Os muitos significados de “dar”

A maioria das palavras de qualquer língua é polissêmica, isto é, tem  mais de um significado. Na verdade, muito poucas são as palavras monossêmicas, aquelas que significam uma só e única coisa, como hexaclorofeno ou tromboflebite. Entre as campeãs da polissemia em português está, sem dúvida, o verbo “dar”. Basta “dar” uma consultada no dicionário para constatar o sem-número de acepções desse vocábulo (o Michaelis, edição 2002, dedica uma página e meia, o equivalente a cinco colunas, a esse verbete).

É fácil perceber como tal verbo se presta às mais variadas necessidades expressivas. Numa simples frase como “Agora deu pra dar pernilongo nesta casa”, “dar” significa “começar” e a seguir “aparecer”. Para muito além do sentido original de ofertar algo a alguém (“João deu o livro à sua irmã”), esse verbo foi assumindo outras nuances, algumas inusitadas e imprevisíveis. Afinal, se é possível dar coisas concretas (um livro, maçãs, dinheiro), também se pode dar coisas menos palpáveis, como um beijo ou um tapa. Daí para “dar uma olhada”, “dar cabo”, “dar com a cara na porta” (ou “com a língua nos dentes”) foi um pulinho.

Vejamos apenas alguns dos inúmeros significados de “dar”.

  • Fazer, executar: dar uma limpada no quarto, dar um escândalo;
  • Importar-se: pouco se me dá que ele não tenha gostado;
  • Brotar: em se plantando, tudo dá;
  • Produzir: esta terra dá de tudo;
  • Ser possível: não deu para esperar por ele;
  • Fazer sexo: ela dá para qualquer um;
  • Ocorrer: faço o que me dá na telha;
  • Passar-se por: ele vive dando uma de rico;
  • Bater: vou dar na cara desse idiota;
  • Ser veiculado: essa notícia não deu nos jornais;
  • Chegar: andei tanto que fui dar em outra cidade;
  • Resultar: de um jeito ou de outro dá no mesmo;
  • Bastar: pra mim já deu!

O citado Michaelis “dá” 59 acepções da palavra, algumas delas com outro tanto de sub-acepções. E, com certeza, nem todos os sentidos correntes na fala diária estão contemplados. Afinal, novos empregos desse verbo surgem a todo momento, e a gente nem se “dá” conta.

“Dar” não é só um dos verbos mais polissêmicos do português, mas quem sabe de todas as línguas europeias (talvez apenas o inglês “get” supere o nosso “dar”). Dá para acreditar?

3 comentários sobre “Os muitos significados de “dar”

  1. Ótimo texto. “Fazer” também pode ter vários sentidos, mas parte da sua polissemia me parece diferente da de “dar” (soou mal!) por ocorrer em função de ser ele (fazer) um verbo vicário. É interessante saber até que ponto se pode considerar esse… vicariato como um caso de polissemia. Por exemplo: “Você ainda não mergulhou na piscina. Faça agora.” O dicionário não dá “fazer” como sinônimo de “mergulhar”. O vicariato seria mais uma função, um papel, do que um caso de polissemia, não?

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    1. Sim, Chico, as palavras vicárias, ou palavras-ônibus, como também são chamadas, são palavras “vazias”, isto é, gramaticais, que se “preenchem” de significado lexical. Nesse sentido, elas são como os pronomes, que substituem nomes. Já o verbo “dar”, que quase sempre é transitivo direto, é polissêmico no sentido de que significa muitas coisas, mas não é necessariamente um substituto – embora possamos em muitos casos substituí-lo por um sinônimo.

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  2. Caro Chico,

    É interessante também perceber como o objeto nulo é uma característica marcante do português brasileiro, mesmo o escrito culto como o seu, inclusive em casos de retomada anafórica:

    “Você ainda não mergulhou na piscina. Faça [Faça-o] agora”.

    Um abraço,
    Rodrigo.

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