O que significam no Brasil as palavras “negro” e “pardo”?

Esta semana foi agitada pela polêmica de alguns estudantes barrados pelo sistema de admissão por cotas raciais às universidades brasileiras mesmo tendo-se declarado pardos porque, segundo os critérios da banca examinadora, eles não teriam um fenótipo, isto é, aparência física, típico de descendentes de africanos e por isso não estariam sujeitos ao preconceito racial.

Em primeiro lugar, no meu humilde entendimento, a política afirmativa de cotas raciais nas universidades públicas e também em algumas privadas visa a incluir no espectro universitário uma parcela considerável, se não majoritária, da nossa população que se encontra sub-representada no ambiente acadêmico. Visa sobretudo a incluir pessoas que não teriam condições de frequentar uma faculdade se tivessem de disputar vagas com estudantes mais bem preparados, em geral brancos de classe média a alta, egressos de bons colégios particulares.

No entanto, diferentemente do que ocorre nos EUA, por exemplo, em que vale o critério da ancestralidade (basta ter antepassados negros para ser considerado negro), no Brasil, em que sempre houve muita miscigenação, adotou-se o critério da autodeclaração: se o indivíduo se declara negro, ele é negro. O problema é que começaram a acontecer fraudes, com candidatos brancos autodeclarando-se pardos para entrar na universidade com mais facilidade. Para evitar isso, certas universidades, como a USP, instituíram uma comissão de heteroidentificação que avalia, caso a caso, se o postulante é de fato negro/pardo ou não. Só que esse julgamento é às vezes extremamente subjetivo: um indivíduo de pele clara e cabelos lisos que tenha apenas nariz e boca ligeiramente de formato africano é branco ou pardo? Ele pode até ser considerado pardo em São Paulo e branco na Bahia. Esse imbróglio não raro acaba na barra dos tribunais, como aconteceu esta semana nos casos supracitados.

A alegação das universidades é que os candidatos reclamantes, embora fenotipicamente pardos, não são “lidos” pela sociedade como negros, logo não estariam sujeitos à discriminação racial e por isso não precisariam das cotas para ingressar na universidade.

O problema todo decorre de duas interpretações equivocadas que fazem as bancas de heteroidentificação das universidades: a interpretação do espírito da política de cotas e a interpretação do significado dos termos negro e pardo.

Comecemos pela primeira. Se, como eu disse acima, a intenção original do sistema de admissão por cotas raciais é incluir negros nas universidades a partir da constatação de que, por serem em sua maioria pobres e, por conseguinte, sem acesso a educação de qualidade, eles têm pouca chance de entrar pelo critério do mérito acadêmico, o que deveria nortear a seleção por cotas é o critério socioeconômico e não simplesmente o racial. O mais justo (supondo-se que haja alguma justiça em facilitar a entrada no curso superior de estudantes academicamente menos preparados apenas porque são negros ou estudaram em escola pública) seria contemplar alunos de baixa renda, não importa de que cor ou raça sejam, porque, além de não terem condições financeiras de cursar uma faculdade privada, os negros seriam automaticamente incluídos, visto que a maior parte dos pobres é negra, e vice-versa.

A meu ver, a razão de ser da política de cotas é fazer justiça social, dando acesso ao ensino superior àqueles que não o teriam por outros meios, e não privilegiar somente aqueles que estão sujeitos ao racismo, até porque o vestibular tradicional não tem nada de racista: ele avalia a capacidade intelectual do candidato e não a cor da sua pele, que os avaliadores por sinal desconhecem. Assim, o que deveria importar numa avaliação pela banca de heteroidentificação é se o indivíduo pertence ou não a uma classe social que dispõe de menos recursos para estudar, mesmo porque dar a negros diploma de nível superior, ainda mais pelo sistema discriminatório das cotas, não vai reduzir o racismo a que eles estarão sujeitos no mercado de trabalho e na vida em geral — talvez até o acentue.

O segundo ponto é a interpretação confusa que se faz no Brasil dos termos negro e pardo, inclusive pelo IBGE, que deveria definir com mais clareza essas categorias ao recensear a população, proporcionando assim um retrato mais apurado da realidade étnica do nosso país.

Historicamente — embora a noção de raça venha sendo questionada tanto por estudos genéticos quanto sociológicos e antropológicos —, consideram-se como raças humanas a branca, a preta, a amarela ou oriental e a índia, outrora também chamada de “raça vermelha”. Os demais tipos seriam o resultado do cruzamento dessas raças.

Pois, segundo o IBGE, negros são a soma dos pretos e dos pardos. Pretos são os afrodescendentes puros, sem mistura ou miscigenação com outras raças. Pardos são os mestiços em geral, e aqui começa o problema. No Brasil, temos mulatos, isto é, mestiços de branco e preto, caboclos ou mamelucos (mestiços de branco e índio), cafuzos (preto com índio) e ainda os mestiços de branco e amarelo, de preto e amarelo, de índio e amarelo, além, é claro, dos mestiços de todos os anteriores. Para o IBGE, são todos pardos e, portanto, negros. Decorre dessa definição que Lula e Flávio Dino são respectivamente o primeiro presidente e o primeiro ministro do STF negros do Brasil, já que este último é visivelmente caboclo, e o primeiro, nordestino do sertão, traz em si a mistura de todos os povos que habitaram o Nordeste nos últimos 500 anos, mesmo que sua pele seja branca. Isso faz algum sentido?

Além disso, as palavras preto e negro são muitas vezes empregadas pela população em geral e até pela imprensa como sinônimas. Desse modo, tanto o preto retinto, sem mistura (coisa relativamente rara de se encontrar no Brasil) quanto o mulato escuro e o cafuzo são chamados de negros. Já o mulato claro, assim como o caboclo, em geral passam por brancos, especialmente porque a população legitimamente branca, cem por cento descendente de europeus, de árabes ou de judeus, é consideravelmente pequena no Brasil.

Quem está mais exposto ao racismo são evidentemente os pretos, os mulatos de pele escura e os cafuzos, em geral também escuros, especialmente os mais pobres. Somente estes deveriam ser chamados de negros. Ao mesmo tempo, deveríamos abolir a expressão pardo, que nada significa objetivamente, até porque não há 50 tons de marrom em que possamos classificar os seres humanos. Sem falar no constrangimento em si que é ter sua aparência física avaliada por uma comissão julgadora para ter direito a cursar uma universidade.

Quais vidas importam: as pretas ou as negras?

O assassinato do cidadão afro-americano George Floyd por um policial branco em Minneapolis, EUA, há cerca de duas semanas não só detonou um movimento mundial contra o racismo como também suscitou uma dúvida linguística. É que esse movimento antirracista tem como palavra de ordem a frase black lives matter, que aqui no Brasil tem sido majoritariamente traduzida como “vidas negras importam”. Entretanto, alguns jornalistas e outras personalidades formadoras de opinião apresentaram aqui e ali a tradução alternativa “vidas pretas importam”. E aí, qual é a tradução mais correta?

Para responder, precisamos entender o significado das palavras “preto” e “negro” em português, bem como de “black” em inglês.

Primeiramente, é preciso dizer que, das línguas europeias mais difundidas, só o português tem duas palavras, “preto” e “negro”, para designar a cor mais escura da gama cromática. E isso causa certo embaraço aos estrangeiros que aprendem português, bem como às crianças pequenas, que também estão começando a familiarizar-se com as sutilezas do idioma. Tanto que não é raro criancinhas dizerem “lápis negro” ou “blusa negra” e estrangeiros, “Mar Preto” ou “lista preta”.

Até o despertar da consciência negra, primeiro nos EUA com o movimento pelos direitos civis da década de 1960, depois também no Brasil, o termo mais usado para designar a raça oriunda da África era “preto”. Por exemplo, a santa padroeira dos escravos no período colonial era Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Em Portugal, os negros são chamados até hoje de pretos.

Já o IBGE (confira, por exemplo, www.diferenca.com/preto-pardo-e-negro) divide nossa população em cinco grupos étnicos, ou “raças”: branco, preto, pardo, amarelo (ou oriental) e indígena (ou índio). Trata-se de uma simplificação grosseira, mas necessária em virtude do tratamento estatístico por que passam os dados. Por exemplo, tanto o mestiço de branco e preto quanto o de branco e índio são considerados pardos (no senso comum, muitos dos chamados mamelucos ou caboclos são vistos como brancos). E onde fica o mestiço de branco e amarelo? Embora raras, essas pessoas teriam de enquadrar-se como brancas ou como amarelas, dependendo de quão puxados são seus olhos.

Mas o cerne da questão aqui é: “preto” ou “negro”, o que é melhor usar. Ou, dito de outro modo, qual das duas denominações é politicamente correta. Aqui surgem os mal-entendidos. No Brasil de hoje, “preto” em relação à cor da pele é considerado depreciativo; o politicamente correto recomenda dizer “negro”. Só que, para o IBGE, “negro” inclui “preto” e “pardo”, ou seja, é a soma de ambos os grupos. Numa simplificação bem reducionista, poderíamos dizer que negros são todos os afrodescendentes, sejam eles pretos puros (sem mistura) ou mestiços. Só que, como vimos, os pardos incluem mulatos (mestiços de branco e preto), cafuzos (preto e índio), caboclos (branco e índio) e ainda os mestiços de branco, preto e índio, cuja designação étnica no vernáculo este cronista desconhece.

Por outro lado, nos EUA, onde o racismo sempre foi mais declarado que no Brasil, o termo usual é black, ou seja “preto”, pois negro (pronunciado “nígrou”) é altamente ofensivo, significando algo como “negão”. Há ainda uma palavra mais injuriosa em inglês: nigger, corruptela de negro.

É interessante que, com exceção do espanhol, que só conhece a palavra negro tanto para cor quanto para raça, as demais línguas têm, como o português, duas palavras. Em francês, noir e nègre; em italiano, nero e negro; em alemão, schwarz e Neger; e assim por diante. A segunda de cada uma dessas designações é exclusiva de raça.

Portanto, no lema “black lives matter”, quais vidas importam: as pretas ou as negras (pelo critério do IBGE, bem entendido)? Penso que o racismo atinge não só os pretos puros e retintos, mas também os pardos, especialmente os mais escuros (há até a teoria do colorismo ou pigmentocracia, segundo a qual, quanto mais melanina, mais preconceito).

Nos EUA, não há meio-termo: quem não é branco puro, especialmente de origem anglo-saxônica, é black. Portanto, a melhor tradução em português é “vidas negras importam”, até porque o português brasileiro tem diversos termos eufemísticos (“moreno”, “moreninho”, “escurinho”, “de cor”, “queimado de sol”, “da cor do pecado”, etc.) que buscam pôr no mesmo balaio todos os afrodescendentes, tanto os puros quanto os mestiços.

Campanha da Rede Globo contra o racismo peca por ignorância

Por ocasião dos 132 anos da abolição da escravatura no Brasil, a Rede Globo acaba de lançar uma campanha contra expressões verbais consideradas racistas por conterem as palavras “negro” ou “preto” (ou suas flexões de gênero e número). O comercial consiste em omitir a palavra em questão em expressões consagradas na língua portuguesa – e que têm equivalentes em outras línguas –, substituindo-a por uma lacuna (o famoso underline, para quem é da geração digital). Temos então: a coisa está _____, não sou tuas _____, serviço de _____, ovelha _____, mercado _____, lista _____, e por aí vai. O problema é que boa parte dessas expressões não tem nenhuma relação com a raça negra, portanto não tem nada de racista.

Se, de fato, serviço de preto significa “serviço malfeito” porque feito por negros (na época da origem da expressão, escravos), e não sou tuas negas se refere às negras com quem o senhor de escravos se deitava, as demais expressões remetem ao negro como cor e não como raça.

Desde tempos imemoriais, o homem teme a escuridão – e na época das cavernas muito mais do que hoje –, afinal à noite o risco de ser atacado por predadores ou inimigos era muito maior. Da mesma forma, uma caverna escura poderia conter ameaças, desde um buraco até uma fera. Não por outra razão, o negro foi escolhido como a cor do luto, já que a escuridão evoca a tristeza e o medo do desconhecido. Evoca sobretudo o maior de nossos medos: a morte. Daí deriva também o uso da cor negra como símbolo de tudo que é negativo, nefasto e fora do padrão, assim como o branco sempre foi associado à pureza e à virtude. Se todas as ovelhas são brancas, o indivíduo que destoa de seu grupo só poderia ser uma ovelha negra – ovelhas azuis ou amarelas não surtiriam o mesmo efeito de contraste. A lista negra é a que contém os nomes dos indesejáveis, dos que não merecem confiança porque são impuros no caráter. O mercado negro é o comércio ilegal, clandestino, que opera às escuras, sem ser visto pela lei. “A coisa está preta” é mera alusão às nuvens negras anunciando tempestade, e assim por diante.

A maior parte dessas expressões nasceu na Antiguidade ou na Europa medieval, num tempo portanto muito anterior à escravidão negra na América e ao preconceito racial dela decorrente, num tempo em que os europeus praticamente não tinham nenhum contato com os africanos.

O que se passa é que a ideologia do politicamente correto promove uma caça às bruxas, tentando encontrar culpados a todo custo e criminalizando palavras e expressões que, em sua origem, não tinham nada de preconceituoso. Querendo combater o fascismo da sociedade, é o politicamente correto que se torna fascista, censurando qualquer um que não se comporte ou fale segundo sua cartilha. A seguir essa lógica, logo estaremos proibidos de escrever com caneta preta, e as mulheres não poderão mais usar vestido pretinho básico.

A intenção da Globo foi boa, mas de boas intenções o inferno está cheio. Nota zero para essa campanha, que demonstra ignorância da origem das expressões que condena!

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Acho que já contei essa história aqui, mas, em todo caso, vale repeti-la. Certa vez, eu estava dando aula enquanto um temporal medonho se avizinhava lá fora, com enormes nuvens negras, raios e trovões dignos de filme de terror. Olhei pela janela e disse aos alunos: “Pessoal, a coisa lá fora tá preta”. Nisso, uma aluna negra me interpelou dizendo que eu não deveria usar essa expressão, que eu deveria demonstrar mais respeito pelo holocausto africano, etc. etc. (Sim, meus amigos, em seu longo sermão ela usou o termo “holocausto” em relação à escravidão). Um tanto perplexo, eu não perdi a pose e voltei à janela, olhei para fora novamente e remendei: “Pessoal, me desculpem, eu quis dizer que a coisa lá fora está afrodescendente”.