A ciência é apenas mais uma ideologia?

Tornou-se muito frequente nos últimos tempos a crítica, oriunda sobretudo de filósofos e cientistas sociais, de que a ciência é uma atividade tão ideológica quanto qualquer outra prática discursiva humana e que, portanto, a suposta neutralidade e imparcialidade da ciência, garantidas pelo chamado método científico, não passam de um mito. E mais: que esse mito estaria a serviço de certos interesses políticos e econômicos contrários aos valores de igualdade e justiça social, bem como aos direitos humanos. Noutras palavras, a ciência estaria a serviço de um projeto capitalista opressor e exploratório espertamente encoberto por um jargão incompreensível aos leigos, criado para passar a falsa impressão de isenção e assepsia.

Mais do que isso, argumenta-se que a ciência procura revestir-se de uma aura de infalibilidade e de certeza quando, na verdade, ela é apenas uma ideologia, no sentido de “crença que temos sobre a realidade, distinta da própria realidade”, como qualquer outra: como a política, a religião, o jornalismo, a arte, a publicidade… Mais além, alguns até empregam o termo ideologia aplicado à ciência em seu sentido marxista de “acobertamento proposital da realidade”.

Com o propósito de provar essa tese, invocam-se grandes pensadores do fazer científico, como Thomas Kuhn, Robert Merton, Karl Popper, Gaston Bachelard, Paul Feyerabend e outros, todos, com exceção de Kuhn, humanistas e não cientistas, portanto intelectuais que discutiram a ciência teoricamente, mas nunca a exerceram, logo nunca experimentaram na prática o que é fazer ciência.

Diante dessas críticas, convém primeiro esclarecer do que estamos falando. Desde o século XVII, convencionou-se que ciência é um conjunto de práticas de busca da verdade e de construção permanente do conhecimento por meio do raciocínio lógico, da razão e sobretudo do chamado método científico, ou método experimental, que consiste em formular hipóteses acerca de um fenômeno (natural ou social) e testá-las por meio da observação e experimentação (atenção aos meus grifos). Se a hipótese resiste ao teste da experiência, torna-se uma teoria e passa a ensejar novas hipóteses, igualmente sujeitas à testagem empírica. Logo, trata-se de um processo contínuo e infinito. Nele, por vezes teorias são modificadas ou simplesmente abandonadas quando os dados da experiência as contradizem. É o chamado mecanismo de autocorreção da ciência.

Mas a ciência é uma construção permanente do conhecimento, o que significa que, ao contrário das ideologias, que são conhecimentos prontos e imutáveis, o conhecimento científico está em permanente construção, como uma parede a que se acrescenta um tijolo de cada vez. E esse conhecimento é construído a partir do que é lógico, racional, do que faz sentido, do que é plausível e não de explicações mágicas, sobrenaturais ou de argumentos de autoridade e opiniões pessoais e idiossincráticas. A ciência opera com hipóteses e não com dogmas ou opiniões. A diferença é que uma hipótese é uma espécie de “verdade provisória” a ser testada e eventualmente descartada. Já dogmas e opiniões não estão sujeitos a testes e refutações: ou você aceita o dogma ou é excomungado; eu tenho uma opinião sobre algo e só abdico dela se quiser. E a maioria das pessoas carrega consigo suas opiniões e seus preconceitos até morrer.

Como resultado, a ciência é, em primeiro lugar, um processo de busca da verdade e não a própria Verdade. Diferentemente da religião, que sustenta verdades absolutas e inquestionáveis, embora nunca provadas nem comprováveis (e que não raro são desmentidas pela experiência prática), a ciência faz uma aproximação permanente da verdade sem jamais alcançá-la. Nunca saberemos tudo, mas sabemos cada vez mais. A prova de que o conhecimento científico, mesmo incompleto e imperfeito, funciona são as tecnologias que usamos no dia a dia, todas decorrentes da aplicação dos saberes produzidos pela ciência.

Embora ela seja um conhecimento aproximado, reducionista, conseguimos prever com absoluta precisão a que distância da Terra passará um meteoro e tomar as devidas providências para que ele não nos atinja. Quando o meteoro passa, constatamos aliviados que nossa previsão estava correta. Já ideologias e doutrinas fazem previsões que nunca se cumprem: quantas vezes profetas e religiosos previram o fim do mundo para determinada data, e, no entanto, ainda estamos aqui, vivos? A doutrina marxista, por exemplo, previu um regime político e um sistema econômico que produziriam sociedades absolutamente justas, igualitárias e felizes, e, entretanto, o que vemos é que todas as sociedades governadas por regimes marxistas são profundamente injustas, infelizes e cruéis.

Na verdade, a crítica que se faz à ciência deveria ser dirigida aos cientistas, que, como seres humanos, são falhos, portadores de fraquezas, emoções, desejos e vaidades, e, como tal, corrompíveis pelos valores do capitalismo e do mercado. Há uma grande diferença entre a ciência e os cientistas, assim como há entre a política e os políticos. Deveríamos então rejeitar a política só porque há políticos corruptos?

Leio numa postagem do filósofo brasileiro Gustavo Bertoche exatamente essa crítica. Ele diz:

Foi Rubem Alves quem, no livro “Filosofia da Ciência”, escreveu que “o cientista virou um mito” e que “todo mito é perigoso”. De fato: a idéia de um cientista puro e universal, ou melhor: de uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é mitológica. O ethos científico – que, como descrito por Merton, corresponde aos valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo organizado – é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. “Confiar na ciência” corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos políticos.

Nada mais verdadeiro. Mas observem que sua crítica se dirige aos cientistas — e nem todos são assim; na verdade, a maioria não é — e não à ciência, embora ele diga em outro trecho que

[a] ciência existe como um conceito abstrato relativamente indeterminado – como são os conceitos de “Ocidente”, de “religião”, de “povo” – que se ramifica em muitas regiões simbólicas. […] a idéia de uma posição unitária da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. “A ciência” não afirma nada; “a ciência” não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são “os cientistas”. E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da ciência. […] Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia… – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente.

O que parece um defeito da ciência, que retiraria sua credibilidade e a colocaria na posição de mera ideologia — ou, antes, de embate de ideologias conflitantes — é na verdade sua grande qualidade. Se não sabemos a verdade e, para tentar nos aproximar dela, precisamos formular hipóteses, é óbvio que diferentes hipóteses precisarão ser testadas. É óbvio também que há diferentes métodos de testar essas hipóteses. É daí que surgem os embates entre os cientistas, cada qual sustentando sua hipótese e defendendo sua corrente de pensamento até que um experimento (ou muitos) determine qual hipótese é válida é merece tornar-se uma teoria — lembrando que teorias também são constantemente testadas e que o papel do cientista não é tentar comprovar uma teoria e sim derrubá-la; logo, teorias são apenas hipóteses que passaram num primeiro teste. Por conseguinte, a controvérsia entre os pesquisadores, longe de revelar a fraqueza da ciência em chegar à verdade, é o que conduz a comunidade científica a aproximar-se cada vez mais dela.

Citando mais uma vez Bertoche, “[s]e um cientista torna-se um dogmático, então já abandonou o campo da ciência e posicionou-se no campo da ideologia”. Por sinal, é contra esse dogmatismo de certas alas da academia, especialmente na linguística, que eu venho me batendo. Sobretudo nas ciências sociais, ainda muito impregnadas pelo pensamento filosófico, em que a argumentação e a retórica valem mais do que os dados empíricos, há muita ideologia, muito dogmatismo e pouca cientificidade.

Mas o dogmatismo existe em todas as áreas científicas porque, mais uma vez, a ciência é feita por cientistas, que são humanos. Nesse sentido, há na academia pessoas que, em vez de impulsionar o avanço do conhecimento, representam um verdadeiro obstáculo a ele. Felizmente, elas cedo ou tarde acabam substituídas por outras, com novas ideias (ou talvez novos dogmas), e vida que segue.

Porém, o grande problema em equiparar ciência e ideologia sob o argumento de que “todo discurso é ideológico” ou de que “não há nada mais ideológico do que negar a ideologia”, palavras de ordem repetidas à exaustão na área de Ciências Humanas e de Humanidades, é pôr no mesmo balaio fatos e opiniões, dando a um preconceito o mesmo peso argumentativo de uma afirmação comprovada e comprovável. Nesta era da pós-verdade que estamos vivendo, instituiu-se que o que vale não é o que efetivamente é verdade e sim o que eu penso que seja verdade. Se acho que determinado termo tem conotação racista, então ele deve ser banido dos dicionários mesmo que todas as evidências etimológicas e semânticas comprovem que ele não tem nem nunca teve qualquer conexão com o conceito de raça, muito menos depreciativamente. Se a opinião vale tanto ou mais do que o fato e se o conhecimento científico é relativo e ideológico, então afirmações como a de que a Terra é redonda, de que vacinas previnem doenças ou de que a água ferve a 100 graus Celsius são meras crenças propagadas por cientistas com segundas intenções inconfessáveis e financiados por poderosas corporações que querem acabar com a humanidade. Está então aberto o caminho para as fake news, para os negacionistas, os terraplanistas, os antivacinistas, os criacionistas, os teóricos da conspiração e, pior, os fascistas, os supremacistas brancos e os terroristas de toda espécie.

Negacionismo científico e negacionismo político

Semanas atrás, recebi um comentário a um vídeo do meu canal do YouTube Planeta Língua intitulado “A palavra é… negacionismo”. Nesse vídeo, explico a origem e o significado da palavra, que se tornou tão corrente desde a eleição de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016. O comentário em questão afirmava que negacionismo é um termo pejorativo criado pela esquerda para depreciar, humilhar e intimidar a direita. Em outras palavras, o que o comentador do vídeo, indisfarçavelmente de direita, sustenta é que negacionismo não existe, trata-se de uma acusação vazia, o que implica que as posições que os supostos negacionistas defendem são legítimas.

Vamos então primeiramente falar sobre a origem do termo e do porquê de sua criação. A palavra negacionismo foi cunhada em francês (négationnisme) pelo historiador Henry Rousso em seu livro de 1987 A síndrome de Vichy, em que ele o aplica à atitude política de certos membros da direita francesa de negar a existência do Holocausto. Portanto, o termo negacionismo nasceu no âmbito da história e, por isso mesmo, é por vezes chamado de negacionismo histórico.

Na década de 1990, por ocasião dos debates sobre as mudanças climáticas, surgiram os negadores dessas mudanças, os chamados “ambientalistas céticos”. A partir daí, a comunidade científica, especialmente nos EUA, passou a empregar o termo negacionismo (em inglês negationism) em relação a esses céticos. Surgia o negacionismo científico.

Portanto, negacionismo é a postura de negar a realidade e, em especial, fatos cientificamente comprovados como forma de fugir de uma verdade incômoda.
É o triunfo da opinião sobre o fato. O negacionismo se distingue da simples negação porque rejeita uma tese mesmo que ela seja empiricamente comprovável e mesmo já esteja provada um sem-número de vezes. De certa forma, o negacionismo é primo-irmão das teorias conspiratórias. Os adeptos dessas teorias, chamados de conspiracionistas, sustentam que a comunidade científica internacional, denominada depreciativamente por eles mainstream científico, é fechada a novas ideias e rejeita sistematicamente teorias alternativas, como a de que a espécie humana é descendente de extraterrestres ou então teses criacionistas como o design inteligente, por exemplo. Na opinião desses conspiracionistas, a comunidade científica não seria nada mais do que uma máfia.

A questão é que o que eles chamam de mainstream é, na verdade, o conjunto majoritário de pesquisadores do mundo todo que baseiam seus conhecimentos no método científico, isto é, nos dados resultantes de experimentos nos quais uma hipótese é posta à prova e, se contradita pela experiência, é descartada. Essa comunidade de pesquisadores é responsável por estudos minuciosos, rigorosamente planejados e controlados, e sobretudo tão neutros e imparciais quanto possível, o que significa que nenhum resultado é privilegiado a priori, mas as teorias têm de se dobrar ante os fatos, e, se uma teoria entra em contradição com a realidade mostrada pelos resultados empíricos, errada está a teoria, não a realidade.

O ambiente científico é tão controlado que qualquer publicação séria tem de passar primeiro pelo crivo de pareceristas contratados pelo periódico ao qual o artigo é submetido, pareceristas estes de alta reputação científica, que fazem uma análise duplo-cego: nem o parecerista sabe o nome do autor do artigo nem vice-versa. Se aprovado e publicado, o artigo passa agora pelo crivo de toda a comunidade científica; o experimento ali descrito pode ser replicado por qualquer um, e os resultados obtidos devem ser os mesmos relatados no artigo. Se não forem, algo está errado. Logo, uma fraude científica cedo ou tarde é desmascarada. Este é o verdadeiro mainstream da ciência.

Por sinal, é a ele que devemos toda a evolução tecnológica do mundo atual, desde medicamentos para as mais diversas doenças até os modernos meios de transporte e comunicação, dentre tantas outras inovações. Ou seja, se as teorias científicas vigentes estivessem erradas e as “alternativas” é que fossem corretas, certamente ainda estaríamos na Idade Média. O grande problema dessas teorias alternativas, que, a rigor, nem teorias são, mas meras hipóteses, é que elas não têm suporte em dados empíricos, o que equivale a dizer que elas não apresentam provas de sua veracidade, são meros argumentos que podem convencer os mais ingênuos, mas não resistem a um teste mais rigoroso.

Em resumo, ao contrário do que afirma o comentador do meu vídeo, negacionismo não é uma pecha injusta criada pela esquerda política para depreciar direitistas, é uma acusação feita pelas pessoas de bom senso, que aceitam verdades sobejamente provadas, contra as que não as aceitam. O negacionismo é, pois, uma vertente do obscurantismo.

Mas o negacionismo não existe só na ciência, como na história (negação do Holocausto), na biologia (negação da evolução das espécies), na ecologia (negação do aquecimento global) ou na medicina (negação das vacinas); ele existe também na política. A atitude de negar os resultados de pesquisas eleitorais feitas por institutos sérios, com metodologia científica, apenas porque o candidato de sua preferência não está na liderança dessas pesquisas ou, pior, negar o resultado de eleições limpas e seguras, altamente monitoradas até por organismos internacionais, alegando fraude, jamais comprovada, apenas porque seu candidato não venceu, é uma forma de negacionismo político. Por conseguinte, o negacionismo político anda de mãos dadas com o golpismo. Aliás, todos os golpistas partem de uma mentira que eles sustentam como verdade para justificar seu golpe. A alegação de Putin de que o governo ucraniano é neonazista serviu de justificativa para a invasão da Ucrânia. Desde então, o governo russo nega verdades amplamente documentadas pela imprensa como a de que os mísseis russos miram alvos civis ao mesmo tempo que sustenta inverdades como a de que não há uma guerra e sim uma operação militar especial, o que quer que isso signifique.

*-*-*

Antes que algum bolsonarista me acuse de ser esquerdista, comunista ou “mortadela”, quero esclarecer que sou politicamente de centro e no primeiro turno não votei nem em Lula nem em Bolsonaro. Logo, minhas considerações não têm nenhum caráter sectário ou ideológico, mas são na verdade a mera constatação de uma patologia social de nosso tempo chamada extremismo.