A morte da cultura

Certa vez, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente emitiu um comunicado dizendo que o desaparecimento de uma língua e de sua respectiva cultura equivale a queimar um livro único sobre a natureza. Umberto Eco acrescenta: “toda língua é um tesouro social: não só o conjunto de suas regras gramaticais, mas todo o acervo produzido por seus desempenhos”.

Uma língua desaparece quando morre seu último falante. Mas, em seus derradeiros tempos de vida, quando não tem mais com quem conversar em sua língua nativa, essa pessoa deve sentir uma profunda melancolia, uma sensação de estar vivendo em outro planeta: suas experiências e lembranças, as coisas que faziam sentido em seu mundo, nada disso os outros podem compreender porque essas vivências só podem ser expressas numa língua que ninguém mais entende. Condenado ao monólogo, ou a falar de realidades que não são as suas, esse indivíduo deve sentir alívio ao cerrar os olhos pela última vez.

Mas não são só as culturas ditas primitivas que estão desaparecendo, deixando seus últimos guardiães desarvorados. A cultura letrada, de um modo geral, está morrendo, e este não é um problema exclusivamente brasileiro, embora aqui esse fato seja mais gritante por conta do descaso criminoso de nossos governantes, presentes e passados.

Há poucas décadas, fazer contas de cabeça ou conjugar os verbos corretamente (isto é, segundo a norma gramatical) eram atos banais para qualquer cidadão escolarizado. Hoje, nem mesmo caixas de banco ou de supermercado conseguem fazer uma simples soma sem recorrer à calculadora eletrônica. E ficam surpresos quando eu, mentalmente e mais rápido que eles, chego ao resultado correto enquanto ainda estão abrindo a gaveta, retirando a maquininha, ligando-a, digitando os números para ao final obter a mesma resposta que eu já havia obtido. Vezes sem conta recebi elogios por fazer algo que muitas pessoas da minha geração sabe fazer tão bem quanto eu.

Em outras ocasiões, sou olhado como se fosse um E.T. só porque digo que eu e minha esposa somos casados há 15 anos, já que o esperado é que eu diga que eu e a minha esposa, a gente é casado há 15 anos.

Expressões idiomáticas, anedotas, provérbios, alusões históricas, nada disso faz sentido hoje em dia. As pessoas simplesmente perderam a referência cultural que embasava esses enunciados. Num tempo em que quase ninguém mais lê, a não ser revistas de celebridades e postagens em redes sociais, dizer que a luta contra a corrupção no Brasil é como combater moinhos de vento causa perplexidade, quando não riso. Quem hoje em dia conhece Dom Quixote de la Mancha? Quem já ouviu falar (ler é pedir um pouco demais) em Miguel de Cervantes ou no Cavaleiro da Triste Figura?

Quando um famoso (e já idoso) narrador esportivo grita diante de um perigoso chute a gol “Pelas barbas de Netuno!”, será que alguém sabe do que se trata? Talvez alguns, pensando no planeta Netuno, que afinal frequenta os horóscopos, se perguntem: “ué, e planeta tem barba?”.

Pessoas escolarizadas da minha geração (e olha que ainda não cheguei à terceira idade) devem se sentir como o velho índio que pensa em seu idioma, mas não tem como traduzir seus valores culturais para o homem branco, talvez não porque faltem palavras (alguma tradução sempre é possível), mas porque falta o sentido.

Os mais “velhos” – e embora se viva cada vez mais, fica-se obsoleto cada vez mais cedo – são estrangeiros ou alienígenas em meio a uma juventude cujo acesso a um legado cultural milenar e aos valores de civilização foram substituídos por videogames, facebooks, twitters, reality shows, por uma escola imbecilizante (apesar, ou talvez por causa, da tecnologia), mais preocupada em doutrinar do que em educar, e por uma família ausente e consumista, para quem o ter é mais importante do que o ser.

Ironicamente, a cultura branca ocidental, que tantas línguas e culturas matou, está provando uma dose cavalar de seu próprio remédio.

3 comentários sobre “A morte da cultura

  1. Caro Bizzocchi,

    Não sabia que a coisa andava tão mal. É acabrunhante. Mas – acredite – não se trata de fenômeno global. No mundo francófono em que vivo, ainda se pode falar das barbas de Netuno, da coxa de Júpiter ou da riqueza de Creso sem abalar ninguém.

    O brasileiro não é mais nem menos inteligente que qualquer outro terráqueo. O problema é ele ter sido, desde sempre, maltratado pelo andar de cima. Enquanto, em outras sociedades, o indivíduo é puxado para cima, na nossa ele é empurrado para baixo.

    Iniciativas, às vezes bem intencionadas, são tomadas sem critério. Plantam-se faculdades, mas ninguém se preocupa em elevar o nível da Instrução Pública. Assim, escolas superiores tornam-se elefantes brancos, lindos, mas inatingíveis. Pra contornar o problema, criam-se quotas variadas. Elas podem até aparecer bem na foto, mas não suprem as lacunas do aprendizado.

    E assim vamos, assistindo impotentes à implantação de uma nação de súditos incultos, monoglotas, ingênuos, de futuro obturado, incapazes de pensar com os próprios miolos. Uma tristeza.

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  2. Caros Aldo e José,

    Ao mesmo tempo que entendi prontamente o que disseram, e disseram-no com toda a justeza, não posso deixar de sorrir à lembrança, que também me veio prontamente, de que pessoas escolarizadas da sua idade (do Aldo, que mencionou outro dia ter completado 60 anos), e, às vezes, muito mais novas, quando propensas à caturrice (como eu, que ainda estou por completar 40), lamentam a decadência cultural dos seus compatriotas mais jovens desde, pelo menos, os tempos de Sócrates, senão desde muito antes.

    Como é um fenômeno universal e atemporal, suponho que resulte da consciência que a elite intelectual tem, ao mesmo tempo, da sua própria superioridade cultural e da nem sempre (quase nunca) correspondente superioridade social e econômica: deve ser inevitável que quem aprecia os bens culturais elevados desenvolva, ao longo da vida, algum ressentimento daqueles que não os apreciam e que, não obstante a própria ignorância, acabam por se dar igualmente bem na vida, quando não melhor.

    Daí a ladainha sobre famílias para quem o ter é mais importante que o ser.

    Ladainha que também eu, minha culpa, minha máxima culpa, entoo todos os domingos da baixeza do meu púlpito; eu que, conquanto não possa reclamar, e não reclame, da vida, me dei menos bem do que parentes próximos a quem faltam todas essas, e outras tantas, referências; mas a minha culpa não me cega à evidência de que esse lamento é lugar-comum há mais de dois mil anos.

    A despeito dele, todos os lugares e todas as épocas têm, e continuarão a ter, os seus Cervantes e as suas Anittas.

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