Sexta-feira passada, tive o prazer de participar do programa Pauta Nossa, da rádio Mundial News FM do Rio de Janeiro (link para o vídeo do programa: www.youtube.com/live/1yaVofmqBLY?si=RId9BcdQ7P8di2ve), no qual fui entrevistado por Renata Barcellos e Paulo Roberto Accioli, aos quais mais uma vez agradeço pela oportunidade. Nesse programa, um dos temas abordados foi a famigerada linguagem neutra de gênero (hoje em dia, em qualquer espaço em que se fale sobre língua portuguesa, o tema da linguagem neutra vem à baila). Foi-me perguntado qual o meu posicionamento sobre a questão, ao que respondi que, como estudioso da linguagem, não me cabe ser contra ou a favor, isto é, fazer juízos de valor de bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto, mas apenas me limitar a estudar o fato objetivamente, como é o papel de toda ciência. Portanto, minha tarefa é analisar à luz dos dados observáveis por que esse fenômeno está ocorrendo, se ele tem potencial para ter adesão social (ou seja, se a sociedade como um todo poderá adotá-lo), se a estrutura da língua comporta um terceiro gênero, se o aparelho cognitivo de quem fala português desde a infância consegue adaptar-se a essa nova estrutura, e assim por diante. Não me cabe, como fazem certos colegas meus que classifico de intelectualmente desonestos, militar a favor dessa linguagem — ou, eventualmente, contra ela — por razões ideológicas ou político-partidárias dentro de um discurso que, pela sua natureza, exige (tanto quanto possível, é sempre bom ressaltar) isenção, imparcialidade e objetividade, logo um policiamento contra a interferência de qualquer viés pessoal na análise. Como todo cidadão, tenho o direito de ter minhas posições e preferências subjetivas, mas, como cientista, devo seguir a máxima de Bertrand Russel:
Quando estiver estudando qualquer assunto ou considerando qualquer filosofia, pergunte-se apenas quais são os fatos e qual é a verdade que os fatos confirmam. Nunca se deixe desviar nem por aquilo em que você gostaria de acreditar nem pelo que você acha que teria efeitos sociais benéficos se acreditasse. Olhe apenas, e unicamente, para quais são os fatos.
E um dos fatos objetivos que advêm do estudo científico das línguas e da linguagem humana é que a língua muda, mas isso ocorre espontaneamente, por um movimento lento e inconsciente de toda a sociedade, jamais por imposição de quem quer que seja (nem governos autoritários conseguem mudar a língua), e que o setor da linguagem mais sujeito a mudanças é o vocabulário, uma vez que reflete diretamente a mudança social. Já a parte mais resistente à mudança é a gramática, pois envolve a própria estrutura do idioma. Não é difícil perceber como a pronúncia do português se alterou nas últimas décadas: basta assistir a um filme brasileiro antigo, do tipo das chanchadas da Atlântida dos anos 1950, para perceber como os atores de então pronunciavam de forma diferente da nossa. Também o léxico da época continha palavras que hoje não se usam mais, assim como não tinham muitos dos vocábulos que utilizamos correntemente hoje. No entanto, não encontraremos praticamente nenhuma construção sintática que nos soe estranha hoje em dia; quando muito, podemos encontrar opções estilísticas diferentes, como “chamar-te” em vez de “te chamar” ou “chamar você”, mas isso não representa mudança na estrutura da língua, visto que todas essas construções são permitidas atualmente como o eram na década de ’50 ou no século XIX.
Para vocês entenderem o que significa uma alteração radical na estrutura da língua, como a implantação de um terceiro gênero, que inclua pronomes como elu, iste, aquile e flexões de nomes como amigue e bonite, vou dar um exemplo análogo.
Suponhamos que por alguma razão ideológica qualquer (afinal, ideologias não precisam de razões, não é?) surja um movimento advogando que deveríamos adotar um terceiro número gramatical em português. Como todos sabem, nossa língua comporta dois números, o singular, para um, e o plural, para dois ou mais. Há línguas que admitem um terceiro gênero, o dual, para duas coisas ou pessoas. Por exemplo, o grego clássico e o antigo germânico tinham o dual. Em línguas assim, o singular refere-se a um, o dual a dois, e o plural a três ou mais. (Há ainda línguas que têm o trial, para três; nestas, o plural começa com quatro. Também há línguas que não fazem nenhuma distinção de número.)
Pois bem, sabemos que o plural se indica em português pela colocação de um s ao final da palavra; a ausência desse s é o que indica o singular. Assim, se digo os meninos, todos sabem que são dois ou mais; se digo o menino, trata-se de um só. Agora vou convencionar que o dual em português se fará colocando-se um r ao final das palavras. Teremos então frases assim:
- Ar duar salar estão ocupadar.
- Minhar mãor estão sujar.
- Seur rinr apresentam doir cistor hemorrágicor.
- Meur doir filhor vão se formar médicor.
- Comprei um par de sapator.
- Ambar ar respostar estão corretar.
Eu pergunto: vocês conseguiriam falar assim? Talvez treinando bastante, fazendo várias horas de aula de conversação e redação nesse novo português, vocês acham que dentro de alguns meses estariam fluentes nessa nova gramática? Mas, sobretudo, vocês estariam dispostos a despender esse tempo para adestrar-se nessa novilíngua? Vocês não acham que o singular e o plural de que já dispomos dão conta perfeitamente do recado para comunicarmos nossas ideias sem ambiguidade?
É claro que o exemplo que dei é artificial e provavelmente um movimento em prol do dual jamais ocorrerá porque, que se saiba, não há minorias excluídas que pudessem reivindicá-lo, mas, mesmo que uma mudança estrutural na língua tivesse alguma justificativa socialmente plausível (e o argumento de que a língua portuguesa é machista não passa de fake news, já desmentida muitas vezes por estudos linguísticos sérios, obviamente não pelo arremedo político-ideológico de ciência feito por pseudolinguistas), qual seria o custo de implantá-la? Essa mudança seria viável a curto ou médio prazo? Os atuais falantes a adotariam e a usariam com fluência, sem titubeios, sem se sentir ridículos? Uma maioria estaria disposta a dobrar-se ao desejo de uma minoria pela qual, por sinal, nem sente empatia?
Como estudioso sério da linguagem humana há mais de 40 anos, eu tenho as respostas a essas perguntas, mas vou deixar a vocês, leitores, a tarefa de respondê-las com base em sua própria experiência pessoal.
Boa semana a todos, todas, todes, todxs e tod@s!
É-me extraordinário o raciocínio de que há pessoas que querem, espontaneamente, que a língua mude apenas para agradar o seu viés ideológico; acham-se excluídos tão apenas por lhes não haver um pronome em língua portuguesa que se refira ao gênero com que se identificam. Não há, porém, por que contrariá-los, e sem dúvidas a sua posição neste artigo foi bem-feita. Os que o pensam têm a plena liberdade — ou devem, ao menos, tê-la — de defender as coisas que lhes melhor convêm e agradam. Desde que as não imponham aos que as não aceitam, não vejo o menor problema nisto.
Parabéns por esse texto, professor Aldo!
Bem pertinente o artigo.
aproveitando, sabe dizer se é bom o autor Caleb Everett?
https://www.amazon.com.br/Caleb-Everett/e/B00E95DYRS/ref=aufs_dp_fta_an_dsk
Sim, Caleb Everett é um dos principais linguistas cognitivos da atualidade.
As ideologias exógenas não estão preocupadas com o que diz a Ciência, mas com o que diz a Ideologia defendida. O perigo está aqui, porque, uma vez no Poder, a Ideologia pode muito bem selecionar as pessoas que comungam com ela, em detrimento dos que a tem com reserva. Não se trata do desejo de ver a linguagem representar, mas do desejo de comandar… A coisa é mais profunda, o buraco é mais em baixo. “Amigue” é uma forma de dizer quem é que manda, não um recurso à ´igualdade’, que não é procurada por ninguém, porque o ser humano não é assim.
Pois é, meu caro, tanto é assim que eu reproduzi no meu Facebook (https://www.facebook.com/aldobizzocchioficial) o texto de um professor da UFBA e colunista da “Folha de S. Paulo” que diz tudo. Dê uma olhada lá. Abraço!
Nunca diga a um esquerdista que a mudança na língua é inconsciente (“tá vendo, a prova da manipulação?”) ou lentamente gradual (“claro, vamos esperar o tempo que for necessário!”). Mas o número, infelizmente, não pode ser neutralizado, apenas desconsiderado pela língua. Seria ótimo desconstruir o número, porque isto afetaria bastante os ideias capitalistas!
Mas a língua não necessariamente responde pari passu à Realidade. O português, por acaso, tem o número neutro, como quando se diz, por exemplo, “o camelo é um animal dócil”, ao invés de “os camelos são animais dóceis”. Em “o camelo é um animal dócil” mistura-se a forma singular com a ideia de plural; portanto, neutro, ou uma espécie esquisita de neutro: nem é plural, porque não tem a devida forma; nem é singular, porque não tem o devido conteúdo.