Outro dia comprei um mouse novo para o meu computador. Produzido por uma conhecida marca americana, veio acompanhado de um manual de instruções nas seguintes línguas, e nesta ordem: inglês, português brasileiro, francês, grego, italiano, português lusitano, espanhol e hebraico. Achei curioso que o manual trouxesse duas versões das instruções em português, uma para cada variedade do idioma – e separadas entre si por três outros idiomas. Mais curiosamente ainda, não há nesse manual versões distintas para as variedades do inglês (britânico e americano), francês (europeu e canadense) e espanhol (ibérico, mexicano, argentino, etc.). Mas há duas versões, por sinal diferentes, para a nossa língua.
Lendo mais detidamente as instruções, fica claro por que não foi preciso acrescentar redações alternativas em inglês, francês ou espanhol. É que nessas línguas, os dizeres seriam os mesmos qualquer que fosse a variedade considerada (europeia ou ultramarina).
A empresa fabricante do mouse, que, como disse, é americana, certamente não desconhece as diferenças de seu inglês para o dos britânicos, mas o fato é que uma segunda redação não seria absolutamente necessária, já que coisas como “Insert the AA alkaline battery. For safety information, see the Product Guide” se dizem exatamente da mesma maneira dos dois lados do Atlântico. Já em português a coisa não é bem assim. Senão vejamos (nos exemplos a seguir, a versão brasileira está indicada com PB e a lusitana, com PP):
PB: Insira a pilha alcalina do tipo AA. Para obter informações sobre segurança, consulte o Guia do Produto.
PP: Insira a pilha alcalina AA. Para obter informações de segurança, consulte o Manual do Produto.
PB: Insira o transceptor em uma porta USB do computador.
PP: Insira o transceptor numa porta USB do computador.
PB: Baixe e instale o software … (necessário para usar o botão Lupa).
PP: Transfira e instale o software … (necessário para o botão Lupa).
PB: Quando não estiver em uso, desligue o mouse para prolongar a vida útil da pilha.
PP: Quando não estiver a ser utilizado, desligue o rato para prolongar a vida útil da pilha.
PB: Se o transceptor estiver armazenado no mouse, pressione o botão para soltá-lo.
PP: Se guarda o transceptor no rato, prima o botão para o libertar.
PB: Para obter informações importantes sobre segurança e meio ambiente, consulte o Guia do Produto. Para obter as informações e atualizações mais recentes vá para www…
PP: Para obter informações de segurança e ambientais importantes, consulte o Manual do Produto. Para obter as informações e actualizações mais recentes vá para www…
Bem, acho que os exemplos acima dispensam comentários. E depois dizem que a internacionalização do idioma depende da unificação ortográfica…
Como curiosidade, há algum tempo, li uma opinião que o mais lógico provavelmente teria sido manter o Latim como língua para comunicações formais e os idiomas românicos para o coloquial, como era na Idade Média, mas é ainda hoje em países que falam Árabe por exemplo, que têm um Árabe padrão e dialetos nacionais bastante ininteligíveis entre si.
Outra curiosidade que tenho é quais as principais diferenças gerais do Português africano (ou pelo menos de um dos países africanos) para com o do Brasil e o europeu, que são os dois dos quais sempre ouvimos falar. Conhece algum texto a respeito ?
De modo geral, o português africano se aproxima mais do lusitano que do brasileiro, tanto em termos gramaticais como lexicais e inclusive ortográficos. No entanto, a pronúncia africana é um meio-termo entre Brasil e Portugal, talvez mais próxima dos falares do sul de Portugal, que é de onde saiu a principal matriz do sotaque brasileiro. Quanto a estudos a respeito, desconheço, pois não é minha área de especialidade, mas com certeza existem, especialmente na África portuguesa.
Não vi nenhuma diferença que seja conditio sine qua non pra 2 traduções de português. Tirando mouse e rato, que seria como chamar canjica na amazônia de cural no sudeste. E não, no norte canjica não é milho branco. Mesmo assim, Mure é mouse e Rato é Rat. Mure vem de Mus assim como Mouse e continua a estar em uso dialetal em algumas regiões lusófonas.
Ainda bem que falava-se de mouse e não ecrã.
Ainda sobre variações diatópicas, alguém no sudeste sabe rotineiramente o que é crivo ou crivar? Frequentemente dizem peneirar pra nome advindo de cesta de malha trançada de portar pães, panarium.
Bom, no dialeto amazofônico é crivo e crivar.
Precisariamos de um manual pra português nordestinês; amazonidinês (amazonídeos); caipirês? Veja só como manual foi natural de dizer, mais do que guia.
Guia? Manual? São a mesma coisa e usamos no Brasil intercambiavelmente.
Soltar? Libertar? Em uma? Numa? Alguém não fala numa no Brasil? Ahhh sim alguns amerabas reclusos sem contato com a língua portuguesa.
O que pareceu é que pra Brasileiro eles tendem a acrescentar 1 ou 2 verbos a mais para que não sejamos imbecis de pensar que “necessário para usar o botão Lupa” fosse pra usar em outra coisa que não fosse um botão e que também tivesse o símbolo ou nome de… bem… Lupa. E pasmemos, um mouse há 3 botões.
Ainda, que precisar dizer pilhas TIPO AA, pois o brasileiro seria estúpido o suficiente pra não saber que em tratando-se de pilha, AA é outra coisa que não o gênero ou tipo ou estirpe. Aqui contém ironia, pois brasileiro obviamente não é estúpido… bom 28% seguramente – no mínimo – de nós somos, apesar das laranjadas.
Quem sabe em exortações de partida tenha-se mesmo que fazer um manual, por exemplo, amazonida. Uma vez que “Vamos embora” passa a ser o imperativo “Bora!”, não raro falamos “Bora embora” ou “borimbora”. Se descontrairmos isso seria: ” Em boa hora em boa hora” ou talvez devessemos considerar a existência do vermo borar. Eu Boro, tu boras, Ele bora, nós boramos, vós borais, eles boram. Ai as formas imperativa “Bora, tu” e “Borai, vós” passassem a ser consideradas normais nos manuais de português – AM.
A verdade porém é que tudo passa a ser variante de uma mesma língua com nomes e apelativos diferentes sendo símbolos de objetos idem(ticos) de regiões diferentes (se fosse manual brasileiro haveria de ser regiões “globais” diferentes).
Em todo caso, é totalmente inteligível para ambos portugueses e Brasileiros educados – pausa enfatizante, bem particípio presente ativo– os manuais nos dois dialetos. Não havendo necessidade de diferenciação. Só que estamos falando de Brasil; um país que valoriza cultura americana, onde bofetada de ator americano em premiação anual de cinema é assunto de telejornal em horário nobre, que não investe em educação e que hoje tem uma taxa de analfabetismo absurda em crianças até os 10 anos de idade, imagine adultos com poder aquisitivo pra fazer inclusão digital.
Nesse caso é mais fácil esse cuidado todo com o analfabetismo funcional brasileiro que com o luso. Afinal até as crianças lusas já estão A FALAR como brasileiros, para o horror dos pais portugueses hehehehe.
Bom deixa eu comer aqui meu açaí papa com minha farinha de tapioca, ou seria tapioca granulada?
E haja erro de concordância e pontuação… frutos de escrever rápido em celulares, onde revisar é horrível.
Por muitas e muito profundas que sejam as diferenças entre variedades do PB, são muito menos numerosas e mais superficiais que as diferenças entre todo o conjunto de variedades do PB e todo o conjunto de variedades do PE. De fato, aquelas que estão no manual são de somenos importância, se comparadas com as diferenças morfológicas, sintáticas e pragmáticas, muito maiores que as variedades europeias das línguas espanhola, francesa e inglesa e as variedades americanas dessas línguas.
Mas eu tenho uma desconfiança, que nunca me foi possível aclarar, porque sou leigo, e que nunca consegui que um linguista português me respondesse mais circunstanciadamente (respondeu-me algo laconicamente, embora de maneira simpática, o linguista Fernando Venâncio): a de que, em Portugal, se estudaram muito menos os socioletos das camadas mais baixas que no Brasil.
Cansou-me ver comparações entre PB coloquial falado e PE escrito nas obras de muitos linguistas, brasileiros e portugueses.
Por exemplo: diz-se que ainda hoje em português se preserva a inversão verbo-sujeito nas perguntas, como no espanhol:
Onde mora ele?
Mas basta ter assistido por uns poucos dias seguidos a qualquer canal de TV português para concluir que quase nunca, ou mesmo nunca, alguém usa essa construção, em cujo detrimento a mais usada é esta:
Onde é que ele mora?
E, a propósito, “é que” segundo de sujeito + verbo é forma que se encontra hoje com enorme frequência também na escrita dos portugueses. Basta ver as perguntas em entrevistas de jornais.
Há uma pesquisadora da Madeira que encontrou, entre os madeirenses mais velhos e menos escolarizados, o ele acusativo tão frequente e disseminado na fala dos brasileiros de qualquer classe social.
Uma tese de doutorado na Unicamp concluiu que o PE tem alta frequência de realização do sujeito pronominal em contextos em que seria de esperar que fosse nulo, com base na caracterização tradicional do PE como língua de sujeito nulo.
A propósito, a alta frequência de “é que” seguido de sujeito + verbo em lugar da inversão verbo – sujeito nas interrogativas, que eu percebi como leigo, foi confirmada por uma tese de 1996, também na Unicamp.
Não sei, mas, e sempre admitindo que, como leigo, talvez esteja salientando aspectos que, numa norma, são marginais, e que na outra são centrais, tenho para mim que um cotejo mais sistemático entre PB e PE que tomasse sempre o cuidado de contrastar norma culta urbana escrita real do PB com norma culta urbana escrita real do PE, e norma culta urbana falada do PB com norma culta urbana falada do PE, além de português brasileiro popular falado com português europeu popular falado encontraria semelhanças e diferenças ao longo de eixos diferentes dos que costumam ser frequentemente assinalados.
Aldo, desculpe-me fazer-lhe uma pergunta ao final de post tão longo, mas tem algum fundamento esta minha percepção de leigo de que muitas vezes se comparam registros diferentes das duas variedades do português?
Num outro artigo meu, menciono que em PB se faz a pergunta com predicado clivado (“é que”) e não com inversão da ordem sujeito-verbo, ao que um leitor português confirmou que lá também se faz correntemente isso. Ou seja, essa construção já se incorporou à gramática da língua.
Quanto a estudos comparativos entre PE e PB, também tenho constatado que em alguns casos há erros metodológicos na pesquisa, comparando alhos com bugalhos.
Pois é, e eu sou leigo, e, embora goste muito de Linguística e leia muito sobre o assunto, não entendo boa parte dos artigos em que se usa uma linguagem mais técnica, quase impenetrável, sobretudo quando o linguista é gerativista. Ainda assim, bastou-me assistir assiduamente à TV portuguesa para ver que realizam a torto e a direito o sujeito pronominal onde ele deveria ser nulo, porque a flexão do verbo o dispensaria; que nunca, mas nunca usam a ordem inversa sujeito-verbo em interrogativas, mas sempre a clivada “é que” (a diferença é que nunca os ouvi dizerem “que que”, como em “o que que aconteceu?” ou até mesmo em “o que que foi que aconteceu?”). As descobertas da Aline Bazenga na Madeira me pareceram surpreendentes: acharam-se entre os madeirenses mais velhos de pouca escolaridade construções que, no PB popular, se atribuem à transmissão linguística irregular, mas que, no caso madeirense, dificilmente serão atribuíveis a contato linguístico.
Enfim, acompanho com atenção e gosto o que vocês vão publicando, e acho que ainda se encontrarão semelhanças e diferenças insuspeitadas quando pesquisadores de cá e de lá trabalharem conjuntamente com mais frequência e por períodos mais longos. É simplesmente surpreendente quanto ainda seguem de costas meio que voltadas uns para os outros, com as honrosas exceções da praxe e dos congressos internacionais.
Pois é, vários achados recentes indicam que muito do que existe em português brasileiro veio de Portugal e lá sobrevive até hoje em certas comunidades. O que ocorre, de fato – e você tem razão nisso -, é que Brasil e Portugal se comunicam pouco em termos acadêmicos. Cada qual pesquisa sua própria variedade linguística e dá de ombros para a do outro. Muitos trabalhos de linguistas brasileiros que citam exemplos portugueses partem de casos estereotipados e mesmo de crenças equivocadas que temos a respeito da fala dos portugueses. Sobre a África lusófona então nem se fala!