Viajando na história das palavras

Etimologia é a ciência que estuda a história das palavras, desde sua origem, por vezes num passado distante e em língua outra que não a nossa, passando por todas as mudanças de forma e de sentido que sofreram ao longo do tempo. A etimologia serve basicamente para responder à pergunta “De onde veio a palavra ou expressão X?”.

Por ser uma ciência que satisfaz à curiosidade de grande parte da população, ela costuma ter uma aura lúdica que a faz, muitas vezes, ser confundida com especulações sobre a origem das palavras que nada têm de científico: é o que chamamos de pseudoetimologia. Grande parte das colunas sobre etimologia que figuram em revistas, sites e almanaques, na verdade, pratica a falsa etimologia, feita sem nenhum rigor científico, baseada apenas em intuições (em geral equivocadas) e lendas passadas de geração a geração. É o caso daquela lenda urbana segundo a qual “aluno”, do latim alumnus, tem esse nome porque representa uma pessoa sem luz (a = “não” + lumen = “luz”) a quem os mestres darão a luz do conhecimento. Pura balela! Uma análise mais rigorosa e pautada no método científico revelará que alumnus provém do verbo latino alere, “alimentar, fazer crescer” mais o sufixo participial ‑umnus, que também aparece em autumnus (“outono”), columna (“coluna”), etc., e é parente do sufixo grego ‑oúmenos ou ‑ómenos de “catecúmeno”, “energúmeno”, “fenômeno” e “prolegômeno”.

Na verdade, a etimologia surgiu na Grécia antiga como uma disciplina não científica. No diálogo Crátilo, de Platão, aparecem as primeiras especulações sobre a origem de certas palavras. Em primeiro lugar, os filósofos envolvidos no debate descrito no livro discutem se a linguagem é produto da natureza (physis) ou de uma convenção estabelecida pelos homens (thesis). A seguir, passam a discutir a motivação que dá origem às palavras, chegando a proposições que hoje, à luz da ciência, não fazem o menor sentido.

O termo “etimologia” foi cunhado por Dionísio de Halicarnasso no século I a.C. a partir do grego étymon (“verdade”) e logos (“discurso”). Ou seja, a etimologia seria o discurso sobre o verdadeiro significado das palavras. No entanto, a etimologia praticada por Dionísio e seus seguidores continuou a ser meramente especulativa, sem nenhum recurso à pesquisa.

Esse tipo de etimologia “achística” prosseguiu na Idade Média. Nesse período, destacou-se a figura de santo Isidoro de Sevilha, autor do compêndio Etymologiae, cujo livro X, De vocabulis (“Sobre as palavras”), trazia a suposta origem das palavras latinas. Vejamos alguns exemplos das “etimologias” de Isidoro:

  • amicus, “amigo” < animi custos, “guardião da alma”;
  • beatus, “bem-aventurado” < bene auctus, “que se desenvolveu bem”;
  • corpulentus, “corpulento” < corpus + lentus, “que tem o corpo pesado e lento”;
  • femina, “mulher, fêmea” < fides minus, “menos fé” (porque as mulheres teriam menos fé que os homens);
  • importunus, “importuno” < in‑ + portus, “aquele que não tem porto”;
  • lepus, “lebre” < levis pes, “que tem os pés leves”;
  • lutum, “lodo” < lotum, “lavado” (isto é, que deve ser lavado);
  • mulier, “mulher” < mollis, “mole” (porque as mulheres têm coração mole);
  • nobilis, “nobre” < non vilis, “não vulgar”;
  • praesens, “presente” < prae sensibus, “diante dos sentidos”;
  • prudens, “prudente” < porro videns, “que vê adiante”;
  • regere, “reger” < recte agere, “conduzir corretamente”;
  • surdus, “surdo” < sordes, “sujeira do ouvido”.

O fato é que a etimologia como ciência só começou para valer na virada do século XVIII para o XIX, com o advento da linguística histórico-comparativa. O trabalho de comparação entre línguas documentadas e reconstrução de estágios não documentados foi aplicado a todos os níveis da língua, inclusive ao das palavras.

Como se faz uma etimologia científica

O trabalho do etimólogo consiste em pesquisar documentos antigos da maneira mais exaustiva possível em busca do chamado terminus a quo, isto é, a primeira ocorrência escrita de uma palavra na língua. Até bem pouco tempo atrás, essa pesquisa era puramente manual, feita em bibliotecas, hemerotecas, arquivos e demais acervos de documentos. Hoje, com a digitalização em massa de textos antigos e modernos, a pesquisa etimológica também conta com o auxílio da internet. Há diversos bancos de textos digitalizados, bem como vários sites de projetos de pesquisa que reúnem ocorrências de palavras de um determinado idioma com data, local de publicação, dados da obra publicada (página em que o vocábulo ocorre, localização física do exemplar, etc.) e outras informações relevantes.

Mas a pesquisa não se resume à primeira ocorrência escrita de uma palavra; o etimólogo deve rastrear todas as ocorrências posteriores para mapear as mutações fonéticas (chamadas de metaplasmos), variações ortográficas e alterações no significado (mudanças, ampliações ou reduções). Esse processo inclui a reconstrução de estágios não documentados com base no conhecimento das leis fonéticas. Por sinal, o NEHiLP-USP (Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo), no qual trabalho, desenvolveu um software chamado “Metaplasmador”, que serve para testar hipóteses sobre a ancestralidade de palavras do português.[1] Funciona assim: entrando-se com uma palavra latina que se supõe ser a origem da palavra portuguesa, o programa aplica todas as mutações fonéticas regulares na ordem em que ocorreram historicamente, dando como resultado a forma (ou formas) que essa palavra teria em português atual. Se coincide com a forma que estamos investigando, bingo!, está provada a linhagem da palavra (por exemplo, do latim caballum obtemos regularmente o português “cavalo”). Se houver discrepância, parte-se para a investigação de alguma influência analógica sobre a palavra. Por exemplo, se introduzirmos no Metaplasmador o latim stēllam, obteremos o resultado em português *estela. No entanto, sabemos que a forma efetivamente resultante da evolução de stēllam em português é “estrela”; esse r intruso é explicável pela influência de “astro” (afinal, uma estrela é um tipo de astro).

Outro exemplo é “floresta”, empréstimo do antigo francês forest (atual forêt), que deveria ter dado em português *foresta, mas deu “floresta” por analogia com “flor” (pois supostamente numa floresta há flores).

É importante lembrar que o Metaplasmador, sendo um simulador da evolução fonética de um vocábulo, só funciona com palavras herdadas; os empréstimos geralmente fogem das leis fonéticas, conservando a forma que têm na língua de origem ou sofrendo modificações e adaptações à morfologia do português que seguem outras normas e são de aplicação mais arbitrária.

O grande objetivo da pesquisa etimológica é elaborar um dicionário etimológico, isto é, um compêndio que traga a maioria das palavras de uma língua acompanhadas de sua história, ou seja, sua origem, as transformações por que passaram, os documentos em que cada uma de suas formas ocorreu pela primeira vez (com direito à transcrição do trecho do texto em que aparece), além de explicações sobre as mudanças de forma e sentido que sofreram ao longo do tempo e outros dados eventuais, como palavras cognatas em outros idiomas.

É preciso chamar a atenção para o fato de que, com as modernas tecnologias, a pesquisa etimológica atual não se limita mais a documentos escritos, mas pode também recorrer a testemunhos audiovisuais, como discos, vídeos, filmes, etc. A partir do século XX, pode-se encontrar testemunhos de uma palavra também na modalidade oral, o que ajuda a esclarecer dúvidas sobre a pronúncia (por exemplo, como o nome “Brasil” era pronunciado 50 anos atrás).

No NEHiLP, estamos desenvolvendo um projeto, chamado DELPo (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa), que visa elaborar a mais completa obra do gênero em língua portuguesa. Para tanto, estamos utilizando tecnologia de ponta, com o auxílio de computadores e softwares especiais, e uma equipe de mais de 60 pesquisadores das mais diversas universidades nacionais e estrangeiras.

A razão desse projeto é que, diferentemente do que acontece com línguas como o espanhol, francês, inglês, italiano e alemão, o português não dispõe de bons dicionários de etimologia: os poucos que temos são incompletos e, por vezes, trazem étimos equivocados ou apontam como de étimo desconhecido palavras cuja origem pode ser pesquisada e encontrada.

O DELPo, sendo uma publicação totalmente on-line — embora não se descarte sua edição em papel —, oferecerá também outras facilidades, como pesquisa por fragmento da palavra, campo semântico, elementos morfológicos (radicais, afixos, etc.), origem, acepções, data e muito mais. Alguns verbetes já estão prontos, mas a elaboração do dicionário será um trabalho de longo prazo — e que jamais estará completo, pois a todo momento surgem novas palavras ou outras ganham novos significados, que muitas vezes têm etimologia distinta da original. Portanto, será sempre uma “obra em progresso”, o que é uma vantagem sobre os atuais dicionários, prontos, acabados e congelados no tempo.

[1] O Metaplasmador pode ser encontrado no endereço http://www.nehilp.org.

10 comentários sobre “Viajando na história das palavras

  1. Dr. Aldo, esclarecedor seu texto sobre Etimologia, ainda que o assunto não
    me entusiasme muito.
    Lembro, todavia, que o ilustre professor ainda está me devendo (sic) uma explicação sobre a irregularidade de certos verbos, como lhe solicitei tempos atrás.
    Posso aguardar por ela, ainda?
    Grato, e um abraço.
    Adroaldo
    Enviado do Outlook
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  2. Boa noite, Dr. Aldo.
    Seu texto é muito informativo para quem se interessa por etimologia, como é meu caso, pois sou acadêmica de Letras.
    Porém, isso suscitou uma dúvida.
    Qual a sua visão em relação à recriminação do uso de determinadas palavras como: denegrir, judiar, criado-mudo, mulato, lápis cor de pele etc…?
    Ouvi isso de duas professoras do meu curso defenderem que são palavras ofensivas e deveriam ser evitadas por conta de sua origem. ( O que é estranho, porque em alguns casos, o sentido pejorativo não advém da etimologia, mas de um determinado significado no passado e “negro” não seria uma palavra polissêmica?)
    Então, eu pergunto: A exclusão de palavras deve ser determinada por sua etimologia?
    E qual seria a etimologia correta dessas palavras citadas e também da palavra “rapaz”?

    Desde já, agradeço.

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    1. Prezada Natalia,
      Sou totalmente contra qualquer tipo de patrulhamento ideológico da língua, principalmente o baseado no politicamente correto (PC), até porque os patrulheiros do PC geralmente desconhecem a ciência por trás da língua e criam estigmas a partir do nada, ou melhor, daquilo que não conhecem. Por exemplo, “denegrir” não tem nada a ver com a raça negra e é palavra muito anterior à escravidão africana. Além disso, quem usa determinada palavra hoje geralmente desconhece sua história, portanto chamar de racista quem emprega “mulato” hoje em dia só porque há quatrocentos anos essa palavra esteve ligada à ideia de “mula” é um absurdo. Nesse caso, como fica a palavra “cretino”, cuja origem era a bem-intencionada palavra francesa “chrétien” (cristão)?
      Só a título de curiosidade: certa vez, em sala de aula, olhei pela janela o temporal que se avizinhava e e exclamei “Nossa, a coisa lá fora tá preta!” referindo-me ao céu negro, no que fui advertido por uma aluna negra de que eu estava sendo discriminatório contra a tão sofrida raça negra, vítima do pior holocausto da história e blá-blá-blá blá-blá-blá… Então eu prontamente corrigi: “Nossa, a coisa lá fora tá afrodescendente!”. kkkkk

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      1. Muito obrigada por esclarecer. Era algo que começou a me incomodar a tal ponto que não encontrava mais pesquisas etimológicas de certas palavras, mas sites e vídeos de pessoas reclamando do uso delas e seu suposto sentido pejorativo.

        Mas daí indago espantada como há pessoas da área das letras que se deixam levar por esses embustes patrulheiros e ainda defendem isso em sala para futuros professores de português (as duas professoras citadas obtiveram acesso a esse pensamento por militantes políticos e não linguistas), chegando até mesmo a insuflar um respaldo moral nos acadêmicos, similar à colocação do escritor Sérgio Rodrigues nessa matéria referente à palavra “judiar” onde ele diz o seguinte em dado momento:

        “O fato de grande parte dos falantes entrar nessa história de forma inocente, sem intenção de ofender ninguém, não basta para inocentar a própria palavra. Nada a ver com rendição à patrulha politicamente correta: trata-se de um sentido íntimo de decência.”
        https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/judiar-e-uma-palavra-de-origem-antissemita-claro-que-e/

        O extremo oposto do que declarou um rabino norte-americano chamado Henry Sobel, um dos maiores líderes da comunidade judaica do Brasil em cujo livro “Os porquês do Judaísmo” ele defende seu uso, alegando que não é pejorativo, pois a palavra carregaria a história de que judeus não maltrataram ninguém, mas sim foram maltratados e é bom que o mundo lembre disso.

        O que torna a situação bem preocupante para os estudiosos da língua. Até onde esse tipo de pensamento obtuso e raso pode levar a nossa comunicação e nossa cultura? Se infiltrando em esferas mais elevadas como vestibulares, escolas, jornalismo e na própria literatura, reeditando e “corrigindo” a linguagem de obras que se valem dessas palavras “inadequadas” na contemporaneidade. A obra “O Mulato” seria a primeira vítima já no título. Já não basta as pessoas terem dificuldade na modalidade escrita, agora deve-se abolir certos termos do nosso vocabulário por conta do subjetivismo de uma patota barulhenta e falsa moralista.

        E uma consequência disso foi que procurei à exaustão a origem da palavra “cor de pele” para o lápis daquela marca de materiais escolares “Faber Castell” e não encontrei praticamente nada! Somente reprovações de como ela é racista e instila nas crianças um etnocentrismo europeu e gerou livros infantis para levantar a autoestima racial dos demais, fazendo com que a própria marca lançasse uma caixa de lápis com mais três cores para a pele. Mas gostaria muito de entender sua origem, algo que eles não explicam. Aqui está um exemplo da ideologia estreita de uns apagando o conhecimento linguístico e a própria história.

        Kkkkkkkkk a piada foi genial e corajosa, esse pessoal não tem senso de humor, ela deve ter ficado com cara de tacho, pois eles não sabem como reagir sequer tem argumentos lógicos para isso.

        A propósito, é verdade que o substantivo “rapaz” costumava significar saqueador?

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  3. Natalia, infelizmente há muitos (pseudo)linguistas que defendem esse patrulhamento por uma simples razão: para eles, a ideologia de esquerda fala mais alto que a ciência. E a universidade está infestada desses maus cientistas, ou melhor, desses militantes travestidos de cientistas. E, na medida em que eles são formadores de professores, nos cursos de licenciatura, são os primeiros a doutrinar ideologicamente os futuros professores. Você vê como é importante termos uma “escola sem partido” inclusive nas universidades?
    Já tentaram até censurar os dicionários, como se a culpa pelo adultério fosse do sofá. Quanto ao eurocentrismo, não podemos esquecer que a Civilização Ocidental à qual pertencemos é fundamentalmente uma civilização europeia, cujas contribuições de outras culturas, especialmente a africana, são bem pequenas e superficiais, o que explica o lápis cor de pele (branca, no caso).
    A esquerda, ou pelo menos a parcela mais radical dela, procura apagar a História, mais ou menos como o governo da antiga União Soviética apagava das fotos a imagem de seus desafetos e opositores – e isso muito antes da invenção do Photoshop!
    Quanto a “rapaz”, há uma etimologia popular que faria essa palavra descender do latim “rapax” (ladrão). Nada mais errado: a própria evolução fonética desmente essa teoria. Na verdade, “rapaz” provém do antigo provençal “rappatz”, que quer dizer “rapado”. É que, na Idade Média, era costume os jovens do sexo masculino usarem a cabeça raspada (como, aliás, hoje em dia também). Portanto, “rapado” passou a significar “homem jovem, rapaz”.
    Um abraço e obrigado pelos seus comentários tão inteligentes.

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    1. Olha, em relação a essas duas professoras citadas por mim não posso afirmar que não são boas profissionais, no entanto, sei que uma delas, de fato, é bastante partidária nas redes sociais e, vez ou outra, fazia comentários políticos impróprios na sala, a segunda, pelo menos, admitiu onde tinha ouvido esse pensamento e ido na onda, então, foi mais por ingenuidade, creio eu. Mas, ao defenderem esse tipo de prática e colocarem-se em um pedestal moral, destoam completamente de suas respectivas formações.
      Além do mais, o que choca é que esses fiscais léxicos não se importam nem um pouco de xingar os outros de “fascista” por qualquer coisa que os contrarie, por exemplo, mesmo que tampouco saibam o significado atual ou etimológico, curioso, não?

      Fico muito agradecida pelas respostas e por meus comentários terem agradado e acrescentado algo à discussão.

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