Desinfectar é o mesmo que desinfetar?

Quando pensamos que já sabemos tudo sobre a língua, ela nos prega peças, criando nuances de expressão ou de sentido surpreendentes. É o que tem acontecido nestas últimas semanas, diante da pandemia do novo coronavírus. A imprensa tem repetidamente falado sobre as medidas de descontaminação de ambientes como hospitais, aeroportos, trens, metrô, ônibus e demais locais de circulação pública, afirmando que estão sendo devidamente desinfectados. É perfeitamente compreensível que, se o vírus infecta lugares, objetos e pessoas, o inverso desse processo se designa apondo o prefixo des- ao verbo infectar, o que produz desinfectar. O problema é que já dispomos do verbo desinfetar, antônimo de infectar (que também admite a forma infetar).

Resulta daí que desinfetar e desinfectar passaram a ser coisas diferentes: desinfetamos uma torneira, pia, ralo ou objeto (tesoura, alicate, talher) com água e sabão ou com um desinfetante desses que se compram no supermercado; já o ambiente hospitalar contaminado por vírus e bactérias de grande letalidade e alto poder de contágio é desinfectado com procedimentos que envolvem o uso de roupas, equipamentos e produtos especiais, obedecendo a normas rígidas e protocolos internacionais.

Ou seja: se o emprego de desinfectar for chancelado pelas gramáticas e abonado pelos dicionários, o verbo infectar terá dois antônimos, e estes não serão sinônimos entre si (algo como a palavra humano, que, dependendo da acepção, admite os antônimos inumano e desumano).

Só que a coisa não é tão simples assim. Tradicionalmente, o encontro consonantal ct recebe dois tratamentos em português quando se trata do empréstimo de palavras latinas por via culta: ou mantém-se intacto, como em detectar e octógono, ou simplifica-se para t, como em contato, ator e fato (do latim contactus, actor e factus). Em português brasileiro, esse grupo consonântico se grafa como se pronuncia. Por isso, dizemos e escrevemos infectar mas desinfetar. Em português lusitano, a letra c se mantinha, até o Acordo Ortográfico de 2009, mesmo quando era muda; daí que em Portugal se grafava contacto e actor e ainda se grafa facto, uma vez que neste último caso o c nunca deixou de ser pronunciado.

Em face dessa divergência ortográfica que o Acordo visou minimizar, nós brasileiros grafamos infectar mas desinfetar, ao passo que os portugueses grafavam infectar e desinfectar e hoje grafam infetar e desinfetar. Portanto, o neologismo brasileiro desinfectar não faz nenhum sentido em Portugal, isto é, provavelmente é só a imprensa brasileira que está fazendo distinção entre as ações de desinfetar e desinfectar. Somente o tempo dirá se essa nova forma vingará ou não. Afinal, para a maioria dos brasileiros e a totalidade dos portugueses, pouco importa se estamos eliminando vírus letais ou meros germes de banheiro: o verbo desinfetar já dá conta de ambos os sentidos.