A legião dos imbecis

As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de imbecis que antes só falavam na mesa de bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eram rapidamente silenciados, mas agora têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis.

Umberto Eco ao jornal La Stampa

A ciência ainda não sabe com certeza quando o homem começou a falar. Alguns estudiosos acreditam que essa faculdade tenha surgido há menos de 30 mil anos – cálculos mais conservadores falam em 15 mil – enquanto outros tantos pesquisadores sugerem que a linguagem seja tão antiga quanto nossa própria espécie, cujo surgimento se estima em torno de 200 mil anos atrás. O fato é que, por milênios, os únicos tipos de comunicação possíveis entre os seres humanos foram o interpessoal (duas ou três pessoas conversando) e o grupal (alguém falando a uma pequena plateia). O maior alcance que um discurso podia ter era propiciado por inscrições em pedra ou manuscritos em papiro ou pergaminho com um número limitadíssimo de exemplares. Ou seja, tudo o que se escrevia era lido por no máximo algumas centenas de pessoas.

De certa forma, a comunicação em massa surgiu com a invenção da imprensa por Gutenberg em 1452. Claro que no começo os textos impressos ainda tinham poucos leitores, já que a maior parte da população era analfabeta, o que desestimulava a produção de grandes tiragens de livros. Porém, a partir do momento em que se multiplicaram os livros e, em seguida, os jornais, era possível, em tese, comunicar-se com o mundo.

Mas a comunicação de massa teve seu impulso definitivo em princípios do século XX, com o surgimento dos chamados mass media (rádio, televisão, cinema, fonógrafo, revistas); agora era possível efetivamente falar a milhões de pessoas, em todos os lugares do planeta. Só que a comunicação de massa é unidirecional: alguém apenas fala e multidões apenas escutam. Esse sistema pode parecer hoje em dia pouco democrático, já que o diálogo é sempre mais salutar que o monólogo. No entanto, se havia tão pouco espaço para falar, era natural que esse espaço fosse destinado preferencialmente a quem tivesse algo relevante a dizer. O que não significa que irrelevâncias não fossem também veiculadas. Mas, se não era possível publicar tudo o que todos queriam dizer, editoras, gravadoras, estúdios de cinema e de TV, emissoras de rádio e empresas jornalísticas optavam por publicar aquilo que certamente interessaria a mais pessoas. Com isso, o que era de fato divulgado tendia a ter alguma qualidade ou, pelo menos, alguma pertinência. Aliás, na comunicação de massa a busca pela qualidade é um princípio norteador da produção de conteúdo: uma cena é refilmada ou uma canção regravada tantas vezes quantas forem necessárias para que o resultado seja não menos que perfeito; um texto escrito é burilado, reescrito e revisado até que se achem as melhores palavras para expressar as melhores ideias.

Isso foi exclusivamente assim até a última década do século passado. Então surgiu a internet e, com ela, as redes sociais. A partir desse momento, a comunicação de massa começou sofrer a concorrência da comunicação em rede, sistema em que, teoricamente, todos conversam com todos, isto é, todos têm direito – e espaço – de se expressar e dizer o que pensam, e todos podem reagir expressando-se pelos mesmos canais. Já não somos mais obrigados a apenas ouvir, mas também podemos falar. O grande intelectual, o artista famoso, o ídolo das multidões e o simples mortal, o cidadão anônimo, o zé-ninguém agora estão lado a lado. O presidente da nação mais poderosa do mundo e a criança de sete anos têm os mesmos 280 caracteres à sua disposição. A maior rede de televisão do país concede a todos seus quinze segundos de fama, desde que o celular esteja na horizontal. Tudo muito democrático. Só que não.

A promessa de uma comunicação igualitária, em que todos os habitantes do planeta podem falar e ouvir, levou a humanidade não ao entendimento geral, mas ao maior desentendimento que a História poderia registrar: todos falam, poucos ouvem e ninguém tem razão. Antes, muitos desconfiavam da imprensa, mas o que os jornais diziam tinha grande credibilidade; hoje, em que qualquer pessoa pode ser fonte de informação, não sabemos como lidar com as fake news, e os limites entre a verdade e a pós-verdade (ou verdade alternativa) são nebulosos. Antes, nos irritávamos com certas propagandas no rádio ou na TV; hoje, nossa caixa de e-mails fica lotada de spams em poucos segundos. Antes, quem se sentisse alvo de calúnia pelos meios de comunicação tinha direito de resposta; hoje, pratica-se o linchamento moral de qualquer um, principalmente de quem diz a verdade. Antes, uma criança tinha de lidar com a caçoada dos coleguinhas de classe; hoje, o bullying se dá pelas redes sociais, em escala nacional ou mundial. Antes, era preciso saber cantar para ser cantor e saber escrever para ser escritor; hoje, já nem tanto. Por fim, hoje todos odeiam alguém e todos são odiados por alguém, sempre on line, bastando digitar. A paradoxal sensação de anonimato num meio em que todos se expõem parece nos dar o direito de atacar o outro sem responsabilidade, não importa se justa ou injustamente, desde que com crueldade. Como diz o historiador e pop star Leandro Karnal, somos todos contra todos, ou, segundo o sábio Umberto Eco, foi dada a palavra à legião dos imbecis. O consolo é que, mesmo nesse ambiente de caos e barbárie comunicacional, grande parte das pessoas ainda prefere ouvir quem tem algo relevante a dizer. Ou seja, mesmo dentro da rede existem nichos de comunicação de massa, predominantemente unidirecional: gente inteligente que sabe ouvir escuta gente inteligente que sabe falar. Enquanto isso, no restante da rede, os imbecis se digladiam.

6 comentários sobre “A legião dos imbecis

  1. Suas palavras me fazem lembrar de um escritor britânico que tenho muita admiração, certa vez ele disse o seguinte: “A arte nada mais é que a expressão pura de magia, o artista seja ele de qual meio for, sabe o que o público anseia e não ao contrário”. O mundo está tão controverso que o público tem ditado as regras sobre a criação de qualquer arte ou de qualquer coisa e tudo se transforma em bestialidades. Pode ser ousadia de minha parte, mas não há diálogos apenas conversa, as pessoas disputam seu espaço na hierarquia da conversa e pouco sobre o discurso em si.
    É muito bom ter um refúgio como seu blog Dr. Aldo, aqui posso “ouvir” seu diálogo e tudo ao meu redor está em silêncio.
    Tenha uma ótima semana!

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  2. Excelente retrato das redes sociais. Hoje todos falam, mas o entendimento é mínimo. Ou, talvez, mínima seja a aceitação do que os outros (mesmo os que falam algo substancial) têm a dizer. A excessiva proximidade entre os homens é desafiadora e perigosa.

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