O particípio presente em português

Como se sabe, são três as formas nominais do verbo: o infinitivo, o gerúndio e o particípio, este dividido em particípio presente, de sentido ativo (amante, vivente, seguinte), e particípio passado, ou pretérito, de sentido passivo (amado, vivido, seguido). No entanto, o particípio presente não costuma ser considerado uma forma verbal legítima em português. Por quê?

Primeiramente, lembremos que as formas nominais do verbo servem para formar tempos compostos (vou fazer, estou fazendo, tenho feito). E não há nenhum tempo composto formado com particípio presente (algo como estou fazente). O próprio exemplo esdrúxulo que acabo de dar demonstra que a maioria dos verbos em português não tem particípio presente (alguns poetas, como Drummond, brincam com isso inventando particípios que não existem: “ser pensante, sentinte e solidário”). Tampouco há orações reduzidas de particípio presente em nossa língua.

Em muitos idiomas, o particípio presente é uma forma verbal genuína. As línguas germânicas, que, com exceção do inglês, não têm gerúndio, usam em seu lugar esse particípio. Em italiano e alemão, é possível e até corriqueiro dizer coisas como “todos os funcionários trabalhantes no setor de produção terão férias coletivas”. Em português, só se pode dizer “todos os funcionários que trabalham no setor” (mesmo a construção gerundiva “todos os funcionários trabalhando no setor” é condenada pela maioria dos gramáticos).

Outro indício de que o particípio presente não é uma forma verbal legítima do português é que muitos desses particípios têm etimologia diferente da do verbo a que correspondem (em geral, são empréstimos cultos, enquanto os verbos são palavras vernáculas). Vejamos alguns exemplos: ver/vidente, carecer/carente, sentir/senciente, cair/cadente, intervir/interveniente, etc. Se tais particípios derivassem de fato dos verbos, teríamos vente, carecente, sentinte, cainte, intervinte, etc.

Portanto, o particípio presente é, na verdade, um adjetivo formado a partir do verbo mediante o sufixo ‑nte, ou mesmo importado do latim, que, como adjetivo, pertence à classe dos nomes e não à dos verbos.

Portanto, nossa língua é bem pobre em matéria de tipos de particípio (só temos o particípio passado passivo), exceto pelo fato de que alguns verbos admitem dois tipos de particípio, o longo e o breve (aceitado/aceito, pagado/pago, etc.).

Ao contrário, línguas como o grego têm particípios ativos e passivos no presente, pretérito e futuro. O esperanto, idioma artificial criado para ser prático e lógico, segue esse padrão. Na língua inventada por Ludwig Zamenhof, a vogal temática -a- indica o presente, -i- o pretérito, e -o- o futuro. O sufixo -nt- representa a voz ativa, e -t- a voz passiva. Temos, então, para o verbo ami, “amar”:

  • amanta = que ama, que está amando;
  • aminta = que amou ou amava;
  • amonta = que amará;
  • amata = que é ou está sendo amado;
  • amita = que foi ou era amado;
  • amota = que será amado.

Em português, temos alguns adjetivos ou substantivos com sentido de particípio presente ativo (cambiante, reluzente, constituinte) e uns poucos com sentido futuro ativo (vindouro, duradouro, imorredouro) ou passivo (formando, reeducando). Por isso, usamos por vezes um particípio pretérito passivo em função não pretérita ou não passiva. Por exemplo, quando empregamos necessitado com significado de “pobre, carente”, note que o sentido é presente e ativo: a necessidade de ajuda existe hoje, e a pessoa em questão necessita, não é necessitada por alguém. Portanto, o indivíduo carente deveria ser necessitante e não necessitado.

Do mesmo modo, quando digo que um filme é divertido, não estou querendo dizer que ele foi divertido por mim (pretérito passivo) e sim que ele me diverte (presente ativo). Em italiano se diz no mesmo caso que o filme é divertente.

Ainda segundo essa lógica, o indivíduo malcheiroso não deveria ser fedido, mas fedente, o intrometido deveria ser abusante e não abusado, e assim por diante.

Essa ambiguidade no uso dos particípios em português é o que enseja trocadilhos como o do sujeito que, recusando o convite para almoçar, responde: “Obrigado, mas já estou comido”.

30 comentários sobre “O particípio presente em português

  1. Tenho a impressão de que esse uso das formas gerundivas, presente na fala coloquial mas condenado pelos gramáticos, como você bem citou, é uma maneira de ocupar esse espaço deixado pela ausência de verdadeiro particípio presente em português. Já está presente em muitos textos escritos, inclusive na imprensa, e chegará o momento em que será incorporado à norma padrão, sem dúvida.
    Quanto aos particípios do esperanto, sua descrição é sucinta e precisa: eles permitem formar locuções que se traduzem em português, geralmente, por uma oração subordinada adjetiva iniciada por QUE ou similar.

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  2. “Se tais particípios derivassem de fato dos verbos, teríamos vente, carecente, sentinte,cainte, intervinte, etc.”

    Não é bom argumento.
    “Bom dia a todos os Ouvintes.”

    Veja bem, é ouvintes, não audintes.

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    1. Você pegou um caso isolado – sim, “ouvinte” deriva regularmente de “ouvir”, mas isso não é regra geral, e para que possamos afirmar que o português tem particípios presentes seria necessário que TODOS os verbos admitissem tal forma, o que não é o caso. Além disso, os particípios (presente, futuro, etc.) são formas verbais com função de adjetivo. E a palavra “ouvinte” é quase sempre usada como substantivo, o que caracteriza derivação imprópria.

      1. Bom.

        Quem nunca disse:
        “Minha mão está dormente”

        Veja bem, é dormente, não dormiente, nem dormindo, tampouco a dormir.

        Mais um caso isolado?

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      2. “Além disso, os particípios (presente, futuro, etc.) são formas verbais com função de adjetivo.”

        Exatamente, e é por isso que significam particípio, como eu mencionei em sumo comentário

        Participio é uma forma nominal verbal que CAPTuram numa palavra PARTes de outras funções gramaticais.

        Participium est vocabulum quod partes significationemque capit alienorum generum vocabulorum.

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      3. Agora a exigência de que TODAS os verbos haveriam de admitir tais formas é um pouco arbitrário. Nem no latim todos os verbos tinham particípios.

        Existem muitos verbos irregulares, hoje inclusive menos do que antes.

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      4. De fato, nem todos os verbos latinos tinham particípio, só que o particípio que às vezes faltava era o passado (ou supino) e não o presente, que sempre existia. Em português, ao contrário, a maioria dos verbos não admite adjetivos derivados em -ante, -ente ou -inte. Ou seja, não há um paradigma regular de flexão desse suposto particípio presente. Além disso, como já disse anteriormente, o fato de que algumas dessas formas terminadas em -nte são herdadas, outras são criações internas e algumas ainda são importações por via culta reforça a inexistência desse paradigma flexional, além das razões que eu já mencionei no meu próprio artigo, como a impossibilidade de formar tempos compostos com esse “particípio”.
        Nesse sentido, a simples existência de um verbo em português e um correspondente adjetivo derivado em -nte (p.ex., marcar/marcante, interessar/interessante, distar/distante, atrair/atraente, etc.) não configura flexão de particípio e sim derivação. Se assim não fosse, teríamos que admitir também que formas como arrebatar/arrebatador, provocar/provocativo, explorar/exploratório, etc. são particípios em -dor, -tivo, -tório, etc., o que não faz o menor sentido.

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  3. Discordo. Primeiramente discordo que existam somente essas formas nominais do verbos, haja vista o excesso de vocábulos como mestrando, doutorando, graduando. “Ah mais isso é gerúndio”. Não, isso é gerundivo, comprovado nas versões femininas, mestranda, doutoranda, graduanda, vestibulanda, locanda, propaganda,

    O gerundivo é um particípio futuro passivo: mestranda, aquela que deve ser vertida em mestre. Particípio sim pois mantem função de ação futura, adjetiva e substantiva, podendo, como já feito, ser sujeito em orações.

    Em segundo lugar, discordo de regras gramaticais rígidas fixadas por gramáticos empedrando o idioma. Veja bem sou Médico, não raro recebo pacientes asmáticos. Soemos nomear bebês chiadores por lactentes sibilantes. São 2 particípios presentes juntos aqui e como sabemos particípio são termos que capturam (capere/ pars cipere/ participium) partes de funções gramaticais como nome ou substantivo, adjetivo e verbo. Acredito que seja falta na qualidade da formação em latim que levam os gramáticos a esquecerem o significado de particípio, que é patente uma vez estudado. Assumir função de adjetivo ou de sujeito não o faz deixar de ser particípio, vocábulo que tem essa função versátil.

    Pois bem, lactente sibilante é um infante que assobia/assovia ou sibila ao respirar e está sibilante ou sibilando naquele momento do exame físico e anamnese médica.

    De fato e praxe, até mesmo dizemos – A criança está sibilante – e usamos o particípio como verbo na locução.

    A linguagem técnica é um nível de linguagem como tantos outros e sabemos que existem infinitas variantes diastráticas do idioma português.
    O verbo laudar e conjugações nem dicionarizados são, muito embora usamos quotidianamente durante a prática. Isso faz do seu uso errado?

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    1. Os gerundivos que você menciona são todos substantivos, portanto, conforme minha resposta anterior, não podem ser considerados particípios de verbos e sim substantivos derivados de verbos. O exemplo que você dá envolve a palavra “lactente”, que é substantivo, e “sibilante”, adjetivo derivado do verbo “sibilar” (na verdade, um empréstimo do latim ‘sibilans’). Ou seja, novamente seu argumento esbarra em características que não podem ser consideradas de um legítimo particípio: não ter função adjetiva, não ser forma flexional de todos os verbos, ser empréstimo culto e não formação intralinguística, etc.

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  4. O que crás será alvo de proscricão dos gramáticos? Se formos considerar como padrão aquilo que a maioria dos falantes de português dizem então quando é que irão dar adeus ao verbo ir no futuro do indicativo, bem como todos os verbos na sua segunda conjugação do singular. A maioria dos lusófonos não os pronunciam. Sim maioria, 10 milhões é menos de 5% de 210 milhões.

    Sorte a minha ser paraense e poder praticar o tu fazes, tu fizeste, tu fazias, tu farás desde criança. Um dos poucos locais do Brasil onde a prática é sólita.

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  5. Muito útil! Estou aprendendo holandês e fiquei cheia de dúvidas com os vários tipos de particípio – cuja equivalência não estava funcionando em português .Graças a este post consegui elucidar o mistério! Não temos o particípio presente! Dank u vel!

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  6. Parabéns pela matéria, Aldo, – que parece ser esperantista. Parabéns, também, a todos que contribuíram com os comentários.
    Esse assunto é muito interessante. Conheci-o por meio do Esperanto.

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  7. Cheguei aqui através de pesquisas no Google por conta de um vídeo postado no Instagram, que mostra uma discussão de políticos em um país que fala espanhol (não faço idéia de qual) o motivo da desavença é a palavra presente, onde nessa contenda a mulher pede pra ser respeitada e chamada de presidENTA, e o rapaz dar uma aula pra ela.

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  8. Estudo línguas e creio ser o particípio ativo estar bem vivo para mim e o uso correntemente.
    Se existe uma fala é porque há um falado e ao mesmo tempo um falante do verbo falar. Essa regra vale para todos os verbos latinos.
    Sou purista.

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    1. Acho que você não compreendeu o ponto central da minha argumentação (se for preciso, leia o texto de novo). Eu não afirmei que não existem em português formas terminadas em -ante, -ente ou -inte, o que estou dizendo é que essas formas não são particípios porque não são verbos, são adjetivos ou substantivos. Por exemplo, “falante” é um adjetivo que também pode ser usado como substantivo, mas não é uma forma verbal. Se as palavras terminadas em -ante/-ente/-inte fossem formas verbais, todos os verbos as teriam (como têm um particípio passado), mas, se existe “falante”, não existe “calante” nem “escutante”; se existe “amante”, não existe “odiante”, e assim por diante. Como afirmei no artigo, das línguas românicas só o italiano tem o particípio presente; das germânicas, o alemão, o holandês e as línguas escandinavas. Portanto, não confunda adjetivos terminados em -nte com o verdadeiro particípio presente, bem como não confunda adjetivos terminados em -ado ou -ido (como “entusiasmado” e “dolorido”), com o particípio passado.

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  9. Caro Bizzocchi,

    Obrigado pelo excelente artigo.

    A pergunta feita por um colega comentarista sobre particípio presente em francês me fez cogitar. Ignorante no assunto, fui pesquisar. Encontrei um bom artigo que explica bem a diferença entre particípio presente, gerúndio e adjetivo verbal [participe présent, gérondif et adjectif verbal].

    Percebi que os dois conceitos (part.presente e gerúndio) coexistem. Embora tenham a mesma forma (terminação em -ant), podem ser facilmente distinguidos.

    O gerúndio é sempre precedido da partícula en.
    Chanter = En chantant
    Se promener = En se promenant
    S’en aller = En s’en allant

    Já o particípio presente dispensa essa partícula.

    Aqui está o artigo:
    https://www.scribbr.fr/elements-linguistiques/gerondif/#:~:text=Le%20gérondif%20se%20compose%20toujours,ant%20est%20un%20participe%20présent.

    Depois de ler esse texto, me pergunto se, em nossa língua, não fizemos uma salsicha com os dois conceitos, um amálgama que acabou nos convencendo de que o particípio presente faleceu e só o gerúndio sobreviveu.

    Veja que curioso. Tomemos o verbo esperar

    Esperando a chegada do trem, jogavam baralho.
    (me parece transmitir a ideia de um part. presente)

    Enquanto o trem não chegava, continuavam esperando.
    (me parece ocupar a função de gerúndio)

    Embora a forma esperando seja idêntica nos dois casos, me parece que a função dessa palavra é diferente em cada frase.

    Não me chocaria a tese de que a desinência [-ente, -ante, -inte] se tenha especializado em indicar o adjetivo
    Temente, informante, ouvinte

    Enquanto isso, as formas verbais do particípio presente e do gerúndio adotaram o mesmo final [-endo, -ando, -indo].

    O que é que você acha?

    Grande abraço.

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    1. Meu caro Manzano,

      É interessante a sua colocação, bem como o artigo que você cita, porque de fato o gerúndio nasce do particípio presente (“amando” em latim é uma forma arcaica de caso ablativo do particípio ativo “amans”, a partir do passivo “amandus”), o que leva à confusão entre essas duas classes gramaticais. No entanto, note que estou falando em classes gramaticais, portanto em morfologia da palavra, e não em funções sintáticas, isto é, em sintaxe da frase.

      Do mesmo modo como o particípio passado pode funcionar como adjunto adnominal, adjunto adverbial ou verbo, o particípio presente/gerúndio também pode exercer essas funções. Observe:

      • adjunto adnominal: “As crianças brincando no quintal estão felizes.”
      • adjunto adverbial: “Brincando, as crianças são felizes.”
      • verbo: “As crianças estão brincando no quintal.”

      Como disse, o particípio presente é uma classe gramatical e não uma função sintática. Assim como o particípio passado (ou particípio pretérito, como é mais corretamente denominado), ele admite flexão de gênero e número. Portanto, se tivéssemos um particípio presente em português do verbo “brincar”, ele seria “brincante”/”brincantes”. Ora, “brincando”, assim como o francês “jouant”, não admite tal flexão (não existe *“jouante”, *“jouants”, *“jouantes”). O que temos em português e também em francês são os adjetivos verbais (mais corretamente chamados de adjetivos deverbais, porque derivam de verbos). Exemplos como os do site (“amusante”, “convaincants”, “fatigante”) também existem em português, mas somente uns poucos verbos os têm, eles não são nem particípios nem gerúndios: são adjetivos. Por exemplo, “estimulante”, “recalcitrante”, “convincente”, “constituinte”, etc. Note que alguns nem sequer são de fato derivados de verbos em português: “convincente” não deriva de “convencer”, ou seria *“convencente”; trata-se de um empréstimo culto do latim “convincens”. Outros sequer têm um verbo do qual derivar: “lactante”, “lactente”, “impaciente”, “frequente”, “patente”, “latente”, “consciente”…

      Em francês, temos:

      • adjunto adnominal: “Les enfants jouant dans la cour sont heureux.”
      • adjunto adverbial: “En jouant, les enfants sont heureux.”
      • verbo: “Les enfants jouent dans la cour.” (O francês não tem os tempos cursivos como o “present continuous” do inglês.)

      Observe que, se o adjunto adnominal fosse um particípio presente, teríamos “les enfants jouants” como temos em italiano “i bambini giocanti” (e não “i bambini giocando”).

      Na verdade, o francês tem apenas gerúndio. O que ocorre é que, dependendo da função sintática, esse gerúndio deve ou não ser precedido da preposição “en” da mesma forma como o inglês tem o infinitivo precedido ou não da preposição “to”. Em “I have to go there”, temos “to go”; já em “I must go there”, temos apenas “go”.

      O site que você indicou mostra a classificação das palavras francesas terminadas em “-ant” segundo a gramática tradicional e não segundo a linguística. A classificação tradicional, baseada num modelo de 2.300 anos atrás, é bastante falha e obviamente pouco rigorosa em termos científicos, inclusive misturando conceitos de morfologia e de sintaxe.

      Desculpe se me alonguei, mas explicar esse ponto não é tarefa simples.

      Um grande abraço!

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