nas quais arrisca-se a morrer. Todas essas habilidades estão presentes em maior ou menor grau em todos os animais sensíveis. A diferença entre humanos e não humanos, no que diz respeito a tais experiências, é, pois, de grau, não de essência, tese apresentada por Darwin e incorporada por Singer em sua ética na defesa dos animais.
Segundo a Wikipédia, citando o filósofo Peter Singer, senciência é a “capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade”. E mais adiante afirma: “[n]ão se questiona que os humanos são seres sencientes […]. A questão que tem vindo a ser colocada é sobre se essa mesma capacidade de possuir percepções conscientes dos acontecimentos e da realidade em que estão envolvidos poderá ou não acontecer de igual forma com os outros animais”.
O fato é que, com o crescimento do movimento antiespecista nos últimos anos (especismo é a crença na superioridade da espécie humana sobre as outras espécies animais, da mesma forma que o racismo é a crença na superioridade de uma raça humana sobre outra), o Direito e a legislação aos poucos vão reconhecendo os animais como “pessoas” e não apenas como “coisas”. Exemplos disso são as recentes leis que proíbem experiências com animais na fabricação de cosméticos ou que criminalizam os maus-tratos e o abandono de animais.
Diante de tudo isso, a expressão “pessoa humana” passa a fazer sentido e deixa de ser um pleonasmo: existem, sim, pessoas não humanas, mesmo embora possa soar estranho para nós chamar um cachorro de pessoa. O que importa não é como os chamamos, mas como a justiça os considera.