Por ocasião dos 132 anos da abolição da escravatura no Brasil, a Rede Globo acaba de lançar uma campanha contra expressões verbais consideradas racistas por conterem as palavras “negro” ou “preto” (ou suas flexões de gênero e número). O comercial consiste em omitir a palavra em questão em expressões consagradas na língua portuguesa – e que têm equivalentes em outras línguas –, substituindo-a por uma lacuna (o famoso underline, para quem é da geração digital). Temos então: a coisa está _____, não sou tuas _____, serviço de _____, ovelha _____, mercado _____, lista _____, e por aí vai. O problema é que boa parte dessas expressões não tem nenhuma relação com a raça negra, portanto não tem nada de racista.
Se, de fato, serviço de preto significa “serviço malfeito” porque feito por negros (na época da origem da expressão, escravos), e não sou tuas negas se refere às negras com quem o senhor de escravos se deitava, as demais expressões remetem ao negro como cor e não como raça.
Desde tempos imemoriais, o homem teme a escuridão – e na época das cavernas muito mais do que hoje –, afinal à noite o risco de ser atacado por predadores ou inimigos era muito maior. Da mesma forma, uma caverna escura poderia conter ameaças, desde um buraco até uma fera. Não por outra razão, o negro foi escolhido como a cor do luto, já que a escuridão evoca a tristeza e o medo do desconhecido. Evoca sobretudo o maior de nossos medos: a morte. Daí deriva também o uso da cor negra como símbolo de tudo que é negativo, nefasto e fora do padrão, assim como o branco sempre foi associado à pureza e à virtude. Se todas as ovelhas são brancas, o indivíduo que destoa de seu grupo só poderia ser uma ovelha negra – ovelhas azuis ou amarelas não surtiriam o mesmo efeito de contraste. A lista negra é a que contém os nomes dos indesejáveis, dos que não merecem confiança porque são impuros no caráter. O mercado negro é o comércio ilegal, clandestino, que opera às escuras, sem ser visto pela lei. “A coisa está preta” é mera alusão às nuvens negras anunciando tempestade, e assim por diante.
A maior parte dessas expressões nasceu na Antiguidade ou na Europa medieval, num tempo portanto muito anterior à escravidão negra na América e ao preconceito racial dela decorrente, num tempo em que os europeus praticamente não tinham nenhum contato com os africanos.
O que se passa é que a ideologia do politicamente correto promove uma caça às bruxas, tentando encontrar culpados a todo custo e criminalizando palavras e expressões que, em sua origem, não tinham nada de preconceituoso. Querendo combater o fascismo da sociedade, é o politicamente correto que se torna fascista, censurando qualquer um que não se comporte ou fale segundo sua cartilha. A seguir essa lógica, logo estaremos proibidos de escrever com caneta preta, e as mulheres não poderão mais usar vestido pretinho básico.
A intenção da Globo foi boa, mas de boas intenções o inferno está cheio. Nota zero para essa campanha, que demonstra ignorância da origem das expressões que condena!
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Acho que já contei essa história aqui, mas, em todo caso, vale repeti-la. Certa vez, eu estava dando aula enquanto um temporal medonho se avizinhava lá fora, com enormes nuvens negras, raios e trovões dignos de filme de terror. Olhei pela janela e disse aos alunos: “Pessoal, a coisa lá fora tá preta”. Nisso, uma aluna negra me interpelou dizendo que eu não deveria usar essa expressão, que eu deveria demonstrar mais respeito pelo holocausto africano, etc. etc. (Sim, meus amigos, em seu longo sermão ela usou o termo “holocausto” em relação à escravidão). Um tanto perplexo, eu não perdi a pose e voltei à janela, olhei para fora novamente e remendei: “Pessoal, me desculpem, eu quis dizer que a coisa lá fora está afrodescendente”.
A estupidez humana não tem limites.
Prof. Aldo, sou fã de seus textos, como sabe. Leio todos. Mas não entendo por que o senhor escreve “raça negra” às vezes, sabendo o senhor, como cientista inclusive, que não existem raças, mas somente uma raça, a humana.
Caro Patrick, primeiramente obrigado por me seguir. Fico feliz que você goste dos meus textos.
Sobre a palavra “raça”, há uma controvérsia criada, em grande parte, pelo próprio politicamente correto. A noção de raça é um conceito biológico que agrupa, dentro de uma espécie, indivíduos que têm características fenotípicas comuns (isto é, cor da pele, formato do crânio, estatura média, cor de olhos e cabelos, propensão a certas doenças, etc.). Nesse sentido, a expressão “raça humana” é que está errada: nós humanos somos uma espécie, não uma raça, assim como há a espécie canina (o cão) e suas raças (poodle, chihuahua, buldogue, etc.).
De outra forma, como denominar os negros, os brancos, os amarelos, os ameríndios? Se não há uma raça negra, então o conjunto dos negros é o quê?
Como disse no início, o slogan “só existe uma raça: a raça humana” é uma criação politicamente correta, que contraria as próprias definições de raça e espécie dadas pelos dicionários e baseadas na biologia. Na verdade, as “raças” humanas estão geneticamente mais próximas entre si do que as raças de cachorros – isso a biologia comprova -, mas ainda são suficientemente distintas para que suas evidências sejam percebidas ao primeiro olhar.
Por último, vale lembrar que os próprios militantes de movimentos negros fazem questão de usar as palavras “raça” e “racismo”, o que corrobora a definição de raça que dei acima.
Um abraço!
Como não sou geneticista, não sei quem tem razão, mas todos os ótimos professores de Biologia que consultei até hoje discordam do senhor. Eles dizem que os negros são negros porque têm mais melanina. Eu me lembro de um texto do João Ubaldo Ribeiro “Quem tem raça é cachorro”, em que ele afirma que esse conceito de ‘raças’ “não tem apoio algum entre os que estudam a genética humana”. O Aulete Digital diz que “raça . . . é um conceito sem base biológica”. O Grande Dicionário Houaiss (digital) define ‘raça’, entre outras coisas, como “o conjunto dos seres humanos; a humanidade”. Com relação ao último parágrafo que o senhor escreveu, penso que os negros, com todo o respeito, queiram se diferenciar dos brancos para se reafirmarem na sociedade. Para mim, cotas raciais não são uma coisa justa. E até mesmo brancos se autodeclaram negros para conseguirem vaga no serviço público ou nas universidades. Quanto mais se fala em “raça e racismo”, mais vejo problemas. De todo modo, sou grato pelo texto e pelo comentário. Acredito que campanhas como a da Globo atiçam mais os ânimos, além de ser ignorante. Por que será que os negros acham que existe racismo sempre contra eles e nunca entre eles ou entre/ contra brancos? http://www.academia.org.br/artigos/quem-tem-raca-e-cachorro
Patrick, não sou biólogo, mas posso lhe garantir que há muito mais diferenças entre, digamos, um branco e um negro do que apenas a quantidade de melanina. Há o formato do nariz e dos lábios, a cor e o formato dos cabelos, o formato do crânio, a compleição física média, a já citada propensão a certas doenças, etc., características genéticas moldadas durante milhares de anos.
Mas, voltando à sua pergunta inicial, qual seja, por que eu emprego a expressão “raça negra”, que palavra você sugere em lugar de “raça”?
Também não sei qual palavra seria mais adequada, prof. Aldo. Sei que existem diferenças, mas acredito que sejam apenas diferenças físicas, nada além disso. A impressão que tenho quando alguém emprega a expressão “raça negra” é a de que os negros não têm nada a ver com os outros humanos, como se eles fossem uma outra espécie de ser humano.
(cont.) Caso contrário, o que justificaria, por exemplo, alguém escrever “100% Raça Negra” ou algo similar? O problema não é a palavra, mas o que se entende por raça.
Patrick, não sou biólogo e sim linguista, por isso me atenho ao que as palavras significam na língua, mesmo que seus significados não correspondam à realidade objetiva, pois, se assim fosse, deveríamos banir do vocabulário a palavra “Deus”, já que a ciência prova sua inexistência tanto quanto prova a inexistência de raças humanas.
O que ocorre é que, até recentemente, eram justamente as diferenças físicas que embasavam a noção de raça, tanto de animais quanto de humanos. Um ramo da biologia chamado morfologia se ocupava de comparar as características físicas de espécimes para subdividi-las em raças dentro da mesma espécie e para distinguir espécies. Toda a taxonomia zoológica e botânica foi feita desse modo.
O que você destaca é que o uso da palavra “raça” é muito mais frequente em relação aos negros do que em relação a brancos ou amarelos. De fato, isso é um reflexo do racismo contra os negros, portanto um fato social e não biológico. Ou seja, se, geneticamente falando, não existem raças humanas, do ponto de vista social essa noção está muito presente, o que justifica expressões como “100% Raça Negra” ou o nome daquele grupo de pagode, que também é Raça Negra. Trata-se da afirmação feita pelos próprios negros de sua identidade frente a uma sociedade que não os aceita como iguais e sim como cidadãos de segunda classe.
Concluindo, o dicionário não cria as palavras, apenas reflete o uso que se faz delas. E uma das acepções da palavra “raça” no dicionário se refere exatamente à divisão em subclasses de uma espécie biológica em função de semelhanças físicas sistemáticas. Como você mesmo constatou, não há outro termo melhor na língua para designar o conjunto dos brancos, o conjunto dos negros, e assim por diante. Por isso, infelizmente, somos obrigados a continuar usando a palavra “raça”, mesmo com todas as imprecisões científicas que ela acarreta.
Prof. Aldo, não fique chateado comigo, estou apenas tentando discutir amigavelmente seu texto para compreender e opinar/ conversar quando tiver chance “hoje e amanhã”, pois assuntos linguísticos sempre vão me interessar, apesar de não atuar mais como prof. de Língua Portuguesa. Hoje em dia está difícil até conversar, ainda mais com alguém inteligente e com cultura. A discussão foi proveitosa.
Caro Patrick, fique tranquilo: em nenhum momento fiquei chateado com você! É bom debater com pessoas inteligentes, e esse nosso debate foi proveitoso para mim também.
Um abraço.
Caro Aldo, ainda não vi essa campanha, mas a Globo e o politicamente correto vão emburrecendo a nação, é uma tristeza. Você já tratou aqui do caso de Roraima, outro desserviço global. No livro “Da Alvorada à Decadência”, Jacques Barzun considera que os tempos atuais são de declínio cultural, quando comprei o livro achei um exagero, mas cada vez mais dou razão a ele.
Outra bobagem deste tipo que está se alastrando é substituir obrigado por gratidão. Meus Deus!
Como poderíamos definir o homem politicamente correto? Acho que uma boa descrição seria um infeliz caçador de pelo em ovo. Como ficaria isso em latim? Joguei no Google Tradutor saiu infortunatus ovum-venandi. Então tínhamos o Homo Sapiens e agora temos o Homo Infortunatus.
Um abraço.
Homo Infortunatus foi ótimo rs!!!
Lavei minha alma com esse texto. Já vi professores de línguas gabaritados defendendo essa mutilação.
Quanto à Globo, há tempos vem propagando a desinformação e a discórdia na sociedade com seu “jornalismo”. A última deles foi alçar ao nível de vítima um criminoso assassino e pedófilo, omitindo convenientemente seu crime na reportagem pelo sujeito ser de uma minoria oprimida, os transsexuais. Olha que falta de ética e descaso com a transparência de informações, sendo a maior emissora do país.
Me identifico com a indignação em relação à esse desapego com a língua portuguesa. Mas mais do que isso, um desprezo autoritário mesmo. Já não basta termos um número significativo de analfabetos funcionais, agora temos que fiscalizar e censurar a comunicação alheia por razões que não procedem, já que muitas delas não tem relação com raça, mas com o simbolismo da cor. Bom, esse analfabetismo se aplica a esse caso.
E esse progressismo tóxico já chegou bem longe. Não sei se o professor soube da petição de um casal gay para que o dicionário Michaelis tivesse o verbete “casamento” modificado por pura pressão. Foi inclusive tema de TCC de uma aluna do mesmo curso e universidade que a minha.
Caso o professor queira ter acesso a ele e com minhas marcações, eis o link:
https://drive.google.com/open?id=1fjF5JPShbeB67cHgWEDCmClCBFB2jhSS
Ou seja, eles realmente têm a intenção de manipular a linguagem a seu favor para, à força, mudar o pensamento do país todo, mesmo que não esteja de acordo com os significados da língua real, cujo povo a mantém viva. Começa com esse, depois outro, e mais aquele, e nem num dicionário poderemos confiar mais para o registro da mesma, comprometendo toda a ciência da língua.
Que tempos sombrios…
Pois é, Natalia, você disse tudo!
Muito bom comentário, Natália!
Pois é, complicado. Acaba sendo mesmo de certa forma uma desonestidade intelectual. Jogam tudo no mesmo balaio. Fico pensando pra Globo, como empresa o quanto isso é uma questão comercial. O quanto essas campanhas adquirem engajamento de quem engole qualquer discurso, e isso, na prática reverte em dinheiro para os bolsos da Globo.
Digo isso porque não a vejo como uma empresa de “ideologias” e sim uma empresa que prima sempre pelo seu interesse financeiro se isso for lhe dar grana.
Um exemplo bom é o apoio que dão a programas lacronildos como “Desencontro com Fátima Bernardes” e outras papagaiadas como aquele programa de Entrevistas com o Bial que insere um monte de “cagação de regra’ no discurso e se traveste de entrevista.
Essas pautas devem ter eco em parte da população que se identifica com esse tipo de coisa. Então é fácil tentar manipular se vai ter mesmo gente pra engolir qualquer coisa e no final a empresa evita à bancarrota já que seu cofre está garantido e bem gordinho.
A globo adora desprestar um serviço para o Brasil.
O primeiro de longe, foi apoiar a ditadura militar. Quando viu que a coisa ficou preta em 2013, foi obrigada a assumir pois iriam vandalizar a empresa, naquelas “Jornadas de 2013”.
Excelente texto, um abraço.
Obrigado, Guitardo!
[…] para mim, o pecado da cartilha é outro: como já havia demonstrado em artigo anterior, o erro dessas cartilhas politicamente corretas é atribuir conotação racista a expressões que […]