Quais vidas importam: as pretas ou as negras?

O assassinato do cidadão afro-americano George Floyd por um policial branco em Minneapolis, EUA, há cerca de duas semanas não só detonou um movimento mundial contra o racismo como também suscitou uma dúvida linguística. É que esse movimento antirracista tem como palavra de ordem a frase black lives matter, que aqui no Brasil tem sido majoritariamente traduzida como “vidas negras importam”. Entretanto, alguns jornalistas e outras personalidades formadoras de opinião apresentaram aqui e ali a tradução alternativa “vidas pretas importam”. E aí, qual é a tradução mais correta?

Para responder, precisamos entender o significado das palavras “preto” e “negro” em português, bem como de “black” em inglês.

Primeiramente, é preciso dizer que, das línguas europeias mais difundidas, só o português tem duas palavras, “preto” e “negro”, para designar a cor mais escura da gama cromática. E isso causa certo embaraço aos estrangeiros que aprendem português, bem como às crianças pequenas, que também estão começando a familiarizar-se com as sutilezas do idioma. Tanto que não é raro criancinhas dizerem “lápis negro” ou “blusa negra” e estrangeiros, “Mar Preto” ou “lista preta”.

Até o despertar da consciência negra, primeiro nos EUA com o movimento pelos direitos civis da década de 1960, depois também no Brasil, o termo mais usado para designar a raça oriunda da África era “preto”. Por exemplo, a santa padroeira dos escravos no período colonial era Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Em Portugal, os negros são chamados até hoje de pretos.

Já o IBGE (confira, por exemplo, www.diferenca.com/preto-pardo-e-negro) divide nossa população em cinco grupos étnicos, ou “raças”: branco, preto, pardo, amarelo (ou oriental) e indígena (ou índio). Trata-se de uma simplificação grosseira, mas necessária em virtude do tratamento estatístico por que passam os dados. Por exemplo, tanto o mestiço de branco e preto quanto o de branco e índio são considerados pardos (no senso comum, muitos dos chamados mamelucos ou caboclos são vistos como brancos). E onde fica o mestiço de branco e amarelo? Embora raras, essas pessoas teriam de enquadrar-se como brancas ou como amarelas, dependendo de quão puxados são seus olhos.

Mas o cerne da questão aqui é: “preto” ou “negro”, o que é melhor usar. Ou, dito de outro modo, qual das duas denominações é politicamente correta. Aqui surgem os mal-entendidos. No Brasil de hoje, “preto” em relação à cor da pele é considerado depreciativo; o politicamente correto recomenda dizer “negro”. Só que, para o IBGE, “negro” inclui “preto” e “pardo”, ou seja, é a soma de ambos os grupos. Numa simplificação bem reducionista, poderíamos dizer que negros são todos os afrodescendentes, sejam eles pretos puros (sem mistura) ou mestiços. Só que, como vimos, os pardos incluem mulatos (mestiços de branco e preto), cafuzos (preto e índio), caboclos (branco e índio) e ainda os mestiços de branco, preto e índio, cuja designação étnica no vernáculo este cronista desconhece.

Por outro lado, nos EUA, onde o racismo sempre foi mais declarado que no Brasil, o termo usual é black, ou seja “preto”, pois negro (pronunciado “nígrou”) é altamente ofensivo, significando algo como “negão”. Há ainda uma palavra mais injuriosa em inglês: nigger, corruptela de negro.

É interessante que, com exceção do espanhol, que só conhece a palavra negro tanto para cor quanto para raça, as demais línguas têm, como o português, duas palavras. Em francês, noir e nègre; em italiano, nero e negro; em alemão, schwarz e Neger; e assim por diante. A segunda de cada uma dessas designações é exclusiva de raça.

Portanto, no lema “black lives matter”, quais vidas importam: as pretas ou as negras (pelo critério do IBGE, bem entendido)? Penso que o racismo atinge não só os pretos puros e retintos, mas também os pardos, especialmente os mais escuros (há até a teoria do colorismo ou pigmentocracia, segundo a qual, quanto mais melanina, mais preconceito).

Nos EUA, não há meio-termo: quem não é branco puro, especialmente de origem anglo-saxônica, é black. Portanto, a melhor tradução em português é “vidas negras importam”, até porque o português brasileiro tem diversos termos eufemísticos (“moreno”, “moreninho”, “escurinho”, “de cor”, “queimado de sol”, “da cor do pecado”, etc.) que buscam pôr no mesmo balaio todos os afrodescendentes, tanto os puros quanto os mestiços.

4 comentários sobre “Quais vidas importam: as pretas ou as negras?

  1. Pergunto a mim mesmo se ainda há no Brasil brancos puros, negros puros, índios puros e amarelos puros, salvo imigrantes que chegaram há poucas décadas e que se casaram entre os seus.

    Lá no RS, depois de pouco mais de duas, três gerações, o Schmitt ou o Bianchi se casa com uma Silva, que pode até ser alva como uma folha de papel sem pauta, mas tem pelo menos uma bisavó índia que foi laçada pelo bisavô branco (já perdi a conta das vezes que ouvi contarem histórias como essa, sejam ou não verdadeiras).

    As categorias do IBGE só se sustentam se considerarem raça exclusivamente pelo critério da cor da pele, porque, do contrário, se se quisesse levar em conta a ancestralidade, o Brasil seria um país de quase 100% de mestiços.

    P.S.: Você é de São Paulo, o lugar do mundo em que talvez sejam menos raros que em qualquer outro os mestiços de brancos com amarelos. Moro em BH e, no trabalho, tive um estagiário que tinha um sobrenome japonês e outro italiano. Perguntei-lhe de onde ele era:

    — Sou daqui de BH mesmo.

    — Mas seus pais são de São Paulo, certo?

    — Sim, como você soube? Eu não tenho nenhum sotaque paulistano.

    Daí expliquei-lhe que não era pelo sotaque, mas pela combinação muito provavelmente paulistana de sobrenomes.

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    1. Caro Rodrigo,
      Creio que o conceito de raça do IBGE é de fato o de fenótipo (cor da pele, cor dos olhos, cor e textura dos cabelos, formato do rosto, traços fisionômicos, etc.) e não o de genótipo (ancestralidade genética), até porque a maioria dos brasileiros desconhece sua ancestralidade além de duas ou três gerações.
      Realmente, São Paulo e Paraná devem ser os únicos estados do Brasil onde não é totalmente estranho um mestiço de branco e amarelo (embora aqui também sejam raríssimos). Mas, curiosamente, o termo “mestiço” é reservado nesses estados justamente a essas pessoas. Os resultantes de cruzamentos entre brancos, pretos e/ou índios são geralmente chamados de mulatos, caboclos, “moreninhos” ou simplesmente negros, mas raramente de mestiços.

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  2. Caro colega, cheguei a seu blog porque ando incomodado com o “vidas pretas” do “vidas pretas importam”. Você não acha que, à parte a escolha entre “preto” e “negro”, a própria construção da frase é estranha? “Vidas pretas” parece uma tradução ruim para “black lives”. Como o inglês tem o poder de usar adjetivos também como o que para nós seriam locuções adjetivas, talvez uma opção melhor fosse “vidas de pretos”. Na verdade, isso só resolveria o problema em parte, de qualquer forma, porque o inglês tem também uma capacidade de derivação adjetiva a partir de outras categorias, que parece ser o caso do “black” aqui e que não tem equivalência exata em português. Há ainda a questão do “importam”, que também parece uma tradução ruim para o “matters”. Tenho a impressão de que “importar” e “ter importância”, em nosso idioma, só são sinônimos em contextos sintáticos e semânticos específicos. Pesando tudo, “vidas pretas/negras importam” soa como um americanismo muito claro. Fica um incômodo linguístico, e, para além disso, fico me perguntando se esse lema alienígena, carregado das particularidades estadunidenses, poderá expressar as particularidades da luta em prol da defesa da dignidade dos negros no Brasil.

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    1. Caro Guilherme, também acho a expressão uma tradução mal-ajambrada do inglês. No entanto, penso que, dada a penetração global do slogan “Black lives matter”, uma tradução como “As vidas dos negros são importantes” ou “têm importância” não teria a mesma força persuasiva, até porque a nossa língua é menos sintética que a inglesa. Um caso semelhante foi a tradução para o espanhol de “Yes, we can” para “Sí, se puede”, em que o pronome indeterminado “se” retira a força natural do “nós”. Por isso mesmo, o partido político Podemos tem esse nome e não Pode-Se.

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