Objetos e pontos de vista

Em seu Curso de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure ensinou que é o ponto de vista que cria o objeto. Dentre os muitos pontos de vista possíveis sobre o fenômeno língua, a ciência da linguagem sempre oscilou entre dois principais: o diacrônico, isto é, que analisa a língua em seu desenrolar no tempo, tendo, pois, um enfoque eminentemente narrativo; e o sincrônico, que faz um corte na história das línguas como quem bate um instantâneo, ignorando o antes e o depois e fazendo uma abordagem descritiva.

Ambas as perspectivas são úteis, já que não é possível ter uma compreensão plena de um objeto multidimensional olhando-o de um único ângulo. No entanto, dependendo do fim a que se presta, cada abordagem tem suas vantagens e desvantagens. Como analisar, por exemplo, a morfologia da palavra “comer”? De um ponto de vista histórico, “comer” vem do latim comedere, “comer juntos”, formado do prefixo com-, “juntos”, do radical ed-, “comer”, da vogal temática -e- da segunda conjugação e da desinência de infinitivo -re. Portanto, comedere se analisa como com-ed-e-re.

Na evolução fonética, o e final caiu (diz-se que sofreu apócope), e posteriormente o d intervocálico teve o mesmo destino (que nesse caso se chama síncope). Como resultado, comedere passou a comeer em português medieval. Depois, os dois ee se fundiram num processo chamado crase, dando o atual “comer”. Consequentemente, o processo evolutivo pode ser representado assim:

com-ed-e-re > com-ed-e-r > com-e-e-r > com-Ø-e-r
(Ø representa o morfema zero)

Ou seja, por um capricho da evolução cega, o radical ed-, a alma da própria palavra, desapareceu, só tendo restado os morfemas periféricos. Porém, numa visão puramente sincrônica, diremos que o radical de “comer” é com-, logo analisamos “comer” como com-e-r.

Qual das duas interpretações está correta? Ambas. Um falante ingênuo (isto é, aquele que não tem conhecimento técnico da história da língua) faz a segunda análise e isso é quanto lhe basta para operar com proficiência o código língua portuguesa. Ao ensinar português a estrangeiros, o ponto de vista sincrônico é muito mais útil (contar ao falante estrangeiro toda a história da língua portuguesa será de bem pouca valia se o que queremos é que ele simplesmente se comunique com falantes do português sem mal-entendidos).

Já a compreensão de certas irregularidades do idioma que tanto embaraçam nossos estudantes (e não apenas eles) fica facilitada se lançamos uma luz sobre a história das mudanças linguísticas que ensejaram essas irregularidades. Até mesmo o estudo do latim, infelizmente abolido de nossas escolas há muitos anos, seria um grande trunfo para compreender o porquê dessas formas irregulares e assim driblar esses percalços.

Como Saussure também ensinou, a língua é forma e substância, entendendo-se forma como função e substância como elemento material que desempenha uma função. Toda mudança começa pela substância, isto é, pela casca mais externa da língua. Só que, à medida que a substância muda, elementos distintos podem confundir-se, elementos semelhantes podem diferenciar-se, um elemento crucial ao desempenho de uma função pode simplesmente desaparecer.

Como numa empresa, a mudança de membros de uma equipe pode forçar uma reestruturação dos cargos. Se os elementos que exercem funções mudam, as funções também podem se ver obrigadas a mudar. O que aconteceu com o verbo “comer” foi exatamente isso: o desaparecimento do radical ed- fez o prefixo com- ser promovido a essa função. Uma mutação fonética repercutiu primeiro no sistema fonológico, a seguir no morfológico para chegar ao semântico.

Já que ambas as perspectivas são necessárias à compreensão da língua, é uma pena que alguns teóricos, ao adotar uma delas por razões metodológicas, recusem a validade da outra, criando um clima propício ao conflito ideológico dentro de uma área que, por ser científica, deveria primar pela objetividade e neutralidade.

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Em tempo: pensei em escrever uma crônica sobre as 100 mil mortes pela covid-19 no Brasil, mas desisti, pois iria chover no molhado: tudo o que podia ser dito a respeito já o foi, e tudo o que foi ou for dito não mudará a realidade. Temos governantes que governam a favor da doença e contra a população, e temos uma população embotada pela tragédia. Uns simplesmente se acostumaram ao obituário cotidiano e naturalizaram o que não deveria ser natural; outros decidiram viver como se não houvesse covid amanhã: o mais importante para estes é correr para os shoppings, para as  festas clandestinas, para as grandes aglomerações do comércio de rua…

Há um velho dito popular de que cada povo tem o governo que merece. Uma grande parte de nosso povo merece o governo que tem.

5 comentários sobre “Objetos e pontos de vista

  1. A forma como o Governo e grande parte da população se portam com relação à covid-19 é de estarrecer. O alastramento das cruzes parece que não impressiona. Se uma coisa essa pandemia veio mostrar, é que cooperação e solidariedade escasseiam nos seres humanos.

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  2. Gostei muito das duas partes do texto. Interesso-me muito pelo ponto de vista diacrônico, ajuda-nos a entender muita coisa. Concordo que o latim não deveria ter sido abolido das escolas. “Parece” que no Brasil nós só andamos para trás.

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