O coronavírus e o renascimento da ciência

Se é que podemos dizer que há algo de positivo nessa pandemia de covid-19, é o retorno triunfante do pensamento racional, especialmente em sua forma mais elaborada, a ciência. A coitadinha andava desacreditada e com pouco ibope desde inícios do presente século, quando uma avalanche de tentativas de restabelecer os dogmas religiosos e ideológicos como verdades absolutas, chegando-se mesmo a lançar dúvidas sobre fatos cientificamente comprovados, como o de que a Terra é redonda e vacinas funcionam, passou a assolar a humanidade – principalmente sua parcela menos informada e mais temerosa do desconhecido, que ela erroneamente chama de sobrenatural ou de realidade transcendente.

Claro, a história passa por ciclos: já vivemos a Pré-História, o humanismo clássico da Grécia antiga, o obscurantismo da Idade Média, o novo culto do homem e da razão durante a Renascença e o Iluminismo, que desaguou no incrível avanço científico-tecnológico dos séculos XIX e sobretudo XX. Mas talvez a sordidez dos líderes políticos desse período, com seus campos de concentração, seus gulags e duas guerras mundiais, tenha levado certas pessoas a um desencanto com o racionalismo e, consequentemente, à busca do suposto transcendente.

No entanto, a crise do coronavírus está nos mostrando que somente a ciência pode nos tirar dessa encrenca em que nós mesmos nos metemos. Que me desculpem os terraplanistas e antivacinistas de plantão, mas o que vai nos salvar não são as preces do Papa nem o jejum do nosso Presidente da República. Aliás, as constantes e vexatórias derrotas que ele tem sofrido ao insistir em contrariar a ciência mostram que, se quisermos compreender pelo menos um pouquinho como a natureza funciona, não é nos livros sagrados que encontraremos as respostas – pelo menos não as verdadeiras.

Tudo bem, se você acredita que terremotos, tsunamis, pandemias e desastres aéreos são enviados por Deus para testar a fé dos homens e que, rezando para ele, você conseguirá escapar são e salvo, isso é problema seu. Mais do que isso, é um direito seu!

Porém, como diria Karl Marx, outro ideólogo dogmático, você pode saltar do vigésimo andar de um edifício e acreditar que, graças à sua fé, você sairá voando, mas infelizmente é no chão que você vai se arrebentar. Dito de outro modo, contra fatos não há argumentos.

É claro que a ciência, no seu atual estágio, não tem todas as respostas (e talvez nunca venha a ter, pois a própria mente humana tem seus limites), mas ela tem o método seguro que nos leva da dúvida à certeza. Mesmo que você não acredite no método científico (provavelmente não se trata de descrer mas de não conhecê-lo e compreendê-lo), não há nada que prove que as explicações metafísicas funcionam melhor. Senão, não teríamos hospitais, as igrejas dariam conta de tudo.

Também certas teorias pseudocientíficas, na verdade, dogmas disfarçados, precisam ser combatidos, como o de que o aquecimento global tem causas naturais, de que a culpa pela existência da pobreza é dos ricos, ou de que a desigualdade entre brancos e negros começou no século XVIII com a escravidão. Claro que é preciso eliminar a injustiça, bem como salvar o planeta, mas não é maquiando a verdade e apontando falsos culpados que conseguiremos isso.

Infelizmente, a crença em dogmas é inculcada no ser humano desde a mais tenra idade e em casa (quem nunca ouviu falar de papai do céu?). Já o ensino de ciência só começa bem mais tarde, na escola, é fraco, precário e sobretudo burocrático. Ou seja, é mais importante decorar fórmulas que cairão no vestibular do que compreender o método científico, com seus experimentos e observações, testes e refutações de hipóteses, até chegar a um conhecimento que, se não é completo, pelo menos funciona para nossas necessidades e avança cada vez mais.

Outro ponto que quero destacar é que mesmo as curas supostamente milagrosas não resistem a uma análise científica mais rigorosa. Ou seja, muitos santos do passado foram canonizados com base em “milagres” que hoje são perfeitamente explicáveis pela razão. É claro que o Papa nem cogita descanonizar essas pessoas, mas o fato é que os milagres de hoje serão os casos clínicos rotineiros de amanhã. Além disso, a religião se apega muito ao milagre que salvou uma pessoa, mas não ao descaso de Deus com os milhares de outras pessoas, que não receberam a graça divina.

Portanto, se lhe faz bem rezar, meditar, fazer rituais e frequentar cultos (virtualmente, é claro!), continue; não tenho nada contra isso. Mas, por favor, fique em casa, lave bem as mãos e, quando a vacina contra a covid-19 estiver disponível – e estará, pode confiar – não deixe de tomá-la. Não vale a pena apostar contra a ciência; o preço dessa aposta pode ser alto demais.

A palavra do ano em 2020

O ano mal começou, mas já podemos eleger a palavra do ano, aquela que terá sido a mais falada e escrita em 2020: coronavírus. Em segundo lugar, e perdendo por uma cabeça de distância, vem a sua sinônima Covid-19. Nas posições seguintes, teremos pandemia, quarentena, isolamento e contágio. Pelo menos, esse é o meu prognóstico.

Outra palavra que aposto será muito usada em 2020 é recessão, pois, passada a crise sanitária, certamente perdurará – e talvez se intensifique – a crise econômica global.

E já que estamos todos em quarentena e distanciamento social, um pouco de cultura inútil não faz mal a ninguém. Que o coronavírus tem esse nome pela sua semelhança física a uma coroa acho que todo mundo já sabe. Da mesma forma, os rotavírus assim se chamam porque se assemelham a uma roda. Mas de onde vem a palavra vírus? Assim como corona e rota, vem do latim, mais precisamente de vīrus, ī, substantivo neutro que, segundo o dicionário latino-português de Francisco Torrinha, significa “1. Suco das plantas. 2. Humor, esperma, veneno, peçonha (dos animais). 3. Veneno, peçonha (em geral). 4. Amargor; mau cheiro, fedor.”. Em fins do século XIX, o microbiologista holandês Martinus Beijerinck escolheu justamente esse nome para designar um agente infeccioso recém-descoberto distinto das já conhecidas bactérias.

E por que Covid-19? Trata-se de um acrônimo do termo inglês Coronavirus Disease acrescido da referência a 2019, ano em que foram registrados na China os primeiros casos da doença. Epidemias anteriores como a Sars e a Mers também têm seus nomes formados a partir de siglas do inglês: Sars é Serious Acute Respiratory Syndrome (síndrome respiratória aguda grave), e Mers é Middle East Respiratory Syndrome (síndrome respiratória do Oriente Médio).

Já a palavra quarentena vem da língua veneziana dos séculos XIV e XV e significa “quarenta dias”, período em que todos os navios deveriam ser isolados antes que passageiros e tripulantes pudessem desembarcar durante a epidemia da Peste Negra. Quarentena seguiu o trentino, período de isolamento de trinta dias, imposto pela primeira vez em 1377 em Ragusa, cidade dominada por Veneza.

Epidemia, do grego ἐπί (epí), “sobre” e δῆμος (dêmos), “povo”, refere-se à rápida disseminação de uma doença sobre uma população. Quando essa doença atinge um grande número de populações ou mesmo a humanidade inteira, temos a pandemia, do grego παν (pan), “todo(s)”.

Finalmente, isolamento deriva de isolar, do italiano isolare, “ilhar”, derivado de isola, “ilha”. Ou seja, isolar é manter sem contato do mesmo modo como uma ilha está isolada do continente pelas águas do mar. Mas, nestes tempos de isolamento social a que somos forçados a nos submeter, convém lembrar a máxima do poeta renascentista inglês John Donne de que “nenhum homem é uma ilha”. Ou seja, mesmo distantes fisicamente, precisamos estar juntos nessa batalha, cultivar a empatia e a solidariedade, pois ninguém é capaz de sobreviver sem a ajuda dos demais.

Boa quarentena a todos!