O presidente Jair Bolsonaro recentemente vetou uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que propunha alterar o nome do Dia do Índio para Dia dos Povos Indígenas. Essa atitude reacendeu uma polêmica que já dura algum tempo e que põe em xeque a palavra índio como designativa dos povos de origem asiática que já habitavam as Américas antes da chegada dos europeus, bem como de seus atuais descendentes. Nesse embalo, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz chegou a postar um vídeo no YouTube de reprimenda ao presidente com o título É indígena, sr. Presidente!.
Como todos devem saber, a palavra índio tem a ver com a Índia, e a primeira das acepções desse vocábulo nos dicionários é justamente “o mesmo que indiano” (em espanhol, até hoje, os indianos, habitantes da Índia, são chamados de indios, e em inglês Indian significa indistintamente “indiano” e “índio”). É que, segundo consta, ao chegar ao continente americano, Cristóvão Colombo acreditava ter chegado às Índias. E naquele tempo, Índias era a designação que os europeus davam não só à Índia propriamente dita, mas a todo o sudeste asiático, daí o termo no plural.
Desse modo, Colombo chamou os aborígines americanos de índios, e esse nome ficou consagrado por séculos. Como esses aborígines tinham características físicas peculiares (pele moreno-avermelhada, cabelos pretos e lisos, olhos negros ligeiramente amendoados, nariz discretamente achatado), os antropólogos do século XIX decidiram chamar de índia essa suposta raça humana por oposição aos brancos, negros e amarelos (na verdade, os orientais, que de amarelo não têm nada). Uma classificação antropológica mais moderna denomina os brancos de europoides ou caucasianos, os negros de negroides e os amarelos de mongoloides (não confundir com os portadores da síndrome de Down). Quanto aos índios, são atualmente classificados entre os mongoloides, isto é, são um subgrupo dos humanos que habitam o Extremo Oriente e que um dia, há cerca de 30 mil anos, cruzaram o estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca, num tempo em que a calota polar o permitia, e povoaram a América.
Hoje em dia se questiona muito o conceito de raça, visto que, do ponto de vista genético e graças à análise do DNA, se sabe que os humanos têm entre si muito mais semelhanças do que diferenças. Mesmo assim, ainda costumamos dividir a humanidade em raças com base nas características físicas de cada povo. Isso é tão verdade que hoje, mais do que nunca, os negros procuram afirmar-se como tal em sua luta contra o racismo e pela preservação de seus valores culturais.
Quanto a indígena, esse termo que normalmente usamos para nos referir aos ameríndios (e olhe a palavra índio aí de novo, disfarçada!) nada tem a ver etimologicamente com os índios. A palavra vem do latim, portanto já existia bem antes de os europeus terem chegado à América, e significa simplesmente “natural da terra, nativo”, do latim indu-, “dentro”, e geno, “nascer”. Ou seja, indígena é quem nasceu dentro (do país). A semelhança fonética fortuita entre índio e indígena foi um prato cheio para estabelecer-se a confusão e passar-se a achar que só os habitantes originários do Novo Continente são indígenas.
Mas a polêmica, alimentada pelo famigerado movimento politicamente correto, está na crença, trajada de fake news, de que o termo índio é pejorativo e de que põe no mesmo balaio povos de etnias muito diferentes. Em primeiro lugar, ninguém ignora hoje em dia que um txucarramãe é etnicamente muito distinto de um ianomâmi; no entanto, chamá-los todos de índios não é muito diferente de chamar povos tão distintos quanto portugueses e húngaros de europeus. Em segundo lugar, qual a evidência científica de que o termo índio tem conotação pejorativa? Há alguma estatística de uso da palavra que comprove que, na maioria das vezes, é empregada em tom depreciativo? Como homem de ciência, me apego aos fatos e não a opiniões ou crenças, e fatos são comprováveis por dados observáveis. Sem eles, o que há é mera especulação, por vezes a serviço de certas agendas ideológicas. O “cancelamento” de palavras legitimamente vernáculas e sem nenhum cunho preconceituoso como gordo, cego, surdo, vesgo, paralítico, careca, etc., e sua substituição por paráfrases longas e pouco práticas de ser pronunciadas como pessoa portadora de deficiência ou pessoa não vidente (até a expressão deficiente visual vem sendo evitada ultimamente) procura criar uma espécie de novilíngua à moda daquela descrita por George Orwell em seu romance distópico 1984, na qual determinadas palavras ou acepções são banidas com o objetivo de restringir a amplitude do pensamento. Assim, se algo não pode ser dito, não pode ser pensado, logo não existe. O que o politicamente correto faz é justamente isso: em vez de procurar mudar a realidade para melhor, ele a mascara, dando nomes bonitos a coisas feias para que elas pareçam mais bonitas – ou menos feias.
A vítima mais recente da orwellização da língua portuguesa é a palavra escravo, sistematicamente substituída por escravizado – como se pessoas escravizadas não fossem escravas. Por essa lógica, não podemos mais nos referir à Abolição da Escravatura, mas devemos em vez disso aludir à Abolição da Escravização.
O pior de tudo é que essa proscrição de palavras feita pela linguagem politicamente correta não tem embasamento nas ciências da linguagem e é feita por pessoas, em geral militantes ideológicos de cultura rasa, sem nenhum cabedal de conhecimento etimológico ou de história da língua. Recentemente, uma deputada federal propôs banir o vocábulo travestido por afirmar erroneamente que seria uma alusão depreciativa aos travestis.
O fato é que muitos jornalistas, intelectuais e ativistas políticos têm evitado até referir-se aos nativos brasileiros como indígenas e empregado em seu lugar a expressão povos originários. Ou seja, já fizeram o revisionismo do próprio revisionismo linguístico.