As nuances da verdade

Algumas línguas apresentam mais nuances semânticas a respeito de certos conceitos do que outras. Já se disse que a língua inuíte, dos esquimós do Alasca, tem mais palavras para neve do que o português porque, para um povo que vive no gelo, essa distinção é fundamental; já para quem vive nos trópicos como nós, é irrelevante.

Se em português há uma diferença sutil entre ter razão e dizer a verdade, e uma diferença gritante entre estar errado e mentir, em algumas línguas da Polinésia se usam as mesmas expressões para ambos os sentidos.

Para nós, razão ou equívoco são julgamentos a respeito de uma opinião (portanto de uma crença sobre a realidade). Já verdade e mentira são julgamentos sobre a postura de alguém perante um fato. No primeiro caso, o erro ou acerto decorre do grau de conhecimento (ou de ignorância) do sujeito sobre a realidade; no segundo, verdade e falsidade decorrem de uma intencionalidade (sinceridade ou malícia) do falante. Por isso, dizer a uma pessoa que ela está equivocada é menos ofensivo do que acusá-la de estar mentindo. Ao mesmo tempo, dar razão a alguém é solidarizar-se com sua convicção, não necessariamente legitimá-la como quem prova uma tese.

Ao transformar os esquemas mentais em sentenças lógicas, a semiótica cognitiva tem contribuído para aclarar questões como essa. Se digo que o sujeito S1 está dizendo a verdade (ou mentindo) sobre um fato F, pressuponho primeiro que existe uma verdade objetiva a respeito de F e que S1 conhece essa verdade. Então se S1 diz F a um sujeito S2 (isto é, faz S2 saber F), ele diz a verdade; se diz o contrário, está mentindo.

Em termos lógicos:

  • F é um fato real objetivo: F(+real);
  • S1 sabe disso: S1 saber F(+real);
  • S1 afirma F(+real) a S2 (portanto diz a verdade): S1 fazer S2 saber F(+real);
  • S1 afirma F(–real) a S2 (portanto mente): S1 fazer S2 saber F(–real).

Por outro lado, se F é verdade e S1 não tem certeza disso, mas apenas uma convicção, então o esquema lógico é o seguinte:

  • S1 é de opinião que F(+real): S1 crer F(+real);
  • S2 sabe ou acredita que F(+real): S2 saber/crer F(+real);
  • S1 afirma F(+real) a S2 (portanto S2 lhe dá razão): S1 fazer S2 saber F(+real);

ou:

  • S1 é de opinião que F(–real): S1 crer F(–real);
  • S2 sabe ou acredita que F(+real): S2 saber/crer F(+real);
  • S1 afirma F(–real) a S2 (portanto S2 o julga equivocado): S1 fazer S2 saber F(–real).

Muito complexo? Deu nó na cabeça? De fato, não vou dizer que é totalmente simples. Mas esse tipo de álgebra cognitiva, embora pareça complicada aos não iniciados, descortina o que, em seu nível mais profundo, um enunciado significa. A questão é que cada língua, ao transformar essa descrição lógica hiperprofunda (isto é, em nível de raciocínio) da realidade em enunciados linguísticos de superfície (em nível de discurso), filtra uma série de informações. No exemplo aqui citado, as línguas polinésias se atêm mais à congruência entre o que é dito e o que é real do que à intencionalidade do falante. Para nós, talvez a intenção de quem fala seja mais relevante do que a veracidade ou não do conteúdo de sua fala. Essas diferentes nuances de significado revelam muito da cultura de cada povo, de seus valores e do modo como as pessoas se relacionam. Nos tempos atuais, em que a opinião vale mais do que a verdade, seria bom que todos entendessem a lógica por trás dos discursos.

As bases da educação

O Brasil tem finalmente uma base comum curricular nacional, que garante igualdade de conteúdo a todos os estudantes, em todas as escolas. Também tem um novo currículo para o ensino médio, mais flexível do que os anteriores, portanto mais afinado com as demandas da realidade atual. No entanto, além de a qualidade do ensino no Brasil continuar péssima, principalmente na escola pública, não fica muito claro a que interesses ele serve – ou tenta servir.

A indústria, por exemplo, pleiteia por meio de suas federações um ensino focado em competências, já que hoje os jovens entram totalmente despreparados no mercado de trabalho. Entretanto, competência é diferente de conhecimento, e uma educação centrada nela na verdade forma apertadores de botões e não cabeças pensantes. Certamente porque, na visão dos empresários, um trabalhador não precisa ser mais do que um autômato sofisticado, que até pode e deve tomar certas decisões, desde que restritas ao escopo de sua tarefa. Em outras palavras, o operário deve ser intelectualmente superior a uma máquina, mas não precisa ser – e é melhor que não seja – um cidadão.

Mas será que a escola serve apenas para formar mão de obra? Será que o ensino, especialmente o público, deve estar somente a serviço do mercado de trabalho? Eu particularmente penso que não, até porque a formação de profissionais deve estar a cargo do ensino profissionalizante, seja ele de nível médio ou superior. O ensino básico, e dentro dele mais especificamente o ensino fundamental, deve estar voltado antes de mais nada à formação de cidadãos. Não acho que seja dever da escola transmitir aos estudantes noções que eles deveriam aprender em casa, como civilidade, boas maneiras e respeito ao próximo, e nesse sentido acho que a escola pública, justamente por não ser um comércio como é a privada, tem o direito de ser coercitiva com pais de alunos que abdicam do dever de educar seus filhos. Como bem diz o educador e filósofo Mário Sérgio Cortella, à escola cabe escolarizar, o dever de educar é da família.

Por isso mesmo, acho que se perde muito tempo com disciplinas como educação sexual, ideologia de gênero e educação para o trânsito, e com isso se desobriga as famílias de tratar esses temas com as crianças e adolescentes. (Aqui um parêntese: é claro que eu não ignoro que na escola pública há muitos filhos de famílias desestruturadas, incapazes de educá-los adequadamente, mas não seria justamente tarefa da educação contribuir, junto a outros órgãos públicos, para o combate a esse problema?) Enquanto a escola pública dá peixes em vez de ensinar a pescar, aquilo que eu considero realmente o objetivo principal da escola, a transmissão de conhecimento e a formação do senso crítico, acaba se perdendo.

Mas então que bases a educação deveria ter no meu entendimento? Não sou pedagogo e jamais dei aulas a não ser em universidades, mas, como fui professor e sou acima de tudo um cidadão consciente, me permito opinar, até porque a educação formatada pelos especialistas do governo definitivamente fracassou, o que me dá certo crédito para também dar meus pitacos.

Defendo uma educação assentada basicamente em quatro pilares:

1) Ética e cidadania. Embora eu acredite que os valores éticos devam vir de casa, isto é, do berço, penso que certas questões, como a corrupção e a ética na política são às vezes complexas demais para que os pais lidem com elas sozinhos. Por isso, acho bem-vindo o reforço desses valores na escola, mesmo porque é este o primeiro espaço público que a criança frequenta e onde ela pode pôr em prática aquilo que aprende em casa na teoria. Honestidade, lisura, respeito ao outro e à coisa pública, noções de justiça, equidade e solidariedade, além da compreensão do funcionamento das instituições (mas, por favor, nada chato como as antigas aulas de Educação Moral e Cívica, hein!) são essenciais à formação do cidadão. Além disso, deve haver uma base lógica no ensino da ética, isto é, que mostre ao aluno que, sendo éticos, todos ganham, ao passo que, numa sociedade sem ética, mais cedo ou mais tarde todos perdem. Que faça o estudante sentir a ética não como uma obrigação, mas como uma necessidade. Aqui eu embutiria até o ensino da teoria dos jogos de Neumann e Morgenstern, mas, evidentemente, sem seu arcabouço matemático altamente abstrato, focando, em vez disso, situações concretas do dia a dia.

2) Raciocínio lógico e senso crítico. Ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, o exercício da lógica não é útil apenas às profissões das áreas de Exatas, Economia e Gestão, mas todo aquele que não pensa logicamente acaba sendo ludibriado, portanto todo cidadão que se preze precisa ser capaz de perceber as falácias do discurso alheio, compreender onde está o “pulo do gato”, distinguir a verdade da mentira e desenvolver o senso crítico que o tornará imune a manipulações, seja da mídia, dos políticos ou de líderes religiosos. Defendo mesmo a inclusão da disciplina Lógica no currículo escolar, cujo ensino se faça não sobre esquemas abstratos como os da lógica matemática mas sobre situações do cotidiano, como a análise de propagandas, discursos políticos e outros. Por sinal, um ótimo adjuvante no ensino da lógica é a prática do xadrez. Países de Primeiro Mundo ensinam as crianças a jogar xadrez, e não é inútil lembrar que os estrategistas russos que derrotaram o exército nazista na Segunda Guerra Mundial eram todos exímios enxadristas. Outra ferramenta que viria a calhar é a Análise do Discurso, mais uma vez sem grandes teorizações, mas com foco na desmontagem e desnudamento das informações que nos bombardeiam todos os dias.

3) Método científico. Defendo uma grande ênfase no ensino de matemática e ciências da natureza (física, química, biologia), mas não como uma mera decoreba de fórmulas que serão cobradas no vestibular, pois o ensino da fórmula sem a compreensão do raciocínio que lhe deu origem transforma a ciência num conjunto de dogmas comparável à sua grande antítese, que é a religião. Nenhuma forma de conhecimento é tão precisa e poderosa quanto a ciência, contudo muito poucas pessoas dão crédito a ela porque não a entendem e, com isso, preferem confiar na opinião do amigo, do vizinho, do pastor, do político, do vendedor… Compreender o método científico, isto é, como funciona a mente do cientista, como ele observa e testa a realidade à sua volta, e como utiliza o raciocínio lógico para chegar a um conhecimento que funciona na prática e que se autocorrige quando erra, é mais importante para o cidadão comum, qualquer que seja a sua profissão, do que a simples memorização de fórmulas matemáticas. Claro que sem as fórmulas não se faz ciência, mas sem raciocínio lógico e primazia do fato e da prova sobre a opinião e a crença, não se têm cidadãos críticos e sim marionetes nas mãos dos poderosos. Portanto, que se ensine a teoria, mas que se mostrem também os dilemas que perturbaram os grandes cientistas, sua luta contra a tirania da Igreja e o dogmatismo da religião, o modo como encontraram soluções criativas e respostas plausíveis a grandes problemas sem jamais apelar para o sobrenatural, bem como todos os benefícios que a ciência nos proporciona todos os dias.

4) Gramática, leitura e redação. É mais do que óbvio que cidadãos bem formados precisam dominar a norma culta, sobretudo sabendo quando devem usá-la e quando não, assim como precisam saber se expressar nela e entender o que significam os textos que leem. Neste ponto, tenho uma posição intermediária entre os gramáticos conservadores, que defendem um ensino eugenista de uma norma padrão ultrapassada, baseada nos clássicos literários de outros séculos e no uso lusitano da língua, e os pseudolinguistas pós-modernosos, para quem basta que o destinatário compreenda a mensagem e tudo bem. De um lado, sempre defendi a modernização e a racionalização da gramática normativa, mas, de outro, penso que é o português culto que tem de ser o objeto de estudo das aulas de Língua Portuguesa, pois no registro popular os alunos já são proficientes. Tenho visto aulas de português que utilizam até letras de funk como objeto e sinceramente não vejo como isso possa contribuir para a formação linguística do estudante; no máximo, funciona como entretenimento.

Quanto à leitura, me parece óbvio que quem lê mas não compreende não se informa, e quem não tem informação é presa fácil dos manipuladores de consciências. Mais do que isso, vivemos num mundo em que até a compreensão de um manual de instruções ou bula de remédio pode significar a diferença entre a vida e a morte.

Por fim, o cidadão que não sabe se expressar linguisticamente em nível formal não obtém bons empregos, não consegue exigir seus direitos nem se fazer entender pelos outros; creio mesmo que quem se expressa mal no fundo raciocina mal.

Fica aqui, portanto, a minha humilde contribuição para a melhoria da educação em nosso país. Comentários e críticas, como sempre, são bem-vindos.