Docente tem a ver com educar?

Bom dia, mestre Aldo. Li ou ouvi em algum lugar que a palavra “docente” é da mesma origem que “educar”,
“educação” etc… Então por que o “o” se transformou em “u” (ou vice-versa)? Isso era comum em latim? Obrigado.
Fábio Lucas Garcia

Do ponto de vista semântico, meu caro Fábio, claro que “docente” tem a ver com “educação”. Já do etimológico, não há nenhuma relação, a não ser uma dessas semelhanças fortuitas que geram os chamados parônimos (palavras de forma gráfica ou fonética parecida) que dão muito pano pra manga.

Em primeiro lugar, a transformação de o em u só se deu em latim num caso muito específico: em sílaba final átona, na passagem do latim arcaico para o clássico. Foi assim que equos e lupos se tornaram equus e lupus. Também tínhamos uma oscilação dialetal entre u e o em algumas palavras, como vulgus e volgus, mas nesse caso a vogal era sempre seguida de r ou l.

Quanto a “docente”, trata-se do particípio presente do verbo docere, “ensinar”, que resultou tanto num substantivo quanto num adjetivo (em “corpo docente”, por exemplo). Já “educação”, “educativo”, “educar”, etc., derivam todos do verbo educare, formado do prefixo e-, forma variante de ex- (“para fora”) e ducare, por sua vez variante de ducere, “conduzir”. Portanto, educare era literalmente “levar para fora”. A primeira motivação da palavra era bem concreta: “criar, alimentar, amamentar” (neste caso, poderíamos pensar em “trazer para fora” o leite materno alojado no seio). Mas também “ter cuidado com, cuidar de”, o que é um sentido mais abstrato derivado do anterior. Finalmente, temos “educar, instruir, ensinar”.

Nesse ponto, os etimólogos divergem sobre como “conduzir para fora” passou a ter o sentido de “educar”. Alguns acreditam que o termo tenha a ver com “levar a criança para fora de casa” (no caso, para a escola). Na Grécia antiga, por sinal, havia até um escravo incumbido dessa tarefa: o pedagogo (de pais, paidós, “criança”, e agogós, “guia, condutor”).

Desse sentido mais literal passa-se a um outro mais metafórico: levar a criança para o mundo lá fora. Portanto, educar seria preparar os pequenos para enfrentar os desafios que, quando adultos, eles encontrarão fora de casa.

Com a evolução das línguas, as palavras mudam de significado, e o pedagogo deixaria de ser um mero escravo condutor de crianças para tornar-se o mestre, o condutor da vida dos cidadãos; igualmente, educar deixaria de ser um mero “levar para fora”, vindo a ter o amplo sentido que tem hoje.

Em resumo, já que os verbos docere e ducere têm raízes e significados diferentes, não há relação etimológica entre “docente” e “educação”, mas apenas, como disse no início, em termos semânticos.

5 comentários sobre “Docente tem a ver com educar?

  1. Interessante, o Latim arcaico era mesmo mais próximo do Grego então. Pelo que sei, o Grego usa o sufixo -os até hoje… Não sei se procede, mas uma vez um amigo me disse que o Latim surgiu porque os romanos de Latus juntaram o Grego com uma língua itálica arcaica que eles falavam para diminuir o risco de espionagem nas guerras, algo nessa linha…

    Já o vulgus vs. volgus imagino que seja uma raiz indo-européia, pois em Inglês por exemplo tem a palavra folk que também significa “vulgar” ou quase isso.

  2. De fato, a desinência do nominativo singular da segunda declinação era -os em latim arcaico assim como em grego. Posteriormente, -os evoluiu para -us. Quanto a essa história de os romanos do Lácio misturarem grego com uma língua itálica, não há o menor fundamento.
    Quanto a “vulgus/volgus”, são variedades dialetais, ambas provenientes do indo-europeu *wlgos. Já o inglês “folk” e o alemão “Volk” provém do germânico *fulkam, da raiz indo-europeia *plg-. Ou seja, a semelhança entre o latim e as línguas germânicas é fortuita, não havendo parentesco.

    1. Ficou um pouco confusa a sequência em que se diz que vulgus e volgus são variedades dialetais provenientes do indo-europeu *wlgos, ao passo que folk e volk provêm do germânico *fulkam, do indo-europeu *plg-, e em que, logo depois, se diz que a semelhança entre latim e línguas germânicas é fortuita, não havendo parentesco.

      Latim e línguas germânicas são ambas indo-europeias, parentes em grau distantíssimo. Num parágrafo em que se diz não serem parentes (em grau próximo), de modo que é temerário atribuir origens comuns a vocábulos superficialmente parecidos destas línguas, em que pese a serem ambas indo-europeias (parentes em grau distante), não faz sentido fazer remontar a variação dialetal vulgus/volgus ao indo-euiropeu.

      É possível que me escapasse alguma sutileza, mas me pareceu confuso, pelo motivo que apontei.

      1. Rodrigo, talvez eu de fato não tenha sido suficientemente claro, mas a variação “vulgus/volgus” é de natureza dialetal em latim e não em indo-europeu. O “l” soante (com papel de vogal) do indo-europeu evolui para “ul” ou “ol” nas línguas protoitálicas, dependendo da variedade. Em alguns casos, foi a forma “ul” que passou ao latim literário; em outros casos, foi “ol”; e há ainda casos, como o citado, em que ambas as formas foram integradas à norma.
        Latim e germânico são ambos descendentes do indo-europeu, portanto parentes, mas a semelhança entre lat. volgus e ing. folk é fortuita, pois essas formas provêm de raízes distintas, a saber, *wlg e *plg.

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