Estreou semana passada na Rede Globo a nova novela das 18 horas, Além da Ilusão, que conta a história do romance proibido entre um jovem ilusionista e uma moça rica. Mais uma vez, a Globo se esmera na reconstituição de época (anos 1930 e 1940), nos cenários, figurinos, locações, etc. – e mais uma vez escorrega na linguagem. Num dos capítulos, o mágico é preso injustamente e, ao ser fichado, aparece na tradicional foto de frente e de lado segurando uma plaquinha com seu nome e data de nascimento (hoje em dia, essas placas também trazem o artigo do Código Penal em que o suspeito está incurso). Pois não é que nessa placa aparece o nome Davi e a data de nascimento cujo ano é 1934? E o que há de errado nisso? É que em 1934, portanto antes da reforma ortográfica de 1943, o nome Davi se grafava David, com d final mudo. Ou seja, a Globo usou a ortografia atual numa novela de época, o que revela que, mais uma vez (casos semelhantes comentei no artigo A língua portuguesa e as novelas de época), a preocupação com a recriação realista de um momento histórico passado não se estendeu à língua. Falta à Vênus Platinada uma boa consultoria linguística – aproveito para avisar que estou disponível para prestar esse serviço – se for bem pago, é claro!
Ainda hoje há muitas pessoas com o nome David, da mesma forma como meu nome do meio é Luiz com z. Trata-se de uma grafia tradicional, assim como Mello, Mattos, etc. No entanto, pessoas de baixa cultura, que desconhecem ser essa grafia legitimamente portuguesa, costumam pronunciar o nome como Dêivid, achando que se trata de nome inglês. (Aliás, os de mais baixa extração social acham até chique essa pronúncia.) O desconhecimento dos mais jovens e dos menos letrados quanto à grafia antiga dos nomes portugueses faz com que se pronuncie consoantes que deveriam ser mudas, como o c de Victor e o p de Baptista. Só falta agora pronunciarem Jacob como Jacobe – se é que já não há alguém que o faça!
Por curiosidade, de David e Jacob para Davi e Jacó tudo bem, tiraram letras que já eram mudas, mas por que mudaram Luiz para Luís se a pronúncia é a mesma ? Aliás pelo que vejo, Luís parece que nem pegou muito, tem mais gente de nome Luiz, mesmo nascidos depois dos anos 40.
A explicação para o “Luís” com “s” é etimológica, já que o nome vem do francês “Louis”. Mas o “Luiz” com “z” de fato ainda é bem popular, já que ainda há muitas pessoas com essa grafia no nome – eu inclusive.
Professor Aldo, será que a forma original não é a latina: Aloisius?
Não, Júlio. Na verdade, Aloisius ou Aloysius é a forma latinizada do francês Louis, que é de origem germânica: Ludwigs. Também Ludovicus é uma latinização.
Obrigado pela resposta. Sei que o nome é de origem germânica, mas pensei que a forma portuguesa fosse originária da latina.
Empertigado, pincenê agarrado no meio do narigão, o professor fazia a chamada. Gostava de articular bem – vogais e consoantes saíam claras e bem audíveis.
Começou com o Abdias (que pronunciou bem destacado: A-b-dias), pelo Christóvão e pelo Edgard (que pronunciou com todas a letras, inclusive o d final). E seguiu adiante, até que seu olho bateu num daqueles nomes de arrebitar-se-lhe a orelha. Já antegozava o efeito da retórica parnasiana.
Empertigou-se mais ainda e mandou, com todas as letras: “I-g-nacio Ba-p-tista de Assum-p-ção!”
E o aluno, na lata: “Prom-p-to!”.
Sensacional!!!
Caro Aldo,
Achar chique isto ou aquilo tem muito que se lhe diga.
Os de alta extração social não estão imunes à mui humana necessidade de se destacar da manada; diria até que, no seu próprio meio, a sentem mais pungentemente. Os edíficios elegantes de São Paulo não costumam ter nomes portugueses, por exemplo. Nisto os quatrocentões (atualmente, quintocentões) se parecem com a classe média dos condomínios fechados: a diferença é que esta prefere os nomes em inglês, e aqueles, os em francês.
Antes da reforma ortográfica de 1934, o meu avô assinava Vasconcellos com ele dobrado; depois, passou a assinar-se com ele simples. Em Portugal, desconheço quem mantenha a grafia antiga. O 9.º Marquês de Castelo Melhor, que, ademais de “titular”, é um dos principais historiadores portugueses da sua geração, não só escreve o Vasconcelos com ele simples, como Sousa com esse. Aqui, os chiques fazem questão das suas consoantes dobradas, ainda que lhes tenham vindo de nomes inventados para abrasileirar sobrenomes estrangeiros, como um ex-presidente de infame memória.
É claro que, se a luz que chega ao topo talvez não baste, aquela à qual é muito custoso chegar à base não ilumina nem o palmo imediatamente adiante do nariz: os modismos na baixa extração ainda são mais, digamos, exóticos. O pecado original é, todavia, daqueles a quem caberia dar o exemplo: depois que abrem as porteiras atrás de si, a manada lhes segue os maus passos.
A propósito, conhece o projeto de uns seus colegas linguistas de um Dicionário de Nomes do Brasil?b Ei-lo:
https://dicionariodenomesdobrasil.com.br
Lá encontrei alguns textos interessantes, como o que trata da difusão dos antropônimos com sufixo -son: a sua aparição e o aumento da sua frequência coincide com a popularização dos filmes americanos. O brasileirinho médio tomou por prenome o que era sobrenome, talvez por ouvir, nos filmes (mal) dublados (ou mesmo por ler nas legendas malfeitas), um Sr. Robinson, assim, à inglesa, sem a necessária adaptação aos costumes linguísticos pátrios, em que a “senhor” se seguira o prenome.
No meu trabalho, atendo a gente humilde de diferentes gerações, e é sempre curioso ver que os idosos de mais de 70 anos são os (hoje) aristocráticos Joões, Josés, Pedros, Franciscos; os filhos desses idosos, na casa dos 40-50 anos, são os Edevaldos, Gilmários, Geriéis; e os netos, na casa dos 20 anos, qualquer coisa que termine em -son.
Mas paro por aqui, porque eu, quando dou vazão ao meu elitismo, carrego o sobrolho aos que não tenham ao menos três os quatro ostados referidos na Genealogia Paulistana.
De fato, Rodrigo, os ricos e os novos-ricos (e também a classe média metida a besta) gostam de nomes estrangeiros em condomínios, bebidas, automóveis, mas pelo menos a minha percepção é de que não costumam batizar seus filhos como Dêivid ou Maicon.
Quanto à atualização ortográfica de sobrenomes ocorrida em Portugal, isso vai na contramão dos países realmente relevantes do mundo ocidental. Veja que na Inglaterra e Estados Unidos ainda se conservam grafias como Howe, Marlowe, Buffett, etc. (e não How, Marlow, Buffet); na França há Fleury, Lefebvre, Levesque e não Fleuri, Lefèvre, Lévêque; na Alemanha, há Meyer e não Meier; na Itália há Pujatti e não Pugiatti; e assim por diante. Parece que os falantes do português, até por força das incontáveis reformas ortográficas por que passa nossa língua (uma média de uma a cada meio século), têm pouco apego à tradição de seus sobrenomes. Enquanto Shakespeare é Shakespeare até hoje (e não Shakespear), nosso Luiz de Camoẽs virou Luís de Camões, Gregorio de Mattos agora é Gregório de Matos e até o recentíssimo Ruy Barbosa agora já é Rui para os íntimos. Mas, também pudera! Não é só de ortografia que trocamos a toda hora: é de moeda, de constituição, de nome do país… Desculpe meu elitismo, mas essa falta de apego ao passado é típica das repúblicas bananeiras.
Prezado Aldo:
Os ricos (já não tenho tanta certeza quanto aos novos-ricos) não chamam Dêivid nem Maicons aos filhos, mas há quem os batize, p. ex., Thomaz, o que não só compreendo como até louvo quando se trata de prenome comum ao pai, ao avô, ao bisavô etc., mas não quando é o rebento a inaugurá-lo: fica evidente que a pátina é artificial, superposta de propósito para dar foros de fidalguia a quem não a tem.
O apego ao passado está mais na conservação dos aspectos substanciais da tradição que dos superficiais, como a ortografia: para seguir com o exemplo que dei, quem chamasse Thomaz ao filho, porque assim se chamavam o avô, o bisavô, o trisavô etc., demonstra conservar viva a memória da família e, provavelmente, ainda terá consigo cartas, documentos, assentos de batismo, casamento e óbito de gerações de ascendentes.
Por falar em conservação dos aspectos substanciais da tradição em vez dos superficiais, não deve ser por acaso que conserve menos consoantes etimológicas (se é que alguma: conserva ao menos alguma?) justamente a língua românica que menos se afastou do latim (excetuado o sardo) e que as conserve mais justamente a que mais se afastou. Não falemos do inglês, que nem sequer é língua românica, mas “conserva” intactas as colunas greco-romanas das palavras que lhe chegaram na garupa de Guilherme, o Conquistador. Será reflexo da insegurança de quem se sabe, por assim dizer, descendente menos direto de antepassado ilustre?
Por isso mesmo, que os sobrenomes ingleses e franceses se conservem como sempre foram é algo que se coaduna com a tendência de ambas as línguas de ostentarem ortograficamente as suas raízes greco-romanas, justamente por as terem em menor grau nos aspectos mais substanciais.
Concedi-lhe prontamente que os ingleses, franceses e alemães mantenham inalteradas as grafias dos seus sobrenomes, porque, pelo motivo que expus acima, isto não me surpreende. Mas estranhei que se dissesse o mesmo dos italianos, o que me levou a conferir a informação: e não é que, numa rápida busca, encontrei, num documento de 1797, um Domenico Pugiatti, numa lista de “elletori per far dodici giudici di pace, e cinque d’appellazione”? Num de 1745, encontrei um “Signor Doctor Pugiatti Medico della Città”. Claro, pode ser gralha por Pugliatti, até porque, se não estou em erro, de Pujatti não se faria Pugiatti, mas Puiatti: e Puiatti, bem, encontrei-os muitos.
Shakespeare não seria menos do que é se fosse hoje Shakespear, assim como Camões não é menos por já não ser Camoẽs. Compreendo que um linguista que se dedica à etimologia se afeiçoe por vestígios arqueológicos de fases anteriores da língua, como consoantes dobradas, mudas e outros tantos; compreendo menos que as essencialize a ponto de ver com maus olhos que se abandonem às edições de colecionar das obras que hoje lemos escritas segundo a nova ortografia.
Um abraço,
Rodrigo.
Só posso dizer uma coisa: não quero que meu sobrenome vire Bizóqui depois que eu morrer.
Prezado Aldo:
Que atualizem o seu sobrenome depois da sua morte, que, espero, ainda tarde muito, significará que o seu legado permaneceu relevante depois dela, a ponto de se preocuparem com isto.
Pior seria se, por exemplo, Queiroz (o Eça) assim tivesse permanecido, além de quaisquer controvérsias (que as há), simplesmente porque já ninguém mais se lembrasse dele ao tempo das reformas ortográficas.
Eu, que, já maduro, não posso dizer que tenha legado que não seja a minha prole e o que eu lhe deixar (à prole) de herança, repouso na certeza de que o meu sobrenome permanecerá tal como está, a despeito de quaisquer novas reformas, simplesmente porque a ninguém há de ocorrer atualizá-lo. Digo-o sem afetação de modéstia e sem amargura, apenas porque assim é.
Um grande abraço,
Rodrigo.
Desde que me conheço por gente (ou desde que fui alfabetizado, e isso foi coisa que me fizeram bem-feita, apesar da escola pública!), busco seguir a ortografia oficial. Em tudo o que escrevo, até nas redes sociais.
É uma mania, eu sei, mas…
Meu nome consta sem acentos gráficos em minha certidão de nascimento; mas sempre o escrevi com os acentos no U e no E. Fiz também questão de que em meu diploma o nome fosse grafado com os acentos: Júlio César.
Não tenho filhos. Mas, se um dia os tiver, não porei neles nomes grafados em desacordo com as normas de escrita. Ficaria com a sensação de que alguma coisa falta ou está errada. 😉
No final, leia-se “três dos quatro costados”.
Vale a pena ler