O plural de “caráter”

Prof. Aldo, tenho uma dúvida que me acompanha há anos: a palavra “caráter” admite plural? Se sim, qual seria? Obrigado.
Ivan A. Castro

Essa pergunta me faz lembrar de uma ocasião em que, em seu programa de TV, Faustão se referiu a um certo artista como “um dos melhores caráteres do meio artístico”. Após dizer isso, o próprio apresentador olhou para a câmera com expressão de perplexidade, como se dissesse: “será que essa palavra existe?”.

Pois é, respondendo à pergunta do nosso leitor Ivan, se tomarmos por base a gramática normativa, o plural de caráter é caracteres. E o adjetivo bom-caráter (por exemplo, “ele é um sujeito muito bom-caráter”) não admitiria um superlativo melhor-caráter (“ele é o sujeito melhor-caráter que eu conheço”). Então quer dizer que Faustão errou duas vezes? Do ponto de vista normativo, sim. Mas como deveria ele dizer então? “Fulano é um dos profissionais mais bom-caráter do meio artístico”? Não me parece uma solução muito melhor.

O primeiro problema é a palavra caráter ter como plural caracteres. Além da óbvia irregularidade na flexão, caracteres já é plural de caractere, que significa “letra, sinal tipográfico”. Portanto, como saber se estamos falando sobre personalidade ou tipografia quando temos de usar o plural? O segundo problema é que bom-caráter é adjetivo composto. Então como passá-lo para o grau comparativo ou superlativo: mais bom-caráter? Será que mais bom não soa pior, pelo menos para os padrões brasileiros, do que melhor-caráter? (Em Portugal, mais bom é de uso corrente até na linguagem culta.)

O fato é que Faustão, na sua simplicidade, e até simploriedade, usou a língua com o bom-senso dos falantes ingênuos (isto é, não especialistas). O xis da questão é que, embora não seja sua intenção, a gramática normativa é cheia de “pegadinhas”. E essa é uma delas.

9 comentários sobre “O plural de “caráter”

  1. Caro Professor, gostei muito deste artigo, como, aliás, gosto dos outros. Só uma pequena observação em relação ao uso de «mais bom» em Portugal: esta forma não ocorre em lugar de “melhor”, a não ser em situações muito especiais como «este livro é mais bom do que mau». Parece-me que no seu texto a intenção era referir o uso de «mais bem» com particípios passados. Votos do maior sucesso com o seu blogue.

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    1. Será que o professor não foi induzido em erro pela extrapolação para “mais bom” do uso português de “mais pequeno”, que, este, sim, é corrente e não é taxado de erro, diferentemente do que ocorre no Brasil, em que é sempre considerado erro?

      A propósito, algum gramático brasileiro inventou que mais pequeno é erro, embora não fosse, ou os portugueses normalizaram o que era originalmente tido como erro?

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      1. Rodrigo, obrigado por chamar minha atenção para esse equívoco. De fato, construções como “mais pequeno” e “mais bem” devem ter-se misturado na minha cabeça e influenciado na hora de redigir o artigo. Quanto à questão de “mais pequeno” ser errado no Brasil e não em Portugal, o problema é que temos duas normas-padrão, a lusitana e a brasileira, enquanto outros idiomas transnacionais só têm uma. Falo sobre isso na resposta que dei ao seu comentário no artigo “Ah, que saudade do ‘a'”. Aliás, como digo ali, o português se afastou das outras línguas romances, nas quais “mais bom”, “mais grande”, etc. são perfeitamente gramaticais.

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      2. Boa noite! “Mais pequeno” não é erro, segundo a “língua exemplar” do Brasil. Quando se comparam qualidades de um mesmo ser, é possível usar “mais pequeno”. Ex.: Este carro é mais pequeno (do) que confortável.

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      3. Machado de Assis, em “Dom Casmurro”, e Manuel Bandeira, em “Estrela da Vida Inteira”, escreveram, respectivamente: “Quando era mais pequeno, metia a cara no vidro [. . .]”/ “Amo-te até nas coisas mais pequenas”.

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      4. Patrick, eu me refiro no artigo ao uso de comparativos como “mais pequeno” no sentido de “menor”, ou seja, comparando a mesma qualidade em seres distintos. No exemplo de Bandeira, a construção “coisas mais pequenas” é aceita pelos gramáticos brasileiros pelo fato de o adjetivo estar posposto ao substantivo; “amo-te até nas coisas menores” soaria muito mal. Além disso, os escritores e poetas são os únicos a ter direito a transgredir a norma-padrão em nome da licença poética. O fato é que, se eu escrevesse “Este carro é mais pequeno do que o meu”, choveriam críticas de leitores.

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