Sotaque de novela

Todo falante (com exceção, talvez, dos estudiosos da linguagem) tem uma visão idealizada da língua que fala, e das outras também. Desde crenças infundadas sobre a “pureza” deste ou daquele idioma até alegações, por vezes cercadas de uma aura cientificista, de que tal língua se presta melhor do que outras a determinados propósitos (comércio, poesia, filosofia, etc.). Essa mesma visão romântica — e por que não dizer chauvinista? — da língua é que leva o paulistano que pronuncia “inteindeindo” ou o carioca que diz “meijmo” a acharem que falam sem nenhum sotaque, que quem tem sotaque são os outros. E aí nascem os estereótipos linguísticos, sobejamente explorados pelos programas humorísticos da TV, nos quais o traço caricatural da fala regional, mais do que tolerado, é enfatizado, haja vista o efeito cômico que produz.

Mas o que dizer de telenovelas “sérias”, em que a imitação da pronúncia ou da sintaxe de determinada região (ou da fala de imigrantes estrangeiros) deveria causar no telespectador uma sensação de ambiência realista, como que a transportá-lo para o meio daquelas pessoas distantes, de fala igualmente tão distante da nossa? Via de regra, o que se vê em nossos folhetins televisivos é um arremedo, às vezes patético, do linguajar dos lugares e épocas retratados.

Atualmente, a Rede Globo (que, por sinal, passou a assinar-se novamente como TV Globo ou simplesmente Globo, conforme aparece na logomarca da empresa) exibe três telenovelas “regionais”: O Rei do Gado, Mar do Sertão e Travessia. Nas três, temos pronúncias caricatas, seja a do caipira (isto é, qualquer cidadão natural do meio rural, desde Rondônia até o Rio Grande do Sul), seja a do nordestino.

Nossa idealização “sulista” da fala deste último nos leva, em primeiro lugar, a achar que em todo o Nordeste se fala igual, portanto numa novela passada na Bahia e noutra em Pernambuco os atores falarão do mesmo jeito. Por sinal, um jeito no qual nenhum nordestino de verdade se reconhece. Nem o baiano nem o pernambucano.

Em segundo lugar, temos a vaga ideia de que no Nordeste o não vem sempre depois do verbo (“— Você quer? — Quero não.”) e mais substitui a preposição com (“Severino saiu mais Maria.”). Só falta explicar que o advérbio não não se pospõe simplesmente ao verbo. O que ocorre é o redobro do não, comum em todas as regiões do país (“Não quero, não”), seguido do apagamento do primeiro não (por preguiça dos baianos, dirão os maldosos). Portanto, é pouco provável ouvir um não posposto ao verbo que não esteja em posição final na oração. Uma frase como “hoje vou não à escola porque está chovendo” é bem improvável em qualquer lugar do Brasil, inclusive no Nordeste.

Em segundo lugar, mais de fato substitui com no sentido de companhia, mas não em outros sentidos. “Este ano a eleição coincide mais a Proclamação da República” ou “ele cortou o pão mais a faca” são construções impossíveis. A não ser nas novelas. (Em 2012, no remake de Gabriela, de Jorge Amado, ouviam-se frases como “Mundinho Falcão casa não mais Gerusa!”.)

E o que dizer do italiano macarrônico que volta e meia assalta nossa telinha, como no caso dos patriarcas das famílias Mezzenga e Berdinazzi de O Rei do Gado? Talvez preocupados em fazer com que um público mal escolarizado entenda o que os imigrantes da estória estão dizendo, o que se faz é pôr na boca dos atores um sotaque artificialmente “cantado”, acrescido de falsos cognatos, como, por exemplo, empregar allora no sentido de “agora” (allora significa “então” em italiano): “Io vó lá allora mesmo!”.

Finalmente, as novelas de época trazem janotas e donzelas do século XIX falando como surfistas: “eu vi ela saindo”, “eu queria muito que a gente ficasse juntos”, e por aí vai. Somem-se a isso cenários caríssimos reproduzindo o Rio de Janeiro dos tempos imperiais onde se leem placas com dizeres como farmácia e comércio, assim mesmo, com f no lugar do ph e m em vez de mm. Sem falar no acento agudo! (Parece que a televisão brasileira, ciosa do seu papel educativo e cultural, adota nas novelas de época a ortografia pós-Acordo Ortográfico de 2009.) Mais convincente do que isso só me lembro do Márcio Garcia fazendo papel de indiano na novela Caminho das Índias, de 2009.

Além do erro ortográfico

Estreou semana passada na Rede Globo a nova novela das 18 horas, Além da Ilusão, que conta a história do romance proibido entre um jovem ilusionista e uma moça rica. Mais uma vez, a Globo se esmera na reconstituição de época (anos 1930 e 1940), nos cenários, figurinos, locações, etc. – e mais uma vez escorrega na linguagem. Num dos capítulos, o mágico é preso injustamente e, ao ser fichado, aparece na tradicional foto de frente e de lado segurando uma plaquinha com seu nome e data de nascimento (hoje em dia, essas placas também trazem o artigo do Código Penal em que o suspeito está incurso). Pois não é que nessa placa aparece o nome Davi e a data de nascimento cujo ano é 1934? E o que há de errado nisso? É que em 1934, portanto antes da reforma ortográfica de 1943, o nome Davi se grafava David, com d final mudo. Ou seja, a Globo usou a ortografia atual numa novela de época, o que revela que, mais uma vez (casos semelhantes comentei no artigo A língua portuguesa e as novelas de época), a preocupação com a recriação realista de um momento histórico passado não se estendeu à língua. Falta à Vênus Platinada uma boa consultoria linguística – aproveito para avisar que estou disponível para prestar esse serviço – se for bem pago, é claro!

Ainda hoje há muitas pessoas com o nome David, da mesma forma como meu nome do meio é Luiz com z. Trata-se de uma grafia tradicional, assim como Mello, Mattos, etc. No entanto, pessoas de baixa cultura, que desconhecem ser essa grafia legitimamente portuguesa, costumam pronunciar o nome como Dêivid, achando que se trata de nome inglês. (Aliás, os de mais baixa extração social acham até chique essa pronúncia.) O desconhecimento dos mais jovens e dos menos letrados quanto à grafia antiga dos nomes portugueses faz com que se pronuncie consoantes que deveriam ser mudas, como o c de Victor e o p de Baptista. Só falta agora pronunciarem Jacob como Jacobe – se é que já não há alguém que o faça!

Campanha da Rede Globo contra o racismo peca por ignorância

Por ocasião dos 132 anos da abolição da escravatura no Brasil, a Rede Globo acaba de lançar uma campanha contra expressões verbais consideradas racistas por conterem as palavras “negro” ou “preto” (ou suas flexões de gênero e número). O comercial consiste em omitir a palavra em questão em expressões consagradas na língua portuguesa – e que têm equivalentes em outras línguas –, substituindo-a por uma lacuna (o famoso underline, para quem é da geração digital). Temos então: a coisa está _____, não sou tuas _____, serviço de _____, ovelha _____, mercado _____, lista _____, e por aí vai. O problema é que boa parte dessas expressões não tem nenhuma relação com a raça negra, portanto não tem nada de racista.

Se, de fato, serviço de preto significa “serviço malfeito” porque feito por negros (na época da origem da expressão, escravos), e não sou tuas negas se refere às negras com quem o senhor de escravos se deitava, as demais expressões remetem ao negro como cor e não como raça.

Desde tempos imemoriais, o homem teme a escuridão – e na época das cavernas muito mais do que hoje –, afinal à noite o risco de ser atacado por predadores ou inimigos era muito maior. Da mesma forma, uma caverna escura poderia conter ameaças, desde um buraco até uma fera. Não por outra razão, o negro foi escolhido como a cor do luto, já que a escuridão evoca a tristeza e o medo do desconhecido. Evoca sobretudo o maior de nossos medos: a morte. Daí deriva também o uso da cor negra como símbolo de tudo que é negativo, nefasto e fora do padrão, assim como o branco sempre foi associado à pureza e à virtude. Se todas as ovelhas são brancas, o indivíduo que destoa de seu grupo só poderia ser uma ovelha negra – ovelhas azuis ou amarelas não surtiriam o mesmo efeito de contraste. A lista negra é a que contém os nomes dos indesejáveis, dos que não merecem confiança porque são impuros no caráter. O mercado negro é o comércio ilegal, clandestino, que opera às escuras, sem ser visto pela lei. “A coisa está preta” é mera alusão às nuvens negras anunciando tempestade, e assim por diante.

A maior parte dessas expressões nasceu na Antiguidade ou na Europa medieval, num tempo portanto muito anterior à escravidão negra na América e ao preconceito racial dela decorrente, num tempo em que os europeus praticamente não tinham nenhum contato com os africanos.

O que se passa é que a ideologia do politicamente correto promove uma caça às bruxas, tentando encontrar culpados a todo custo e criminalizando palavras e expressões que, em sua origem, não tinham nada de preconceituoso. Querendo combater o fascismo da sociedade, é o politicamente correto que se torna fascista, censurando qualquer um que não se comporte ou fale segundo sua cartilha. A seguir essa lógica, logo estaremos proibidos de escrever com caneta preta, e as mulheres não poderão mais usar vestido pretinho básico.

A intenção da Globo foi boa, mas de boas intenções o inferno está cheio. Nota zero para essa campanha, que demonstra ignorância da origem das expressões que condena!

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Acho que já contei essa história aqui, mas, em todo caso, vale repeti-la. Certa vez, eu estava dando aula enquanto um temporal medonho se avizinhava lá fora, com enormes nuvens negras, raios e trovões dignos de filme de terror. Olhei pela janela e disse aos alunos: “Pessoal, a coisa lá fora tá preta”. Nisso, uma aluna negra me interpelou dizendo que eu não deveria usar essa expressão, que eu deveria demonstrar mais respeito pelo holocausto africano, etc. etc. (Sim, meus amigos, em seu longo sermão ela usou o termo “holocausto” em relação à escravidão). Um tanto perplexo, eu não perdi a pose e voltei à janela, olhei para fora novamente e remendei: “Pessoal, me desculpem, eu quis dizer que a coisa lá fora está afrodescendente”.