Ladrões de ontem e de hoje

A língua evolui justamente porque a sociedade que a fala muda o tempo todo. Se assim não fosse, a língua deixaria de dar conta das novas realidades e se tornaria inútil para a maioria das comunicações. O aspecto da linguagem que mais depressa e com maior frequência se transforma é o vocabulário. Quantas palavras que usamos hoje, como globalização, internet, tablet, celular, formatar, covid, mimimi, antifascista, vitimismo, gordofobia, nem sonhávamos em empregar 40 anos atrás! E quantas palavras que usávamos frequentemente há pouco mais de duas décadas foram totalmente esquecidas! (Vitrola, disquete, videocassete, garrafeiro, carburador são apenas alguns exemplos.)

A notícia de que houve um substancial aumento no furto de aparelhos celulares no último ano me fez lembrar que, até o advento do smartphone, que tira fotos, faz vídeos, permite teleconferências, pesquisas na internet, mensagens instantâneas, orientação por GPS no trânsito e, last but not least, permite fazer e receber chamadas telefônicas, o tipo mais comum de ladrão era o batedor de carteiras, também chamado de punguista. Como esse meliante precisava “acessar” (olha outro termo jovem aí) o bolso ou a bolsa da vítima, costumava dar-lhe um tranco ou empurrão, surrupiando seu objeto de desejo e fugindo rapidamente no meio da multidão. Por causa exatamente desse tranco, o delinquente, muitas vezes menor de idade, passou em São Paulo a ser chamado de “trombadinha” (no Rio, ele era conhecido por “pivete”).

Quem é que emprega os termos batedor de carteiras, punguista, trombadinha ou pivete hoje em dia? O fato é que, enquanto quase ninguém mais carrega dinheiro na carteira, quase todos portam um celular – geralmente caro – junto à orelha ou em frente aos olhos enquanto andam nas ruas, o que fez o aparelhinho tornar-se o novo desejo de consumo de dez entre dez marginais, muito mais do que um par de tênis importado ou uma moto. Sem falar que, dentro de uma penitenciária, um telefone móvel é muito mais útil do que tênis ou motos. Além do valor do aparelho em si, os criminosos estão de olho nas informações que ele contém: dados pessoais e bancários da vítima, listas de contatos em quem aplicar golpes, etc.

E como as pessoas andam nas ruas carregando ostensivamente esse objeto, além de estarem a maior parte do tempo distraídas com seus chats e aplicativos, o larápio nem precisa mais dar uma trombadinha para furtá-lo; basta tomá-lo da mão do desavisado transeunte. Ou seja, a tecnologia contribuiu muito para a otimização do processo operacional de subtração inopinada de bem alheio, mais conhecido como furto. Só que, estranhamente, ainda não cunharam um termo em português para nomear esse novo tipo de profissional do crime. Mas, do jeito como tal delito anda aumentando de frequência, logo logo nossa língua criará o neologismo adequado para dar conta dessa triste realidade.

7 comentários sobre “Ladrões de ontem e de hoje

      1. Olhe, Bizzocchi, não sou especialista, mas imagino que os EUA sendo o que são (país com menos pobres, mas com tanta desigualdade socioeconômica quanto nós), têm tudo para estar enfrentando, em certa medida, o mesmo problema.

        Me ocorre que os mega-assaltos que volta e meia se veem no Brasil, aqueles em que um bando armado explode agências bancárias e espalha o terror, já aconteciam no Velho Oeste 150 anos atrás. Era um tempo em que, no Brasil, o máximo a que chegávamos em matéria de apropriação de bens alheios era o conto do vigário. (Sem contar o peculato, mas essa é uma outra história.)

        Os países americanos nasceram da violência, virtude que, sob roupagens variadas, é cultivada com muito carinho até os dias atuais. Uns são piores, outros menos piores, mas todos os países de nosso continente entram nessa dança.

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      2. José Horta Manzano,

        Como não tenho o seu e-mail, não posso fazer em particular, como seria de bom-tom, a correção seguinte: diz-se “menos ruins”, e não “menos piores” (o que equivaleria a “menos mais ruins”).

        Não se aborreça comigo, meu intuito não é o de constranger.

        Ademais, 101 em cada 100 brasileiros, inclusive cultos e até mesmo bons escritores, cometem o mesmo erro, que, daqui a pouco deixará de ser erro, se já não deixou de ser.

        Um abraço,
        Rodrigo.

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  1. Prezado Rodrigo,

    Antes de mais nada, quero agradecer-lhe pelo tom cortês, postura cada dia mais rara nestes tempos estranhos. A civilidade, que é atributo importante da vida em sociedade, tem se esgarçado entre nós. Não é seu caso, o que me encanta.

    Agradeço-lhe também pela explicação, que me comove. Não bote reparo não, Rodrigo, se me vê, às vezes, adotar um tom informal. Considero que, principalmente num texto escrito nos conformes, menções esparsas ao linguajar caseiro agem como válvulas de escape. Uma aqui, outra acolá, não há que exagerar. É como desafivelar o cinto depois de um almoço farto. Quebra a sisudez da escrita.

    Escrevo quatro a cinco artigos por semana. Estão todos no meu blogue. Se tiver curiosidade, dê uma passadinha por lá: BrasildeLonge ponto com

    O cafezinho está sempre à espera dos bons amigos.

    Forte abraço.

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  2. Além da contribuição linguística, o texto constitui um alerta. Tratemos de proteger (escondendo) os nossos celulares! A propósito, achei excelente a perífrase “processo operacional de subtração inopinada de bem alheio” para designar “furto”.

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