A doença de Bruce Willis

Esta semana foi revelado que o ator americano Bruce Willis teve de se aposentar das telas por causa de uma doença que afeta sua capacidade de falar chamada afasia. Trata-se de uma condição neurológica causada por lesão no cérebro que pode ser devida a acidente, derrame, tumor ou processo degenerativo. Parece que o caso do ator é este último. Outra celebridade que também sofre dessa patologia é o ex-locutor esportivo Osmar Santos, que perdeu a faculdade da fala após um acidente automobilístico que lesou a região de seu cérebro responsável pela linguagem, a chamada área de Broca.

A afasia é uma velha conhecida dos linguistas. É graças ao estudo de pacientes com essa doença que uma área da linguística chamada psicolinguística conseguiu, juntamente com a neurociência, descobrir como o cérebro humano processa a linguagem. Hoje já se sabe que a aptidão linguística está ligada à atividade do hemisfério esquerdo do cérebro, onde se localiza a supracitada área de Broca, que tem esse nome por ter sido descoberta no século XIX pelo médico francês Paul Broca.

A área de Broca localiza-se no giro frontal inferior e, juntamente com a área de Wernicke, descoberta pelo neurologista alemão Carl Wernicke, é responsável pela decodificação das mensagens faladas ou escritas em termos fonológicos, léxicos e sintáticos e pela codificação das respostas motoras (isto é, da fala) a essas mensagens.

Os afásicos geralmente compreendem perfeitamente o que lhes é dito, mas têm dificuldade ou mesmo impossibilidade de formular enunciados. Certos tipos de afasia afetam apenas algumas faculdades linguísticas, como o vocabulário ou então a sintaxe. Por exemplo, certos pacientes, quando lhes é mostrada a figura de um rato, dizem: “Eu sei que animal é, é um bicho extremamente nojento, mas não consigo dizer o nome dele”. Outros dominam as palavras, mas não conseguem formar frases; suas emissões limitam-se a duas ou três palavras encadeadas, como “eu quero” ou “muito obrigado”. Há ainda aqueles que só emitem sílabas. O doutor Broca descobriu a função linguística da área cerebral que leva seu nome justamente ao autopsiar um paciente que só conseguia pronunciar tan.

Os avanços da neurociência têm demonstrado que os vários níveis da estruturação linguística – fonético-fonologica, morfológica, sintática, semântica – são comandados por diferentes módulos cerebrais. Isso explica por que, dependendo do tipo e da localização da lesão, o resultado em termos de déficit linguístico é diferente. Por conseguinte, há inúmeros tipos de afasia reconhecidos pela medicina. Dependendo do tipo, pode haver (ou não) uma estratégia específica de tratamento para minorar os prejuízos causados por essa deficiência. Em certos casos, estimula-se o córtex cerebral direito a fim de que desenvolva supletivamente e de forma compensatória as habilidades linguísticas perdidas pelo esquerdo.

A psicolinguística é um campo fértil de investigações científicas, e suas constantes interações com a neurociência a tornam uma área de fronteira onde se desenvolvem pesquisas de ponta sobre a linguagem e sobre o cérebro humano.

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Em tempo: quero aqui prestar minha homenagem à imortal Lygia Fagundes Teles, que faleceu ontem aos 98 anos. Viveu muito e viveu bem; escreveu muito e escreveu maravilhosamente bem!

O bom e o melhor

Estamos o tempo todo comparando coisas mentalmente, por uma aptidão estatística inata

As gramáticas afirmam que os adjetivos e os advérbios de modo possuem dois graus: comparativo e superlativo. A primeira coisa que precisa ser dita a respeito disso é que os graus do adjetivo e do advérbio na verdade são três: o grau “zero”, normal ou neutro (Este livro é bom. Ele escreve bem.), o comparativo (Este livro é melhor do que aquele. Ele escreve melhor do que eu.) e o superlativo (Este é o melhor livro que já li. Ele escreve o melhor que consegue.). Não se deve esquecer também que o comparativo pode ser de igualdade (tão bom quanto), de superioridade (melhor do que) ou de inferioridade (menos bom do que), e o superlativo pode ser absoluto (ótimo, muito bom) ou relativo (o melhor).

Em português, só os adjetivos grande, pequeno, bom e mau e os advérbios bem e mal admitem formas comparativas sintéticas, herdadas do latim: maior, menor, melhor e pior. Os demais adjetivos e advérbios formam o comparativo e o superlativo de forma analítica: mais rico, mais facilmente, etc.

Primitivos e derivados

Porém, se considerarmos muito (Ele tem muito dinheiro. Ele trabalha muito.) e pouco (Ele tem pouco dinheiro. Ele trabalha pouco.) como adjetivos ou advérbios – as gramáticas os classificam como pronomes indefinidos –, então teremos mais dois comparativos sintéticos em português: mais e menos (Ele tem mais dinheiro do que eu. Ele trabalha menos do que seu irmão.).

Segundo as gramáticas, bom, mau, grande, pequeno, muito e pouco são adjetivos primitivos, enquanto melhor, pior, maior, menor, mais e menos são derivados, senão etimologicamente, ao menos semanticamente. Afinal, melhor é literalmente “mais bom”, maior é “mais grande” (em Portugal, não é proibido usar mais grande e mais pequeno no lugar de maior e menor).

De acordo com certos princípios lógicos e com o bom senso, isso implica que é preciso primeiro saber o significado de “bom” para compreender o significado de “melhor”, não é?

Pois experiências conduzidas por linguistas e neurocientistas têm demonstrado que, para a cognição humana, bom, mau, grande, pequeno, etc., são conceitos subjetivos e relativos, ao passo que melhor, pior, maior, menor são objetivos e absolutos. Para definir o que é grande ou pequeno, é preciso primeiro ter uma noção do que seja maior e menor. Parece absurdo? Nem tanto.

Os experimentos, realizados com crianças e adultos de variados graus de escolaridade e pertencentes às mais diversas culturas – de universitários suecos a aborígines australianos –, mostram que a noção de comparação é universal: dados dois objetos de mesma natureza (por exemplo, duas pedras) e tamanhos diferentes, em 100% dos casos os informantes determinam com precisão qual é o maior ou o menor. No superlativo, a comparação se dá entre três ou mais objetos. A estratégia nesse caso é comparar os objetos dois a dois para determinar qual é o maior (ou o menor). Ou seja, o superlativo é um comparativo entre um objeto e um conjunto de outros objetos (“Paulinho é o melhor aluno da classe” equivale a “Paulinho é melhor do que qualquer outro aluno da classe”).

formiga-e-elefante

Referencial

Mas esses experimentos mostram que as noções de grande e pequeno dependem de referencial. (É evidente, o mesmo se aplica aos conceitos de bom e mau, novo e velho, etc.) A formiga é grande ou pequena? O elefante é grande ou pequeno? Se comparada a um átomo, uma formiga é gigantesca. Já o elefante, em relação ao Sol, parecerá minúsculo.

Então, como sabemos se algo ou alguém é grande ou pequeno, bom ou ruim, novo ou velho, rico ou pobre…? Na verdade, o que essas experiências indicam é que todo ser humano possui uma espécie de aptidão estatística inata, capacidade intuitiva de estabelecer médias ou padrões. Na prática, estamos o tempo todo comparando coisas mentalmente. Por isso, quando digo que uma formiga é pequena e um elefante é grande, provavelmente estou tomando como padrão de medida o meu próprio tamanho. Nesse caso, dizer que a formiga é pequena equivale a dizer que ela é menor do que eu – ou os humanos em geral. Em resumo, grande significa “maior do que o normal, a média, o esperado”.

Da mesma forma, quando se diz que fulano é rico, o que está implícito é que ele tem mais dinheiro do que a maioria. O surpreendente aí é que, sem nos darmos conta, estamos o tempo todo estabelecendo médias e comparando os fatos da realidade a essas médias. A prova foi muito difícil? É porque ela deve ter sido mais difícil do que a média que eu estabeleci (a maioria das provas que já fiz). Não é à toa que o que é difícil para uns é fácil para outros. Noções como “bem” e “mal” são relativas. Por isso, a própria ética é uma mera convenção social e não uma ciência. Afinal, não se pode determinar objetivamente o que seja bom ou mau; o que os filósofos, legisladores e líderes religiosos fazem é estabelecer um padrão com base numa média de comportamentos. Por exemplo, se todos cometerem assassinato, a sociedade se autodestrói. A convivência pacífica é melhor do que o crime, o que a leva a ser tomada como padrão. O homicídio então é considerado um desvio da norma.

Essa ideia de norma – e de “normal” – existe em todos os povos, até entre os que desconhecem a matemática e não contam além de três, como os ágrafos. Isso parece indicar que, em algum lugar de nosso cérebro, operamos um cálculo intuitivo em que atribuímos valores quantitativos até a conceitos qualitativos como “bom” e “mau”. Nosso julgamento da realidade se processa como uma equação em que somamos esses valores e os dividimos pelo total para obter médias. É claro, isso se dá por estimativa: para afirmar que fulano é rico não preciso somar a renda anual de todos os brasileiros e dividir pelo número total de habitantes. Mesmo sem conhecer a exata renda média do brasileiro, sabemos intuitivamente se um indivíduo em particular está acima ou abaixo desse padrão.

Padrões diferentes

O problema é que sociedades diferentes adotam padrões distintos para tudo: o que é belo num lugar e período pode ser feio em outro; os gostos variam, as opiniões e crenças, idem. O grau de pontualidade de cada povo depende da conceituação subjetiva e cultural do que seja “cedo” ou “tarde”. Comer saúva frita causa repulsa em muitos lugares, mas para os chineses se trata de iguaria afrodisíaca.

Embora nem mesmo as concepções de bem e mal sejam universais, a convicção de que existe um Bem e um Mal absolutos tem levado à intolerância, ao preconceito, a conflitos religiosos e perseguições ideológicas de todo tipo.

Expressões como menos ruim – que é diferente de melhor – indicam que, ao comparar duas coisas, a primeira é melhor que a segunda (ou a segunda é pior que a primeira, tanto faz), mas ambas estão abaixo da média, portanto ambas são ruins. Já a expressão melhor indica que ao menos uma é boa, está na média ou acima dela em termos de qualidade.

A descoberta de que, em matéria de comparativos, o primitivo é derivado e vice-versa traz uma série de implicações ao estudo do funcionamento do cérebro humano e ao da língua. E mostra que a gramática nem sempre – quase nunca – é codificada segundo princípios científicos.