Qual a sua playlist preferida?

Assim como as línguas, os seres vivos e as sociedades, a tecnologia também evolui – nem sempre para melhor, diga-se de passagem. A pergunta do título é bastante frequente hoje em dia, em que a maioria das pessoas baixa músicas de aplicativos de celular. Sou do tempo, não tão distante assim, em que, para colecionarmos as canções de que gostávamos, precisávamos ficar ouvindo o rádio com o gravador a postos e, quando a canção começava a tocar, imediatamente a púnhamos para gravar. Às vezes, o locutor falava durante a execução da dita cuja, o que estragava nossa gravação. Mas a ansiedade com que esperávamos para poder gravá-la e o prazer de conseguir essa proeza é que eram o grande barato de toda a operação. E, além disso, era de graça.

Hoje as pessoas precisam pagar para baixar suas músicas prediletas – como aliás precisam pagar para assistir TV de qualidade (e a qualidade da TV paga nem sempre é lá essas coisas), pagar para acessar a internet, e assim por diante.

Mas o maior problema que eu vejo é que a possibilidade de comprar canções isoladas simplesmente acabou com o conceito de álbum, aquela obra que cada artista só lançava uma vez por ano e que trazia em geral 10 a 12 faixas embaladas numa capa que era uma obra de arte. Aliás, às vezes até o selo do disco era uma obra de arte.

Pois é, minha gente, o álbum de música, seja ele um LP ou CD, não era um simples amontoado de canções ou temas instrumentais colocados ali a esmo: a ordem das faixas tinha um propósito, havia uma faixa principal (a chamada música de trabalho), que era a que tocava nas rádios e aguçava em nós a vontade de comprar o disco inteiro para poder ouvir mais daquela maravilha.

Havia até álbuns em que a sequência das faixas contava uma história, de modo que ouvi-las fora de ordem, apertando o botão shuffle do toca-CD, não fazia sentido.

Mas o álbum, assim como o livro físico, feito de papel, tem uma mística que a playlist do celular não tem. Em primeiro lugar, havia a magia das lojas de discos, em que podíamos passar uma tarde inteira vasculhando as novidades, garimpando preciosidades, degustando faixa por faixa de cada disco, escolhendo o que íamos comprar. Hoje esse prazer só resiste nos velhos sebos de discos, único lugar em que ainda podemos ter contato físico com a obra do artista.

E esse contato incluía o cheiro típico do vinil e do papelão, a contemplação da capa, a possibilidade de ler na contracapa um texto que funcionava como espécie de prefácio em que o autor do álbum ou um crítico musical apresentava a obra ao público, a capa interna dos álbuns duplos, que geralmente traziam fotos do making of (os músicos dentro do estúdio ou em momentos de descontração entre as gravações), o famoso encarte, em que vinham escritas as letras das canções – o que era especialmente útil no caso das cantadas em inglês – e também os créditos (quem compôs cada canção, quem tocou o quê, quem produziu, onde e quando).

O álbum físico podia ser dado de presente, e em sua capa podíamos escrever uma dedicatória à pessoa presenteada, assim como podíamos guardar cartas de amor e pétalas de flores dentro dos álbuns. Quem hoje em dia presenteia playlists? E quem escreve cartas de amor hoje em dia?

Todo mundo já deve ter ouvido falar do álbum branco dos Beatles, ou do Abbey Road, ou do Sgt. Pepper’s, não? Pois é, existem até antologias do tipo 1.001 Álbuns que Você Precisa Ouvir antes de Morrer ou coisa parecida. Não acredito que futuramente se escreva algum livro do tipo 1.001 Playlists que Você Precisa Ouvir… Na verdade, ouvir playlists é para mim como ler um capítulo de cada livro: você nunca vai entender a história.

É claro que os mais jovens, que não conheceram outra realidade, podem achar perfeitamente mágico e maravilhoso ouvir playlists e podem até achar careta este meu papo. Na verdade, todos nós, à medida que vamos ficando mais velhos, temos a tendência de achar que nosso tempo de adolescência é que era bom. Mas, vendo a maneira veloz como o mundo atual está se deteriorando em todos os aspectos (social, afetivo, político, econômico, cultural, ambiental), chego a pensar que os mais velhos não estão de todo errados.

6 comentários sobre “Qual a sua playlist preferida?

  1. Bom, esse deslocamento de álbuns para listas de reprodução aconteceu mais na esfera dos consumidores, pois a crítica especializada por exemplo continua avaliando e fazendo resenhas dos álbuns quando os artistas os lançam.

    O gênero de música também influencia um pouco. Fãs de música clássica por exemplo continuam focando em obras inteiras. Para estes aliás foi até bom a quebra dos limites dos álbuns, pois para uma obra clássica muito curta não é mais preciso acrescentar outras peças avulsas para completar o álbum, e para obras muito longas como óperas, não precisa comprar álbuns duplos ou triplos.

    Em todo caso, lembro também com carinho dessa época toda de vinil, fitas cassete, rádios e gravadores. Certamente valorizávamos bem mais as gravações que conseguíamos como voce disse, mas por outro lado, hoje posso tirar o atraso, encontrar e ouvir tudo que tenho lembrança de não ter conseguido gravar ou encontrar o disco na época…

    Quanto ao mundo estar se deteriorando, não tem jeito: Ainda terá que ser encontrado um bom equilíbrio entre o que eram as sociedades tradicionais, com valores objetivos e absolutos e tendência a resistir a mudanças, e a pós-modernidade de hoje, subjetiva, relativista e julgando que inovações são necessariamente sempre boas.

    P.S.: Ao ler álbuns como o plural de álbum, lembrei de uma perguntinha: Existiu alguma lógica para adotar m antes de p e b mas não antes de f e v, que também são labiais ?

    1. De fato, as pessoas que prezam a música como elemento cultural, como eu, continuam a prestigiar os álbuns, sem prejuízo dos ‘singles’ – eu mesmo comprei vários compactos simples ou duplos na minha adolescência. O consumo de playlists é mais para pessoas que veem a música como algo de consumo imediato e descartável – infelizmente, a maioria hoje em dia.

  2. A lógica é que o m é consoante nasal, mas a articulação é bilabial. O P e o B são ambas plosivas labiais, a primeira surda e a segunda sonora. Ou seja, o final do M já inicia o P e o B. A articulação é a mesma.

    Já o F e o V são consoantes labiodentais. A articulação difere. De fato, todas as palavras com consoantes nasais tendiam ao N – que tem articulação glossoalveolar – entre consoantes. Apenas nas plosivas ou oclusivas labiais ocorre fenômeno diferente.

    Para ser mais claro. Isso não é um fenômeno pertinente ao gráfismo, mas sim um fenômeno fonético.

  3. Aldo, querido, feliz ano novo! Você sabe o quanto me vejo nesse texto, né!? Ainda escuto meus LPs apreciando a capa, consultando as informações nos encartes etc. O mesmo faço quando ouço os meus CDs, em menor dimensão. Via de regra, pelo menos um disco, seja LP seja CD, inteiro escuto por dia. Forte abraço. Emerson

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